Um remédio para a doença subjetivista de Mises e Hayek: a Nova Escola Austríaca

[RECOMENDAÇÃO] – “O presente trabalho foi escrito como uma série de dois artigos. É altamente recomendável que o leitor, se não for familiarizado com o corpo teórico da Nova Escola Austríaca de Economia, espere ao menos um dia entre a leitura da primeira e da segunda parte, de forma a melhor apreender o conteúdo. Isso se da pela quantidade e complexidade dos conceitos introduzidos.”

PARTE I: A NOVA TEORIA MONETÁRIA

A Escola Austríaca de Economia é tratada, amiúde e com razão, como um corpo uniforme de teorias. De fato, quando comparada à economia positivista ortodoxa ou aos teóricos marxistas, as semelhanças entre os diversos autores austríacos são muito mais relevantes do que as suas diferenças. Apesar disso, se analisarmos os autores mais a fundo, em especial, sob a luz do Objetivismo, é possível perceber divergências significativas na abordagem dos autores: da epistemologia aristotélica de Carl Menger (1840–1921) à perspectiva “subjetivista-evolucionista” de F. A. Hayek (1899–1992). Um espectro tão amplo e com discordâncias internas tão grandes que passa a fazer sentido falar em “Escolas Austríacas”.

Indiscutivelmente, o que une a Escola Austríaca é o método praxeológico. A rejeição do historicismo em favor do método dedutivo, ou seja, a ideia de que o conhecimento econômico pode ser obtido não por meio da análise de preços e variações produtivas do passado, mas sim pela análise das características inerentes à ação humana, permeia as obras de todos os autores. A adoção do individualismo metodológico[1] em contraste com o coletivismo das análises de “externalidades” e bem-comum, o uso preciso da lógica em lugar do excesso de matematização nos modelos, e a visão da utilidade como uma medida ordinal, e não cardinal como nas funções de utilidade da economia positivista, também são ideias compartilhadas por todos os autores da escola.

Apesar dessas semelhanças inerentes à Praxeologia, a filosofia por trás do método chega a ser antagônica entre os autores, com duas correntes em claro conflito. De um lado, há a fundamentação aristotélica de Carl Menger (1840–1921) e Murray Rothbard (1926–1995), segundo a qual as características básicas da ação que servem de ponto de partida para a Praxeologia são fatos da realidade que podem ser percebidos e validados pela observação de qualquer ação, de forma semelhante aos axiomas do Objetivismo. De outro lado, há a fundamentação kantiana de Ludwig Von Mises (1881 – 1973), expandida e sistematizada por autores como Hans-Hermann Hoppe (1949), dominante no pensamento austríaco contemporâneo, segundo a qual as características básicas da ação são informações que o indivíduo possui a priori, isto é, de forma independente da experiência.

Apesar do crescimento do pensamento kantiano ao longo do último século e sua consequente hegemonia no pensamento dos economistas austríacos modernos, houve também um novo renascimento do aristotelismo. A Nova Escola Austríaca, iniciada pelo autor húngaro Antal Fekete (1932) e expandida por autores como Keith Weiner, Sandeep Jaitly e Rudy Fritsch (1947) não apenas busca retomar a tradição iniciada por Menger, mas tem o Objetivismo de Rand como principal influência filosófica.

Esse artigo tem dois propósitos claros. O primeiro é analisar as diferenças epistemológicas entre as duas correntes e as consequências teóricas disso na Escola Austríaca contemporânea. O segundo, e mais importante, é contrastar a Nova Escola Austríaca com o pensamento atualmente dominante na Escola Austríaca mainstream, introduzindo o leitor às ideias daquela escola. Para isso, analisaremos as diversas variantes da teoria do valor, da moeda, do crédito e dos ciclos econômicos, tratando das duas primeiras neste artigo, e das duas últimas em um artigo posterior.

É importante ressaltar que o objetivo desse artigo não é diminuir a importância e competência de autores como Mises ou Hayek – ambos geniais e revolucionários em seus trabalhos – tampouco dos autores contemporâneos da Escola Austríaca, que levam a cabo o nobre e dificílimo trabalho de disseminar a Praxeologia em uma academia dominada por uma economia positivista e seus delírios de preços de equilíbrio e nível médio de preços. O objetivo é justamente honrar a tradição de seriedade e rigor acadêmico desses autores com a necessária correção filosófica às suas teorias, preenchendo, concomitantemente, a lacuna intelectual entre Objetivismo e Praxeologia, contribuindo para guiar trabalhos futuros de ambas as escolas de pensamento na direção de uma maior complementariedade.

A Epistemologia e a Teoria do Valor

A epistemologia de Carl Menger deve muito a um filósofo chamado Franz Brentano. Colega e amigo, Brentano foi padre católico por grande parte de sua vida adulta, o que contribuiu para seu interesse em Aristóteles, até que um conflito teológico o fez abandonar a Igreja. Seguindo a tradição aristotélica, Brentano sustentava que era possível estudar e conhecer a natureza dos existentes através do uso ativo da razão e da lógica, rejeitando tanto o empirismo excessivo dos filósofos britânicos quanto o apriorismo de Kant e Hegel.

