De tempos em tempos, o debate sobre a propriedade intelectual (PI) vem à tona. Em meio à pandemia atual, quando a discussão sobre o direito que uma empresa tem sobre substâncias e produtos específicos se torna uma questão de vida ou morte, é essencial definir o que é propriedade intelectual e qual sua importância para o homem, enquanto ser racional.
Quando falamos em propriedade intelectual, referimo-nos a patentes, direitos autorais, segredos industriais, marcas comerciais e outras formas de proteger uma criação imaterial do indivíduo. Esse é um tema controverso no meio liberal. Enquanto alguns autores a enxergam como a forma mais fundamental de propriedade, outros a vêem como a forma mais insidiosa de opressão estatal, disfarçando um monopólio coercitivo como “propriedade”. E tal disputa não é acidental, mas sim consequência de divergências acerca da natureza, origem e caráter moral da propriedade.
O propósito desse artigo é apresentar a defesa objetivista do direito à propriedade intelectual. Para tal, apresentarei (i) a perspectiva consequencialista da propriedade, adotada por liberais utilitaristas como Milton Friedman (1912 – 2006) e F. A. Hayek[1] (1899 – 1992), e por que ela leva a uma visão da propriedade intelectual como política pública. Em seguida, analisaremos (ii) a visão deontológica da propriedade, consequência da mescla do trabalho do indivíduo com os recursos naturais, formulada por John Locke (1632 – 1704) e predominante no meio austríaco: veremos como ela leva à rejeição da ideia de propriedade intelectual em autores como Murray Rothbard (1926 – 1995), Hans-Hermann Hoppe (1949) e Stephan Kinsella (1965).
Após expor essas duas perspectivas populares, apresentarei a visão de Ayn Rand da propriedade como concretização de uma ideia do indivíduo, que se baseia no reconhecimento da natureza racional do homem. Por fim, trataremos das aplicações concretas do direito à propriedade intelectual, suas críticas mais comuns, e como se baseiam, em última instância, na primazia da consciência – isto é, na premissa, muitas vezes implícita, de que a consciência antecede e dá origem à existência.
Consequencialismo: propriedade como concessão
Uma das dicotomias mais antigas no campo da Ética é entre teleologismo e deontologismo. Teleologismo, ou consequencialismo, é a ideia de que o valor moral de uma ação está em suas consequências, e não nos meios utilizados para alcançá-las: ela é adotada por diversas escolas de pensamento distintas como o Positivismo[2], o Pragmatismo[3] e o Utilitarismo[4]. Por outro lado, o deontologismo é a ideia de que a ação em si é o objeto da moral, e não os fins buscados (ou, de fato, atingidos) pelo indivíduo – uma ideia comum tanto à moralidade cristã quanto ao pensamento kantiano, de forma geral.
Liberais como Milton Friedman e F. A. Hayek estão dentre os mais prolíficos defensores consequencialistas do livre mercado. Apesar de inúmeras diferenças em termos de teoria econômica, ambos defendem a propriedade privada e o processo de mercado por suas consequências benéficas para a sociedade como um todo.
A teoria de Friedman foca nos incentivos que movem os agentes econômicos. Para ele, os indivíduos buscam otimizar sua situação, levando em conta as consequências esperadas de suas ações num contexto social específico. Um funcionário público, por exemplo, que não pode ser demitido – e cujo salário independe dos resultados de suas ações – tem menos incentivos que um empresário a ser responsável na alocação de recursos, já que o segundo depende do lucro obtido por sua empresa. Para Friedman, a propriedade privada e o processo de livre mercado são bons por gerarem os melhores incentivos possíveis, com o resultado de prosperidade para a população como um todo.
Hayek leva essa lógica às últimas consequências. Para ele, o essencial não são os incentivos, mas sim a informação em geral. Cada indivíduo tem acesso a informações diferentes e é mais preciso em avaliá-las frente à sua realidade imediata. O dono de uma padaria, por exemplo, conhece muito melhor as demandas de seus consumidores, e as restrições de seus fornecedores, que um governante encarregado de regular o mercado de panificação.