Adotando a visão aristotélica de Brentano, Menger se propôs a criar uma teoria econômica que rejeitasse o historicismo alemão, segundo o qual todo conhecimento das ciências sociais provinha da indução com base na observação histórica, e, ao mesmo tempo, rejeitasse a ideia kantiana de dedução, segundo a qual a razão é algo separado da experiência. Com isso em mente, o autor desenvolveu uma teoria econômica com base na observação das características gerais da ação econômica, dos bens e do valor.

Apesar de sua epistemologia aristotélica intrinsicista[2], parte da genialidade de Menger foi justamente a sua rejeição às doutrinas de valor intrínseco, como o valor-trabalho e o valor-terra, segundo as quais o valor dos bens deriva intrinsecamente de um fator de produção específico. O resultado pode ser melhor descrito, não como uma teoria de valor subjetivo, mas como uma teoria de valor volitivo, segundo a qual o valor de um bem possui dois fatores: objetivo e subjetivo. Para Menger, o fator objetivo é a relação da natureza e abundância de um bem com a satisfação de uma necessidade real do ser humano, enquanto o fator subjetivo é o valor individual que cada pessoa dá a um bem de acordo com seu código de valores que é irrestrito, devido ao caráter volicional do ser humano[3].

 Em Principles of Economics (Princípios de Economia), o autor ressalta esse caráter aristotélico de sua teoria de valor ao falar de bens imaginários, i.e. aqueles que são tratados como bens apesar de não possuírem a natureza e a utilidade que lhe são atribuídas, e discorre sobre como a quantidade desses bens diminui de forma proporcional ao progresso intelectual de uma sociedade:

“À medida que um povo adquire níveis maiores de civilização, e que os homens penetram mais profundamente na verdadeira constituição das coisas e suas naturezas próprias, o número de bens verdadeiros se torna paulatinamente maior, e como se pode facilmente entender, o número de bens imaginários se torna progressivamente menor. Não é sem importância enquanto evidência da conexão entre conhecimento e bem-estar humano o fato de que o número dos chamados bens imaginários é, segundo à experiência, normalmente maior em meio a povos mais pobres em bens verdadeiros.”[4]

Apesar do caráter revolucionário da teoria de Menger, sua epistemologia intrinsicista somada ao seu caráter subjetivo tornaram-na cada vez mais vulnerável às críticas provenientes do crescimento da hegemonia kantiana, na forma inclusive dos positivistas lógicos (dos quais tratamos anteriormente neste texto). Nesse contexto, visando proteger o método praxeológico tanto dos economistas históricos quanto dos filósofos subjetivistas, Ludwig Von Mises dá uma guinada kantiana na epistemologia austríaca.

Responsável por dar ao termo Praxeologia seu significado atual, Von Mises adota o marginalismo[5] de Menger, boa parte da teoria de moeda, juros e capital dos primeiros economistas austríacos, o individualismo e o singularismo[6] metodológicos de Max Weber e escreve Ação Humana, o primeiro tratado completo e integrado de economia austríaca. Em seu livro, o autor abandona a fundação aristotélica que caracterizava a economia austríaca até então, adotando uma epistemologia patentemente kantiana.

Para Mises, as características essenciais da ação, que são a base do estudo econômico, provêm não da observação direta da realidade e das características comuns às ações reais, mas de um conhecimento à priori, ou seja, anterior e independente da experiência. Segundo o autor, a evolução da mente humana desde a infância até a idade adulta, assim como do homem primitivo ao homem moderno, segue uma estrutura lógica particular que inclui a estrutura lógica da ação, a qual, por sua vez, serve de base para o pensamento econômico.

Como consequência da mudança epistemológica, há também uma mudança na teoria de valor de Von Mises em relação a Menger. Ao abandonar o intrinsicismo aristotélico em favor do apriorismo kantiano, o autor também abandona a noção de valor objetivo de seu precursor, optando por uma visão não apenas volitiva, mas patentemente subjetiva. Segundo o autor:

“Quando aplicados ao objetivo final da ação, os termos racional e irracional são inadequados e sem sentido. O objetivo final da ação é sempre a satisfação de um desejo do agente homem. Uma vez que ninguém tem condições de substituir os julgamentos de valor de um indivíduo pelo seu próprio julgamento, é inútil fazer julgamentos dos objetivos e das vontades de outras pessoas. Ninguém tem condições de afirmar o que faria outro homem mais feliz ou menos descontente. Aquele que critica está informando-nos o que imagina que faria se estivesse no lugar de seu semelhante, ou então está proclamando, com arrogância ditatorial, o comportamento de seu semelhante que lhe seria mais conveniente”.[7]

A oposição da visão de Mises à de Ayn Rand, segundo a qual um indivíduo “jamais deve se abster de fazer um julgamento moral[8] é clara. O objetivo deste artigo, todavia, não é fazer uma crítica ao subjetivismo ou ao relativismo moral per se, mas demonstrar as consequências do subjetivismo epistemológico, e do consequente apriorismo metodológico, na teoria econômica do autor. A principal consequência para a teoria do valor de Mises foi a negação da ideia de necessidades e valores objetivos como objetos de estudo da economia[9] – negação que, como veremos mais adiante, influenciou toda a sua teoria econômica.