Uma sociedade organizada via planejadores centrais, portanto, está fadada ao fracasso justamente por ignorar grande parte da informação disponível, pois apenas o grupo político que está no poder tem a capacidade de tomar decisões – e a informação que possui sobre as especificidades da vida, recursos e vontades de cada indivíduo é praticamente nula. Para Hayek, a instituição da propriedade privada é boa por permitir que os indivíduos se organizem da melhor forma possível, via trocas independentes num mercado livre que otimizam toda a informação disponível.
Apesar dessas diferenças, a essência da visão consequencialista da propriedade não muda. Ela é vista como o melhor meio possível para atingir um fim específico: o “bem-estar da maioria”, a “prosperidade” ou alguma outra forma de bem coletivo. Sua origem é entendida como algo essencialmente coletivo, e não individual – uma espécie de monopólio sobre a utilização de um bem específico, garantido pela sociedade, visando o bem comum.
“O problema dessa forma de pensar é que, se a propriedade é apenas um meio para outro fim, ela pode e deve ser relativizada em nome desse fim – o que, em última instância, contradiz a própria natureza privada da propriedade. Em outras palavras, um direito de propriedade que emana do “bem comum” pode ser negado em nome desse mesmo bem, e uma propriedade que pode ser tomada de um indivíduo inocente não é sua propriedade, mas sim uma concessão garantida por aqueles com o poder de tomá-la.”
As consequências dessa visão para a questão específica da propriedade intelectual são relativamente intuitivas. Se a propriedade privada só é benéfica se promove um bem coletivo, a propriedade intelectual segue a mesma lógica. Assim como a propriedade física, a propriedade intelectual é vista como um “monopólio benéfico”, garantido com o propósito de fomentar a inovação.
É interessante notar que o critério para a PI é o mesmo, independentemente da opinião do autor em questão. Friedman, por exemplo, é um defensor da propriedade intelectual, argumentando que ela é fundamental para a inovação, devendo ser restrita caso sua implementação resulte em monopólios “indevidos”, isto é, que prejudiquem a prosperidade econômica do país. Hayek, por outro lado, se opõe à ideia de propriedade intelectual não por acreditar que ela viola os direitos inalienáveis do indivíduo, mas por entender que defendê-la constituiria um empecilho ao progresso e à prosperidade. Independentemente da opinião, o padrão de valor é o mesmo: a consequência da defesa da propriedade intelectual para o bem coletivo.
Como veremos mais adiante, Rand mostra como a natureza racional do indivíduo, e não um acordo coletivo, é a origem de todo e qualquer direito. Como os direitos têm sua origem no indivíduo, o direito à propriedade não pode ser concedido ou retirado por um grupo – uma sociedade pode apenas se organizar de forma a respeitar ou violá-los. Autores deontológicos, como Locke e Rothbard, se aproximam mais da visão objetivista sobre a propriedade – em particular, de sua natureza essencialmente individual – mas vinculam sua origem a um fator completamente diferente: a mistura do trabalho com um recurso natural.
Deontologismo: propriedade como trabalho concreto
A rejeição da propriedade intelectual é lugar comum na Escola Austríaca. Tratada superficialmente por Ludwig Von Mises (1881 – 1973), ela foi formalmente sistematizada por Murray Rothbard (com base na obra de John Locke) e posteriormente, remodelada por Hans-Hermann Hoppe. Ao contrário dos consequencialistas, os deontologistas austríacos consideram a propriedade algo essencialmente individual, e a propriedade intelectual como um monopólio ilegítimo garantido pelo Estado a um indivíduo específico, em detrimento de todos os outros.
Locke foi um pioneiro do jusnaturalismo, isto é, da ideia de que o homem tem direitos fundamentais independentes da vontade de qualquer governante ou grupo, que podem ser descobertos através da razão. Em seus Dois Tratados Sobre o Governo Civil, ele afirma que o estado natural do ser humano é de cooperação e paz, governado por certas leis autoevidentes que incluem o direito do indivíduo à sua própria vida, liberdade e propriedade. Para Locke, os homens estabelecem governos para proteger esses direitos de forma mais eficaz do que a justiça desorganizada e difusa do estado de natureza – e nenhum governo tem a sanção moral para violar os direitos que foi criado para defender.
Locke considera os recursos naturais como bens comuns a todo e qualquer ser humano. Ao “misturar o seu trabalho” com um recurso, todavia, o homem “combina com ele algo que é seu, tornando-o, assim, sua propriedade”[5]. De forma mais concreta, Locke entende que uma árvore que cresceu espontaneamente na natureza pode ser utilizada por todos, mas, no momento em que a corto e trato, ela passa a ser minha.
Assim como Rand, ele vê a propriedade como uma extensão do homem – algo externo ao indivíduo, porém transformado em parte integral de sua existência. Locke, porém, considera sua visão sobre a propriedade – e os direitos em geral – como autoevidente, fundamentando-a essencialmente em mitos – de forma superficial, o mito de um “estado de natureza”[6] e, de forma mais profunda, o mito do Deus cristão[7].
Rothbard adota a visão lockeana de propriedade como um recurso natural com que o indivíduo mistura seu trabalho, tornando-a extensão de seu ser, porém defende essa ideia comparando-a ao que considera ser as duas únicas alternativas possíveis: a aristocracia e o comunitarismo. Em Justiça e direitos de propriedade, o autor afirma que, confrontados com a questão da propriedade, temos três escolhas: i) adotar o princípio de que um indivíduo tem direito àquilo que produz ii) adotar o princípio de que um indivíduo, ou grupo, tem direito sobre aquilo que outro indivíduo produz iii) adotar o princípio de que todos os indivíduos têm direito a uma parte igual daquilo que todos os outros indivíduos produzem.
Em seguida, o autor defende a justiça do direito à propriedade com o argumento de que suas alternativas não são razoáveis. Apesar de desvincular a ideia de propriedade de uma origem divina, Rothbard mantém a afirmação arbitrária de que ela é, em última instância, autoevidente. Se os direitos fossem, de fato, autoevidentes, tanto esse artigo quanto as milhões de páginas escritas sobre o assunto não seriam necessárias. O fato de existir tamanha discordância sobre a natureza e a validade do direito à propriedade evidencia a necessidade de ele ser cuidadosamente fundamentado.
Percebendo que a justificativa rothbardiana era insuficiente, Hoppe mantém a mistura de trabalho a um recurso natural como fator essencial à propriedade, porém a fundamenta com sua Ética Argumentativa (da qual tratamos mais a fundo nesse artigo). Para ele, o ato do diálogo implica a aceitação de diversas premissas – a ideia de que é possível atingir um consenso por meio da conversa; de que é necessário obedecer regras; de que os indivíduos são entidades separadas e independentes. Em outras palavras, o fato de escolhermos dialogar implica uma aceitação tácita de que somos donos de nós mesmos. O princípio da autopropriedade está na base da visão austríaca de propriedade. Ser dono de mim mesmo significa ser dono dos frutos de meu trabalho.
Se a origem da propriedade está no trabalho, a propriedade intelectual é ilegítima, pois implica na propriedade sobre o trabalho de outrem. De forma concreta, se eu sou dono do meu corpo, do meu trabalho, e das coisas com que “misturo meu trabalho”, não há qualquer justificativa moral para impedir esse processo. Por exemplo, se Hoppe escreve um livro, ele é proprietário apenas dos livros concretos que produziu – do papel e da tinta com que misturou seu trabalho – e não do conteúdo do livro. Proibir-me de copiar um livro escrito por outra pessoa, segundo Hoppe, viola meu direito sobre meu próprio corpo – a saber, meu direito de usar meu corpo para realizar os movimentos físicos necessários à impressão do livro.
Segundo Rothbard e Hoppe, a propriedade intelectual é um monopólio ilegítimo, garantido à força pelo Estado, a um indivíduo específico. Sua essência é a ameaça de violência contra indivíduos pacíficos, pelo simples ato de produzir. Existem dois problemas nessa posição: (i) a presunção da autoevidência do princípio de não-contradição e (ii) a ideia de que o trabalho físico é a origem – e a essência – da propriedade.
Seja no jusnaturalismo de Locke e Rothbard, ou na ideia de não contradição performática de Hoppe, existe uma crença arbitrária na autoevidência de suas premissas. A ideia de direitos individuais não aparece simplesmente na mente de um indivíduo que contemple o tema por um determinado período de tempo. Ela precisa ser formulada ativamente, identificando a natureza do homem e os pré-requisitos de sua vida em sociedade – e o sucesso em defendê-la depende da veracidade dessa formulação. Direitos são princípios, e princípios são ideias. Uma ideia defendida com base apenas na afirmação de que ela é óbvia está fadada à rejeição.