Murray Rothbard se opõe ao apriorismo metodológico de Mises, afirmando que o mesmo é irrelevante para o método praxeológico. Para Rothbard, o método dedutivo não só é válido, como é apropriado para o estudo da ação humana e da economia, mas noções fundamentais como o “axioma da ação”, i.e., a noção de que o ser humano age propositalmente para atingir objetivos, não são frutos da estrutura lógica da mente humana, mas sim da observação da realidade.

Em seu livro Homem, economia e estado, Rothbard recria a estrutura lógica da praxeologia, do axioma da ação até temas mais complexos como o crédito e a intervenção estatal, sem apelar para o conhecimento à priori. Porém, o autor mantém a ideia de valor subjetivo de seus antecessores e, devido tanto à pouca insistência e foco no assunto, quanto, talvez, à sua carreira à margem da academia, exerceu pouca influência na epistemologia dos austríacos subsequentes.

F.A. Hayek é, sem dúvida, um dos grandes bastiões da EA, e segue o caminho de Mises em sua epistemologia, levando o caráter evolutivo do apriorismo metodológico ainda mais longe. Como explorado em detalhe neste texto, a perspectiva sobre o livre mercado de Hayek acaba se apoiando mais na falta de informação dos planejadores centrais e nas falhas da racionalidade (e não na racionalidade e potencialidade) dos indivíduos. Por considerar que o texto citado resume bem a epistemologia de Hayek, e que suas diferenças epistemológicas frente a Von Mises não são essenciais à presente análise, abstenho-me de desenvolvê-la aqui em mais detalhes.

Dentre os autores contemporâneos, o tema da epistemologia geralmente fica em segundo plano, preferindo-se temas mais concretos e aplicações específicas da praxeologia a diferentes mercados. Ainda assim, Hans-Hermann Hoppe, um dos autores modernos mais conhecidos, escreve veementemente em defesa do apriorismo metodológico de Mises em A ciência econômica e o método austríaco, afirmando positivamente que Mises não era um simples kantiano, mas que ele “leva a epistemologia kantiana para além do feito pelo próprio Kant”[10].

Apesar dos problemas da epistemologia subjetivista, ela era produto inevitável da visão aristotélica de Menger e Rothbard. Aristóteles, apesar de todos os seus vários méritos, era um intrinsicista. Acreditar que as qualidades dos existentes são intrínsecas a eles implica, em última instância, em acreditar que o valor de um bem é intrínseco a ele – crença essencial às teorias antigas que Menger rejeita em seu trabalho. É apenas com o desenvolvimento do Objetivismo, e sua aplicação à economia pela Nova Escola Austríaca, que a Praxeologia passa a ter uma base epistêmica verdadeiramente sólida, sem a necessidade de recorrer ao apriorismo, nem abrir mão da subjetividade da valoração.

Para autores como Antal Fekete, é necessário um retorno às ideias originais de Menger, com uma teoria de valor que entenda o caráter volitivo da escolha humana, que possibilite ao indivíduo valorar qualquer coisa em qualquer medida, mas que não ignore as necessidades objetivas do ser humano. Para a Nova Escola Austríaca, o valor não é intrínseco aos bens ou aos fatores de produção utilizados para fabricá-lo, mas há uma relação objetiva entre o valor de um bem e a função que ele cumpre para o indivíduo – em outras palavras, a volição humana não possibilita que a valoração subjetiva destinada à comida seja consistentemente atribuída a uma pedra, ou que a valoração subjetiva destinada à moeda seja consistentemente atribuída a um instrumento de crédito fraudulento.

Ao contrário de Mises e de boa parte do mainstream austríaco, autores como Fekete, Fritsch e Weiner não enxergam a economia como uma disciplina completamente separada da ética, mas como uma extensão dos mesmos princípios filosóficos que lhe dão origem. Como veremos adiante, essa nova corrente não estuda apenas a diferença entre uma moeda-commodity e uma moeda-crédito, mas também estuda as especificidades do funcionamento de uma economia com uma moeda honesta e com uma moeda fraudulenta.

Marginalismo, comerciabilidade e preço

Além da sua metodologia individualista e de sua teoria de valor, dois outros aspectos da teoria de Menger – e em maior ou menor escala de toda a EA – são dignos de nota neste ponto: o Marginalismo e o conceito de Comerciabilidade (Marketability). Essas duas ideias são a base da teoria austríaca sobre a espontaneidade tanto da formação de preços em um mercado quanto do surgimento da moeda – fenômenos que graças a esses conceitos, podem ser explicados pelas ações de indivíduos sem a necessidade de uma coordenação organizacional.