O mesmo é válido para o critério de não contradição. Não há um fator automático que nos leve a assumir que não devemos nos contradizer – e existem inúmeras escolas filosóficas, do neopositivismo contemporâneo à filosofia budista, que argumentam o contrário[8]. Para afirmar que não devemos nos contradizer, é necessário primeiro estabelecer diversas afirmações sobre a natureza da realidade, da consciência e do Homem.
Ayn Rand identifica apropriadamente a razão por trás da não-contradição: o axioma da identidade. Uma coisa é o que ela é – a natureza não permite contradições. Uma entidade não pode ser ao mesmo tempo, azul e não-azul, quadrada e não-quadrada, ou, de forma mais abstrata, A e não-A. Essa é uma afirmação revalidada repetidamente, já que podemos apontar para as diversas entidades que observamos e constatar que todas elas são aquilo que são. Se nosso objetivo é compreender apropriadamente a realidade, e a realidade não permite contradições, nosso pensamento também não pode ser contraditório. Ao identificar a natureza da consciência, porém, Ayn Rand também identifica a natureza da propriedade – que inclui, mas não é restrita, ao trabalho físico.
Objetivismo: propriedade como ideia concretizada
A ideia objetivista de propriedade tem sua raiz na natureza do homem, enquanto ser vivo racional. Como todo ser vivo, o homem precisa atingir fins específicos – valores – para sobreviver. Ao contrário dos outros animais, que dependem de ações instintivas automáticas para atingir seus objetivos, o homem é capaz de formar conceitos de forma volicional, sendo-lhe impossível sobreviver de outra maneira. Em outras palavras, para alcançar os valores necessários à nossa sobrevivência precisamos integrar observações em conceitos. Essa integração não ocorre de forma automática: é fruto de um processo ativo de escolha.
Se o homem se mantém vivo utilizando a razão para adquirir valores, suprimi-la o leva à morte. Rand demonstra que só existe uma forma de suprimir a faculdade racional do indivíduo: a violência física. A violência, ou a ameaça de violência, impõe ao indivíduo a escolha perversa entre utilizar a sua faculdade racional, e ser punido por isso, ou ignorá-la, submetendo-se às ordens de quem o ameaça. De forma resumida: (i) a violência é a antítese da racionalidade e (ii) a racionalidade é o que possibilita a vida humana.
Em A virtude do egoísmo, Rand define um direito como um “princípio moral que define e sanciona a liberdade de ação do homem em um contexto social”. Isto é, um grupo de pessoas (digamos, a população de um país) precisa definir os princípios que guiam sua interação social – as ações que uma pessoa pode ou não tomar, sem medo de ser punida por seus semelhantes. Esses princípios são “direitos”, e podem ser justos ou injustos. O único direito fundamental justo é o direito à vida: o reconhecimento, em um contexto social, de que todo indivíduo pode agir de forma a sustentar, promover e viver a sua vida.
Ao contrário da visão jusnaturalista, o Objetivismo entende que os direitos não são divinos, autoevidentes ou inquestionáveis. Pelo contrário, são princípios que precisam ser ativamente descobertos, com base na identificação da natureza racional do Homem. Nas palavras de Ayn Rand, “você pode negar os fatos da realidade, mas não as consequências disso”. Assim como podemos acreditar que a gravidade é algo instável e divino, nos tornando incapazes de construir arranha-céus ou aviões, podemos acreditar que a violência é uma forma aceitável de lidar com outros seres humanos, levando-nos a um estado de guerra constante e, em última instância, à morte. Ignorar os direitos do indivíduo não é impossível, nem contradiz uma lei divina ou transcendental – é tão possível quanto ignorar qualquer outro fato, e nos leva à morte.
Apesar de perceber a natureza social dos direitos, Ayn Rand rejeita patentemente o subjetivismo consequencialista. Direitos não são criados arbitrariamente por um consenso social, mas por necessidades sociais objetivas da vida humana que podem ser reconhecidas ou não por uma sociedade. Em outras palavras, os indivíduos podem se organizar da forma que bem entenderem, mas não podem escapar da escolha entre respeitar ou não a natureza do homem enquanto ser racional – e das consequências práticas dessa escolha.