Menger costuma ser creditado, em conjunto com Léon Walras (1834 – 1910) e William Jevons (1835 – 1882) pela criação do marginalismo, isto é, a ideia de que o valor de um bem não é constante, mas depende da quantidade do mesmo bem em mãos do indivíduo. O marginalismo de Menger, todavia, é completamente diferente do dos outros dois autores. Enquanto Walras e Jevons enxergam a utilidade como uma medida quantitativa de valor do agente médio, Menger rejeita completamente o método de médias e a noção de utilidade como uma medida cardinal, focando no agente marginal. Em termos mais concretos, enquanto Walras e Jevons criam um suposto “consumidor médio” de carros e analisam como cada novo carro gera unidades de valor menor para esse consumidor, Menger rejeita o absurdo de tratar o indivíduo como uma média coletiva, focando no consumidor que está prestes a comprar ou não um carro, e é suscetível a pequenas mudanças na conjuntura.

A consequência dessa noção de marginalismo é a rejeição das ideias de preço de equilíbrio e funções de oferta e demanda predominantes na economia indutiva positivista. Com base nessa ideia, o autor enxerga o preço como algo que flutua, por conta das especificidades de cada relação comercial, entre duas margens, sujeitas a pressões diferentes de mercado: uma margem superior, a partir da qual o comprador marginal escolhe não realizar a troca, e uma margem inferior, a partir da qual o vendedor marginal prefere ficar com seu produto.

A ideia de comerciabilidade tem a ver, não com a formação de preços em um mercado, mas com a origem e o funcionamento da moeda. Suponha que alguém queira vender mármore para comprar milho. Para realizar a troca diretamente, essa pessoa precisaria encontrar alguém que possua milho e queira trocá-lo por mármore em quantidades satisfatórias para ambos. Apesar dessa coincidência de intenções ser improvável, ainda é vantajoso para o nosso indivíduo trocar seu mármore por um produto que seja mais divisível, durável e comumente aceito em transações, como o azeite, por exemplo, visto que isso o deixaria mais próximo de sua intenção final.

Esse processo, baseado na necessidade objetiva do ser humano de realizar trocas eficientes, é responsável pela seleção de commodities cada vez mais comercializáveis, até que uma ou mais dessas commodities se tornam hegemonicamente aceitas, dando origem a uma moeda. Menger não chega a sistematizar os fatores objetivos que tornam uma moeda melhor que outra, mas lista diversos fatores objetivos como a durabilidade, a mobilidade e a divisibilidade do bem, que contribuem para essa seleção.

O marginalismo e o conceito de comerciabilidade de Menger continuam sendo pilares da teoria austríaca, mas em vez de expandir essas ideias e sistematizar suas consequências práticas, Mises adota uma versão bastante atenuada do marginalismo em sua teoria da formação de preços, bem como uma versão subjetivista da comerciabilidade em sua explicação da origem da moeda. Essa guinada subjetivista se mantém hegemônica nos trabalhos dos autores posteriores da Escola Austríaca – inclusive do aristotélico Rothbard – e atinge seu ápice no trabalho de F.A. Hayek sobre preço, produção e moeda, do qual trataremos mais a fundo em uma próxima seção.

Em Ação Humana, Mises ainda usa amplamente o marginalismo de Menger e, de certa forma, vai além de seu precursor ao falar sobre o individualismo metodológico e a diferença entre probabilidade de classe e de caso[11]. Apesar disso, ao utilizar o método de construções imaginárias[12] e, em específico, as construções imaginárias dos preços de repouso, o autor deixa de lado a ideia, apresentada em Princípios de Economia, das diferentes pressões exercidas pelos diferentes agentes sobre os dois preços marginais.

Apesar de não enfatizar a ideia, a epistemologia aristotélica de Menger faz com que o autor trate os preços a partir do que é observado na realidade e, portanto, leve em conta os dois preços que se encontram no mercado: o bid, o preço mais baixo aceito quando se quer vender uma mercadoria, definido pelos vendedores marginais; e o ask, o preço mais alto pago quando se quer comprar uma mercadoria, definido pelos compradores marginais. Enquanto Menger demonstra que as transações flutuam entre esses dois preços, sujeitos a pressões de mercado diferentes, Mises, com sua metodologia apriorística e construções imaginárias, fala sobre um preço imaginário de repouso final em constante mudança, para o qual todas as transações convergem, sem nunca, de fato, ser alcançado.

O método das construções imaginárias é muito bom no que se propõe a fazer: demonstrar o caráter dinâmico do mercado e o funcionamento do mecanismo de preços, ajustado através da ação empresarial, e sua função em transmitir a informação dispersa entre os diversos agentes. Apesar disso, o entendimento do spread entre o bid e o ask é essencial para uma conceptualização objetiva do conceito de comerciabilidade. Os autores da Nova Escola Austríaca, na contramão do mainstream, retomam essa ideia, mostrando como esse spread é justamente o inverso da comerciabilidade.

A comerciabilidade, entendida como a característica essencial que transforma uma simples commodity em moeda, nada mais é do que a semelhança entre o valor  de um bem nas duas transações envolvidas em uma troca indireta. Em outras palavras, a mercadoria mais comerciável é aquela que o indivíduo pode adquirir através da troca, estocar e, posteriormente, trocar por outra mercadoria com a menor perda de valor possível. Levando em conta que a perda de valor entre transações se dá pela diferença entre o preço que se paga ao adquirir essa mercadoria (ask) e o preço que se recebe ao vendê-la (bid), além da mudança desses preços ao longo do tempo, é possível definir a mercadoria mais comerciável e, portanto, a moeda como a mercadoria que mantém o menor spread bid-ask ao longo do tempo.