O direito à propriedade é um corolário específico do direito à vida. A ação humana não é um existente desconectado do contexto da vida humana em geral: ou seja, as pessoas não “agem” por agir – agem para alcançar os valores específicos que escolheram. Por isso, reconhecer que os indivíduos devem ser livres para agir, desde que não iniciem violência física, é reconhecer que devem ser livres para desfrutar dos resultados de suas ações. Logo, a propriedade é um fato, e o direito à propriedade é a identificação desse fato em um contexto social.
Ao basear o direito à propriedade no contexto apropriado – a vida do homem, enquanto ser racional – Rand reconhece que o trabalho físico é um dos fatores necessários à aquisição de valor e, portanto, à transformação de um recurso em propriedade. A criação de valor tem sua concretização no trabalho físico, mas tem sua origem no trabalho mental. Um indivíduo que, como Sísifo, empurre constantemente uma pedra morro acima, apenas para vê-la rolar morro abaixo novamente, não cria nenhum valor. É a ação física guiada pelo pensamento racional que cria valor – ou, de forma inversa, a ação mental, concretizada pela ação física.
O propósito do direito à propriedade é proteger a integridade do processo que permite ao indivíduo adquirir valor e manter sua vida. Por isso, proteger a propriedade equivale a proteger a relação do indivíduo com o resultado de seu trabalho mental, concretizado por meio da ação física. Para ilustrar ideia, vale à pena analisar o argumento de Stephan Kinsella contra a PI.
Em Contra a propriedade intelectual, Kinsella reformula o argumento de Hoppe, fundindo a perspectiva coletivista dos consequencialistas à visão deontológica da Escola Austríaca, baseando seu argumento na escassez. Para o autor, a razão de ser da propriedade privada não é proteger o direito do indivíduo sobre sua criação, mas evitar o conflito entre indivíduos. Kinsella assume que a origem do conflito entre indivíduos é o uso de recursos escassos. Em termos concretos, o conflito em relação a um automóvel decorre do fato de que, se eu estiver utilizando-o, outra pessoa não poderá fazer o mesmo. Como uma ideia não é um recurso escasso, isto é, como posso copiar o livro de outra pessoa sem destruir os livros físicos impressos por ela, não há sentido em proteger uma ideia.
De fato, o direito à propriedade evita conflito entre os homens, mas essa não é sua função essencial. A essência do direito à propriedade é proteger a capacidade do indivíduo de criar valor para si – o fato de que isso também evita conflitos é bom, mas secundário. O valor criado quando alguém escreve um romance não é o valor de seu primeiro manuscrito, mas o valor de toda e qualquer cópia impressa de seu livro, agora e no futuro – o que é produzido é o conteúdo do romance. O mesmo é válido para alguém que cria um novo motor, um processo produtivo ou, como Hank Rearden em A revolta de Atlas, uma nova liga metálica.
A função do direito à propriedade física é proteger a capacidade do indivíduo de raciocinar, formular um curso de ação que transforma recursos naturais em um bem com mais valor, e executar essas ações. A essência do direito à propriedade intelectual é a mesma, com a diferença de que esse curso de ação pode ser repetido diversas vezes – a fonte de valor é a ideia, e não o objeto. Propriedade física e propriedade intelectual, portanto, são instâncias diferentes da mesma coisa: o resultado da capacidade produtiva de um indivíduo racional.
Apesar do caráter imaterial da propriedade intelectual, uma ideia, por si só, não gera valor. Para criar valor, o indivíduo precisa concretizar sua ideia. Pela mesma razão, para ter direito à sua propriedade imaterial, um indivíduo precisa concretizá-la. Uma folha de papel com uma ideia abstrata descrita de forma vaga não é um valor. Para patentear um motor, por exemplo, um indivíduo precisa descrever em detalhes a sua estrutura e funcionamento, e concretizar essa ideia por meio de um protótipo. Nesse contexto, a PI protege o indivíduo de ter o seu protótipo reproduzido sem sua autorização.