Na ausência desse critério objetivo e, de forma condizente com a sua epistemologia de origem kantiana, Mises aborda a comerciablidade como um critério essencialmente subjetivo. É importante ressaltar que o autor não aborda o conceito de forma completamente descolada da realidade, discorrendo sobre como as características objetivas de uma mercadoria fazem com que ela seja mais ou menos desejável como moeda. Apesar disso, o autor segue a mesma linha de sua teoria do valor, argumentando que toda forma de valoração é, em última instância, subjetiva, independentemente das necessidades reais do indivíduo. Isso leva o autor a considerar, dentre outras coisas, que instrumentos de crédito com valor futuro podem essencialmente se tornar uma moeda com valor presente, como veremos na próxima seção.

Teoria da Moeda: Mises

Os méritos da teoria austríaca da moeda quando comparada com a economia positivista ortodoxa são óbvios para o leitor que esteja familiarizado com ambas. A negação da neutralidade da moeda e da ideia de inflação como variação no nível médio de preços são, por si mesmas, razões para se estudar a teoria austríaca. Apesar de todos os seus méritos, a teoria monetária de von Mises possui duas falhas graves: a ideia de que instrumentos de crédito podem servir como moeda e uma adoção, ainda que mais branda, da Teoria Quantitativa da Moeda (TQM) – ou, como coloca mais precisamente Keith Weiner, da Estória Quantitativa da Moeda[13].

A neutralidade da moeda é a ideia adotada ou, mais comumente, tratada como um epifenômeno de pouca importância pela maioria dos modelos econômicos positivistas de que variações na quantidade de moeda alteram o seu poder de compra de forma uniforme. É comum, tanto nos modelos IS-LM simples quanto em suas variações dinâmicas e estocásticas mais modernas, tratar o poder de compra da moeda como algo uniforme, que varia de acordo com a taxa de juros e a consequente quantidade de moeda em circulação. Na contramão dessa ideia, Mises demonstra como a informação sobre a quantidade de moeda se encontra dispersa na sociedade e como os preços não são ajustados ao mesmo tempo pelos diversos agentes econômicos.

Na prática, aqueles que recebem a moeda primeiro – grandes bancos e empresas amigas do Estado – podem reajustar seu preço mais cedo que os outros e usufruir do poder de compra anterior à expansão monetária até que o resto da economia se ajuste à nova situação. Dessa forma, toda expansão monetária acarreta em uma redistribuição de renda daqueles mais distantes para aqueles mais próximos ao Estado. Como veremos adiante, porém, essa redistribuição não se dá de forma quantitativa, i.e., como uma perda de valor relacionada à quantidade da moeda em circulação, mas de forma qualitativa, como um aumento do risco de se manter moeda.

O autor também se opõe corretamente ao uso do termo “inflação” para denotar variações no nível médio de preços em uma economia. Mises demonstra como i) os preços não variam de forma uniforme, com vários preços subindo e caindo devido a diversos fatores erroneamente se “compensando” nesse índice e ii) a variação no valor da moeda é apenas uma das várias consequências da mudança da base monetária. Por conta disso, o termo deveria ser usado apenas em sua forma original, denotando variações na quantidade de moeda.

Ludwig von Mises também ataca o que considera como versões simplistas da TQM, que assumem que o poder de compra da moeda varia de forma proporcional a variações na oferta de moeda. Para o autor, o caráter dinâmico e multivariado do mercado faz com que mudanças na oferta de moeda alterem diversas outras variáveis – inclusive a demanda por moeda. Ainda assim, em The Theory of Money and Credit (A Teoria do Dinheiro e Crédito), o autor isola o que considera ser a essência da TQM: a ideia de que variações na relação oferta/demanda da moeda levam a alterações em seu valor. A relutância em rejeitar completamente esse aspecto teórico é o que leva a diversas previsões espúrias de alguns autores austríacos sobre aumentos absurdos no preço do ouro. (Peter Schiff é um exemplo de intelectual austríaco que fez diversas previsões sobre como o preço do ouro iria “explodir”, sem nunca acertar).

Como os autores da Nova Escola Austríaca mostram, a utilidade marginal quase que constante da unidade monetária, assim como sua consequente relação estoque-por-fluxo[14] (stock-to-flow ratio) extremamente elevada faz com que o valor da moeda seja quase que imune a mudanças. Enquanto um carro, por exemplo, satisfaz desejos específicos, a moeda é trocada por qualquer mercadoria, além de poder ser poupada sem perda de valor – diferentemente de um segundo carro, portanto, cujo valor derivaria das ações que podem ser tomadas apenas com um mínimo dois carros, uma segunda unidade monetária tem praticamente o mesmo valor da primeira.

Devido à sua utilidade marginal quase constante, moedas tendem a ser estocadas em quantidades massivas. Para se ter uma ideia, relações de estoque-por-fluxo costumam ser medidas em dias ou meses – o ouro, mercadoria com o menor spread bid-ask do mundo moderno tem essa relação entre 70 a 80 anos. Por conta disso quaisquer mudanças na relação oferta-demanda do ouro – e da prata, cuja relação é semelhante – são rapidamente absorvidas pelo mercado. Como Weiner coloca, o valor do ouro se move em relação aos outros bens da mesma forma que o Planeta Terra é influenciado pela gravidade dos objetos em sua superfície[15].

A mesma epistemologia subjetivista que faz com que o autor falhe em rejeitar completamente a TQM, também o faz definir erroneamente a moeda como o meio de troca hegemonicamente utilizado em uma sociedade. Essa definição permite que o autor considere como moeda, por exemplo, instrumentos de crédito, e utilize distinções como moeda-commodity em contraste com moeda fiduciária e moeda fiat. Essa ideia é expandida ainda mais por F.A. Hayek.

Teoria da Moeda: Hayek

Hayek é um autor, no mínimo, controverso dentro da EA. Além de não subscrever nem à epistemologia a priori de Von Mises nem ao método aristotélico de Rothbard ou Menger, o autor aborda os mais diversos temas, do direito à psicologia. A genialidade e significância do autor são inquestionáveis, mas o propósito do presente artigo é apresentar uma crítica a ele – em específico, à sua teoria da moeda.

A epistemologia hayekiana é ainda mais subjetivista que a de von Mises; enquanto o último admitia certas verdades axiomáticas inquestionáveis, ainda que elas fossem descobertas a priori, o primeiro enxergava o conhecimento como uma construção social em perpétua evolução. Esse foco processual resulta em uma teoria monetária menos focada nas características de uma mercadoria que a transformam em moeda, e mais no processo competitivo pelo qual uma sociedade escolhe sua moeda.

Tanto em Monetary Theory and The Trade Cycle (A Teoria Monetária e o Ciclo Econômico) quanto em The Denationalization of Money (A Desestatização do Dinheiro), o autor compartilha da definição de Mises de moeda como meio de troca. A partir disso, Hayek prossegue para demonstrar que a moeda ideal, seja ela commoddity, fiduciária ou até fiat, é aquela que emergir da livre competição entre bancos livres, independente de suas características. Essa é a teoria que forma a base intelectual por trás de criptomoedas sem lastro como o Bitcoin, por exemplo e, como veremos, ela padece de um erro fundamental.

Na realidade, como demonstram os autores da Nova Escola Austríaca, existe uma diferença entre o meio de troca hegemonicamente utilizado – dinheiro (currency) – e o bem mais comerciável da economia – a moeda (money). Assim como a função de numerário, a função de meio de troca é apenas uma das funções que a moeda adquire como consequência de seu spread bid-ask. Uma outra função, essencial para a economia, é a de extintor definitivo de débito (ultimate extinguisher of debt).

Além de medida de valor, meio de troca e diversas outras funções, a moeda extingue qualquer dívida que seja paga com ela. Se o indivíduo A contrai uma dívida no valor de 100 gramas de prata com o indivíduo B, essa dívida deixa de existir assim que o indivíduo A transfere essa quantia para a propriedade do indivíduo B. Se, por outro lado, o indivíduo A paga sua dívida com um título do banco C dando direito a 100 gramas de prata, ou qualquer outro instrumento de crédito, a dívida não deixa de existir, mas apenas troca de mão: agora, é o banco C que deve ao indivíduo B, não mais A. Essa qualidade da moeda se deve ao fato de ela ser uma commodity e, portanto um valor presente.

Um meio de troca como o Real – uma moeda baseada em dívida – ou o Bitcoin – uma moeda token baseada exclusivamente na expectativa futura de compra – é incapaz de extinguir definitivamente uma dívida, por não ser um valor presente. Se o indivíduo A paga B em reais, ele simplesmente transfere a dívida para o Banco Central do Brasil, enquanto que se ele paga com Bitcoins, apenas transfere essa dívida para a próxima pessoa que aceitar os Bitcoins de B. Um sistema monetário que não utilize moeda commodity, como o sistema de competição de moedas fiduciárias detalhado por Hayek, é, portanto, incapaz de extinguir dívidas e fadado a crises cíclicas.

A Nova Escola Austríaca, devido a sua epistemologia objetivista, percebe tanto que um valor futuro não pode ser a commodity mais comerciável da economia e, portanto, a moeda; quanto que uma moeda honesta não pode ser inflacionada, pois é impossível produzir mais de uma commodity cujo valor é praticamente imune a pressões de mercado sem efetivamente criar também o valor que essa commodity possui. Com base nisso, Weiner define inflação não como uma expansão da base monetária, mas como uma expansão de crédito falsificado e trata dos efeitos dessa distorção no mercado de crédito.