Um princípio não existe sem a sua aplicação. Agora que entendemos os fundamentos do direito à propriedade, entendida como um existente tanto mental quanto físico, exploraremos as suas aplicações práticas, e as objeções mais comuns à PI. Para isso, vamos analisar as três principais formas de PI: patentes, direitos autorais e marcas comerciais.
Patentes, marcas e direitos autorais
A forma mais intuitiva de propriedade intelectual é o direito de um autor sobre sua obra. É fácil perceber como o valor de um romance não está em um livro específico, mas em seu conteúdo. O mesmo é válido para uma música, uma pintura, um tratado científico, um software, ou qualquer outro bem imaterial. O que é, de fato, criado pelo indivíduo não é um bem concreto, mas uma obra imaterial, que pode ser concretizada diversas vezes, de formas diferentes. Um livro pode ser impresso e reeditado, uma música pode ser regravada e reinterpretada de diversas maneiras, uma pintura pode ser impressa em inúmeros meios diferentes, de uma folha de papel a uma camiseta – todas consequências diretas da ideia original.
“Mas o direito autoral de um escritor não infringe o meu direito de utilizar o meu papel e a minha tinta da forma que eu bem entender? Fazer valer esse direito não significa iniciar violência contra indivíduos pacíficos?”
Não, da mesma forma que a minha propriedade sobre a minha casa não fere a liberdade de locomoção de terceiros por impedi-los de adentrar a minha sala de estar. O direito à propriedade é a sanção social da relação entre um indivíduo e sua criação. Um escritor não cria livros, mas narrativas. Uma narrativa é um existente real, ainda que não seja um existente concreto. É fácil perceber como uma história passada de forma oral de uma pessoa para a outra é a mesma, ainda que seja posteriormente escrita em uma folha de papel. Apesar de não ser concreta, a história é real. É essa criação real e imaterial que o direito autoral protege.
A objeção ao direito autoral é uma consequência da primazia da consciência[9]. Por trás da crença de que o valor de uma obra está apenas em suas concretizações físicas, está a ideia de que o valor é algo exclusivamente subjetivo – isto é, que a percepção de um indivíduo sobre um objeto é a origem de seu valor. Como discuti mais a fundo em um artigo anterior, o valor de um bem é consequência de sua natureza, e da sua relação objetiva com o indivíduo que valora. É possível dar mais valor a um pedaço de carne do que a um peixe enquanto comida, por exemplo, mas não é possível valorar, de forma consistente, uma pedra por seu valor nutricional, pois a natureza do objeto em questão não permite seu uso como comida. Por ser volicional, um indivíduo pode escolher tratar pedras como comida, mas estará fadado a morrer de inanição, pois sua crença não tem primazia sobre a existência.
Da mesma forma, um indivíduo pode escolher ignorar o contexto total do valor de uma música e o caráter imaterial e objetivo da criação do artista, e acreditar que o seu valor está no CD, no vinil, ou no arquivo em mp3, e não na ideia criada e executada pelo artista. Ignorar fatos não os torna menos reais. O contexto é o mesmo, quer ele seja reconhecido ou não pelo indivíduo – a música em questão é um existente real e imaterial, criado propositalmente por um indivíduo específico. Proteger a criação de um indivíduo de pessoas que ignoram o seu direito sobre ela é a função essencial do direito à propriedade, e de um governo instituído para protegê-lo.
O mesmo raciocínio está por traz da rejeição à propriedade de uma marca comercial. É possível conceptualizar uma assinatura como “tinta em um papel, com uma forma específica”, mas essa conceptualização ignora o contexto total. Uma assinatura é um meio pelo qual um indivíduo simboliza sua concordância com um contrato – é “tinta em um papel, com uma forma específica, feita de uma forma específica, por alguém específico, para um propósito específico”. O contexto total de um símbolo inclui o seu significado, e o seu propósito[10].
Uma marca comercial é essencialmente a assinatura de uma empresa. É um símbolo, cujo significado é o aval da empresa em questão sobre o produto que a carrega. Dizer algo que não é verdade não é apenas “fazer sons com a boca” – é mentir. Forjar a assinatura de alguém não é apenas “colocar tinta em um papel” – é fraudar. Utilizar a marca de uma empresa sem a sua autorização não é apenas “colocar uma imagem em um produto” – é passar a informação de que aquele produto foi criado por uma empresa, enganando o consumidor, e corroendo a credibilidade da empresa em questão. Ignorar um fato não o torna menos real.