Nesse primeiro artigo, vimos como a adoção de uma epistemologia falha por Ludwig von Mises gerou erros na visão sobre valor dos austríacos que o seguiram, e como esses erros resultaram em falhas na teoria monetária austríaca. Se com a devida correção epistemológica inflação passa a ser conceptualizada como uma expansão de crédito falso, quais são as suas consequências no mercado de crédito? Como funciona a teoria dos juros e dos ciclos econômicos em uma praxeologia objetiva? Trataremos desses assuntos, assim como da evolução da visão de Estado dos austríacos, na segunda parte deste artigo.

PARTE II: A NOVA TEORIA DO CRÉDITO

No primeiro artigo dessa série, analisamos a evolução da epistemologia da Escola Austríaca e a diferença essencial entre o aristotelismo de autores como Carl Menger e Murray Rothbard e o kantianismo de autores como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Exploramos as consequências negativas da guinada kantiana adotada inicialmente por Mises nas teorias austríacas do valor e da moeda, e introduzimos a base da teoria por trás da retomada do aristotelismo pelos autores da Nova Escola Austríaca.

Observamos como a mudança de epistemologia levou à mudança de uma teoria de valor volitivo de Menger para uma teoria de valor totalmente subjetivo a partir de Mises – mudança não questionada por Rothbard em sua retomada aristotélica. Notamos também como o método das construções imaginárias adota o apriorismo em detrimento do marginalismo originalmente proposto por Menger, abandonando a ideia dos preços marginais de bid e ask[16].

No âmbito da teoria da moeda, analisamos como a epistemologia subjetivista leva à conceptualização da comerciabilidade como uma característica essencialmente subjetiva, e à definição de moeda como meio de troca hegemonicamente aceito. Contrastamos essa visão com a teoria dos autores da Nova Escola Austríaca, que enxergam a comerciabilidade como uma característica objetiva, mesmo que socialmente definida, relacionada ao spread entre os dois preços da moeda, e ressaltam o caráter da moeda como extintor final de débito.

Terminamos o primeiro artigo com a definição de inflação como “expansão de crédito fraudulento” dos novos austríacos, em contraste com a ideia de inflação como expansão da base monetária dos austríacos mainstream. Se a inflação é, na verdade, uma distorção no mercado de crédito, resta descobrir quais são suas consequências nesse mercado e como isso influencia a sociedade em geral. Antes disso, porém, precisamos analisar exatamente o que é crédito e qual a sua origem, tanto segundo o pensamento hegemônico na Escola Austríaca, quanto da perspectiva da Nova Escola Austríaca.

Ao longo deste artigo, faremos um contraste entre a teoria austríaca kantiana do crédito como uma troca de valor presente por valor futuro e dos juros de mercado como uma manifestação do juro originário; com a perspectiva objetivista da Nova Escola Austríaca, que trata o crédito como uma troca de riqueza por renda retoma a doutrina das Real Bills of Exchange de Adam Smith e leva em conta tanto o aspecto da preferência temporal quanto o da produtividade na definição da taxa de juros de mercado. Trataremos também das diferenças entre as duas escolas na teoria dos ciclos econômicos, comparando o modelo hegemônico e o apriorismo da expansão artificial de crédito com o modelo de feedbacks positivos ascendentes e descentes descrito por Weiner, que culmina no fenômeno de backwardation do ouro, que explicaremos na última seção.

Vale lembrar que o presente artigo não é uma análise a fundo da Praxeologia nem da Nova Escola Austríaca, mas apenas um contraste entre os aspectos essenciais da nova perspectiva frente ao pensamento dominante entre os autores austríacos, visando introduzir o leitor ao trabalho dos novos autores. Ambos os corpos teóricos são muito mais ricos em informação do que seria possível tratar nesses artigos, e merecem estudo mais aprofundado por parte do leitor interessado.

A preferência temporal: valor presente x valor futuro

A teoria austríaca do crédito parte da dicotomia entre bem presente e bem futuro, tomando como axiomática a priori a afirmação de que o indivíduo atribui sempre valor maior à satisfação de necessidades no presente do que no futuro. Essa relação entre as valorações de diferentes períodos de tempo é denominada juro originário, e faz com que sempre exista uma relação entre o preço de um bem no presente e o preço desse mesmo bem no futuro.

Em teoria, o preço de um bem de capital deriva do preço dos bens que podem ser produzidos por ele ao longo do tempo. Por essa lógica, um pedaço de terra deve levar em conta toda a produção futura dessa terra, que é infinita. O juro originário explica fenômenos de mercado como o preço finito de parcelas de terra – o seu preço não é infinito justamente porque a produção da terra vale menos quanto mais futura ela é, tendendo a zero para o futuro distante.

Segundo Mises, o juro originário não é definido pela relação de oferta e demanda por crédito – pelo contrário, o juro originário é o que define tanto a oferta quanto a demanda por capital. Dentro deste paradigma, os juros observados no mercado são uma manifestação do juro originário, acrescido de outros fatores como o risco e a expectativa das variações de preço. Em outras palavras, o autor não considerava que um aumento na poupança dos agentes econômicos tivesse um efeito sobre a taxa de juros, mas que tanto a taxa de juros quanto a poupança dos agentes mudam conforme muda a preferência temporal dos indivíduos. Da mesma forma que os preços que ocorrem no mercado estão em constante mudança em direção a um preço de repouso, sem nunca alcançá-lo, os juros de mercado tendem a variar junto com o juro originário dos indivíduos.