O raciocínio por traz da patente é um pouco mais complexo, e gera objeções adicionais daqueles que se opõem à propriedade intelectual. A patente é o instrumento legal que reconhece o direito de um inventor sobre a sua criação. Ela não se refere a um existente mental específico, como uma imagem ou uma narrativa, mas a um processo criativo mais geral. Ao inventar a lâmpada, por exemplo, Thomas Edison não apenas “misturou o seu trabalho” com pedaços de vidro e metal, nem criou apenas uma lâmpada específica – ele desenvolveu um processo através do qual podemos transformar certos recursos em um objeto que transforma energia elétrica em luz. O valor criado por ele inclui toda e qualquer lâmpada criada com base em seu modelo, e sua essência é a forma específica de utilizar esses recursos.
Por proteger uma criação, patentes se referem apenas a algo que não existia anteriormente. Isaac Newton não teria o direito de patentear a gravidade, por exemplo, pois ele apenas descobriu o funcionamento de algo que sempre existiu. Os irmãos Wright, que se utilizaram de seus conhecimentos sobre a gravidade e a aerodinâmica para criar o primeiro avião, por outro lado, criaram algo novo. Sua criação pode ser reproduzida mecanicamente por qualquer um que tenha os recursos necessários, mas o valor do avião não está nos recursos, nem no trabalho de construí-lo – ele está na ideia, criada pelos Wright.
Ao contrário de um romance, o valor da criação dos Wright não está apenas no modelo específico de avião criado por eles, mas no processo – na aplicação específica de certos princípios a um contexto específico, de uma forma específica. Alguém que crie um avião essencialmente igual ao dos Wright, e mude a sua cor, não está criando algo novo, mas apenas alterando superficialmente o processo criado por eles. Para criar um avião sem infringir o direito dos Wright, alguém deve criar um modelo essencialmente diferente, que atinja o mesmo objetivo por um meio diferente, ou com uma adição que mude fundamentalmente a natureza do processo em questão.
O que exatamente constitui uma diferença essencial é um assunto complexo, que não trataremos nesse artigo por uma questão de espaço. O princípio a pautar essa discussão, porém, é claro: alguém que cria uma forma nova de aplicar princípios, e a concretiza em um modelo que pode ser reproduzido, criou algo novo, e tem direito a todo o valor criado.
“Mas e se, na ausência de Edison, eu pudesse criar uma lâmpada? Eu não tenho o direito de criar a mesma ideia, de forma independente?”
Essa é a objeção mais comum às patentes, e evidencia ainda mais o papel da primazia da consciência na rejeição da propriedade intelectual. A realidade é o que ela é, e alguém que cria um valor, bem… criou esse valor. A escolha de qualquer outro indivíduo, nesse contexto, é apenas entre reconhecer e se inspirar nas criações daqueles que o antecederam, ou ativamente ignorá-las. Estudar geometria e física ao ponto de entender o funcionamento e a utilidade da roda não me faz um “inventor independente” da roda – ela foi inventada, a milênios atrás, por um indivíduo específico.
A ideia da “descoberta independente” trata uma possibilidade imaginária como uma realidade. Eu posso imaginar como o mundo seria sem Thomas Edison, e como eu seria capaz de utilizar os mesmos princípios para chegar às mesmas conclusões, e inventar algo semelhante. Eu também posso imaginar como, se o Brasil não houvesse sido descoberto, e suas terras não tivessem dono, eu poderia me apropriar delas[11]. As terras, porém, foram descobertas e apropriadas, e a lâmpada foi criada – esses são fatos, que não podem ser alterados por cenários imaginários, por mais numerosos que sejam.
“E os efeitos negativos da propriedade intelectual sobre a produtividade e a prosperidade? Proibir os outros de replicar uma ideia não impede a inovação?”
Essa objeção, também comum, é secundária, mas razoável. Secundária pois, como vimos, a propriedade não é uma concessão do coletivo ao indivíduo, em nome de um bem maior. O propósito do direito à propriedade é proteger o indivíduo criador de bandidos e parasitas, e não promover o bem de todos. Pouco importa se o meu carro está sendo utilizado da forma ideal para o bem estar da maioria das pessoas – ele é meu, e deve ser utilizado da forma como eu bem entender. A objeção, porém, é razoável, pois o pensamento racional, e a inovação – sua consequência prática – são essenciais à vida humana.
Uma patente não impede a inovação, pois não se refere a uma descoberta, mas a uma invenção. Em termos concretos, o conhecimento necessário à produção de lâmpadas – o entendimento de como a energia elétrica funciona, e como ela pode ser transformada em luminosidade – é um fato da realidade, que foi identificado. Essa identificação não pode ser patenteada, e possibilitará inúmeras invenções no futuro. O acúmulo de conhecimento ao longo do tempo se mantém.
Por outro lado, a propriedade intelectual protege o direito do indivíduo sobre o resultado da sua aplicação desse conhecimento. Uma sociedade na qual esse direito é respeitado é uma sociedade cujos membros podem inovar, sem o medo de ter a sua criação apropriada, e seu valor expropriado, por terceiros. Como em toda instância do direito à propriedade, a proteção da vida do indivíduo leva ao seu florescimento. A propriedade intelectual é a forma mais fundamental de propriedade – e negá-la equivale a olhar para um livro, e ver só papel e tinta.
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Revisado por Matheus Pacini.
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[1] Hayek não é um utilitarista tradicional, pois afirma que os benefícios advindos da liberdade geralmente não são previsíveis – logo, que a liberdade não pode ser defendida com base num simples cálculo utilitário. Como mostrei nesse artigo, porém, sua defesa da liberdade ainda é pautada, em última instância, no fato de que ela leva ao melhor resultado possível para a maioria das pessoas.
[2] Analisei o Positivismo mais a fundo em dois artigos diferentes. O primeiro trata da sua origem no pensamento de Auguste Comte, enquanto o segundo trata de sua evolução ao longo do século XX, e de sua versão contemporânea, desenvolvida por autores como Karl Popper e Thomas Kuhn.
[3] Para mais informações sobre o Pragmatismo e sua consequência política, o Progressivismo, ver Pragmatismo, Progressivismo e o Fascismo Americano.
[4] Para uma análise mais aprofundada do Utilitarismo, ver Utilitarismo: A Ditadura da Turba.
[5] An Essay Concerning the True, Original, Extent and End of Civil Government, John Locke – Tradução livre.
[6] Tratei mais a fundo sobre o mito do estado de natureza, suas falhas e seu contexto histórico em A Falácia da Liberdade Como Fim.
[7] Para mais detalhes sobre a fundamentação religiosa do jusnaturalismo, ver Ayn Rand’s Theory of Rights: The Moral Foundation of a Free Society
[8] Neopositivistas, por exemplo, consideram a contradição como um aspecto essencial ao conhecimento. Para autores como Karl Popper, todo conhecimento científico está sujeito a ser contradito, e não complementado, por descobertas subsequentes. De forma semelhante, a Charvaka, uma das escolas de pensamento que originou o Budismo contemporâneo, enxerga a contradição como uma mera ilusão da mente, e rejeita a ideia de que não devemos nos contradizer.
[9] “A primazia da existência (da realidade) é o axioma que a existência existe, i.e., que o universo existe independentemente da consciência (de qualquer consciência), que as coisas são o que são, que possuem uma natureza específica, uma identidade. Seu corolário epistemológico é o axioma que a consciência é a faculdade de perceber aquilo que existe – e que o homem adquire conhecimento olhando para fora de si. A rejeição desses axiomas representa uma inversão: a primazia da consciência – a ideia de que o universo não possui existência independente, de que ele é o produto de uma consciência (humana, divina, ou ambas). Seu corolário epistemológico é a ideia de que o homem adquire conhecimento sobre a realidade olhando para dentro de si (ou para a sua própria consciência ou para as revelações que recebe de outra consciência, superior à sua).” – Philosophy, Who Needs It?, Ayn Rand – Tradução livre.
[10] Para uma reflexão sobre o caráter objetivo de símbolos, ver A Linguagem Pode Ser Objetiva, Afinal?
[11] A questão do direito dos povos indígenas à terra que habitavam é complexa, e irrelevante para o ponto desse artigo.