Apesar de fazer a importante distinção entre o retorno sob o capital e a simples relação entre valores ao longo do tempo, Mises descarta completamente a influência da atividade produtiva na definição da taxa de juros de mercado, rejeitando inclusive as ideias anteriores de Eugen von Bohm-Bawerk sobre o assunto.

“Bohm-Bawerk desmascarou de uma ver por todas as fala?cias que tentam ingenuamente explicar o juro como sendo decorrente da produtividade, isto e, a ideia de que o juro é a expressão da produtividade fisica dos fatores de producão. Apesar disso, Bohm-Bawerk, também, de certa forma, baseou sua propria teoria no conceito de produtividade. Ao se referir à superioridade tecnológica dos processos indiretos de produção que consomem mais tempo, Bohm-Bawerk evita o simplismo ingênuo da explicação com base na produtividade. mas, de fato, retorna, embora de maneira mais sutil, à abordagem produtivista. os economistas mais recentes que, negligenciando a ideia da preferência temporal, enfatizaram apenas a ideia de produtividade contida na teoria de Bohm-Bawerk, não podem deixar de concluir que o juro originário terá que desaparecer se os homens algum dia alcançarem um estado de coisas no qual nenhum alongamento do período de produção puder acarretar um aumento de produtividade. entretanto, esta seria uma conclusão inteiramente errada. o juro originário não pode desaparecer enquanto houver escassez e, portanto, ação.”[17]

Rothbard, apesar de rejeitar a noção a priori, mantém a característica essencial da teoria do crédito de von Mises: a ideia de que a preferência temporal é o fator principal por trás da definição da taxa de juros. O autor dedica toda uma seção do livro ao “Mito da Importância do Mercado de Empréstimos ao Produtor”. Ambos os autores rejeitam a produtividade do capital como um fator relevante para a definição da taxa de juros, atribuindo sua origem exclusivamente à preferência temporal.

A teoria do crédito austríaca é absolutamente genial em múltiplos aspectos. Além de usar o conceito de preferência temporal para corrigir o erro de muitos economistas de estabelecer uma reação causal direta entre poupança e taxa de juros, a teoria demonstra como um mercado livre de crédito atinge uma taxa de juros relativamente uniforme através da atividade empresarial do indivíduo seguindo, como todo o mercado, a regra da soberania do consumidor[18]. Assim como na teoria da moeda e da formação de preços, todavia, a epistemologia kantiana cobra seu preço.

Assim como a construção imaginária do preço de repouso cumpre uma função, mas ignora os preços marginais do mercado, a conceptualização do juro de mercado como uma manifestação do juro originário introduz o leitor de forma magistral ao conceito de preferência temporal, mas ignora o fato de que o crédito, como todo bem comercializado de forma sistemática, possui um bid e um ask. Na prática, um indivíduo que precise de dinheiro emprestado – seja para investir ou, mais urgentemente, pagar uma dívida – está sujeito a juros mais altos do que o indivíduo que vai ao mercado precisando emprestar dinheiro. Todas as transações ocorrem entre o preço mais baixo do mercado de crédito, definido pela recusa do emprestador marginal a emprestar a uma taxa inferior à sua preferência temporal, e o preço mais alto do mercado, definido pela recusa do tomador de crédito marginal em pegar empréstimo a uma taxa superior à sua produtividade marginal.

Preferência e produção: renda x riqueza

Ao ler o último parágrafo, o leitor pode ter estranhado a ideia do indivíduo que “precisa emprestar dinheiro”. De fato, quando se toma a dicotomia “bem presente” versus “bem futuro” como paradigma de análise, há uma assimetria essencial entre quem tem bens no presente e quem tem apenas o potencial de gerar bens no futuro. Antal Fekete começa sua análise descartando essa dicotomia em prol de uma visão do crédito como fruto da conversão entre renda (income) e riqueza (wealth).

Fekete, assim como os outros autores da Nova Escola Austríaca, toma como ponto de partida de sua análise as características do ser humano, e não estruturas de ação a priori. Por causa disso, o autor começa sua análise com o fato de que o ser humano perde sua capacidade produtiva com a idade e, por causa disso, precisa poupar. Isso se dá através da transformação de renda, definida como o valor que pode ser diretamente consumido mas não estocado, em riqueza, definido como o valor que pode ser estocado, mas não consumido diretamente.

Para Fekete, a forma mais básica de conversão de renda em riqueza é a acumulação (hoarding), na qual a renda que não é destinada ao consumo é transformada em riqueza. Um exemplo claro disso é a troca de carne, sapatos ou qualquer outro bem consumível produzido pelo indivíduo por prata ou ouro. Na ausência de um mercado de crédito, um vendedor de qualquer um desses produtos não apenas trocaria a sua produção pelos outros bens que consumirá no futuro próximo, mas também por moeda que pode ser estocada. No futuro, quando a capacidade produtiva desse indivíduo minguar, ele pode desacumular sua riqueza, trocando a moeda acumulada por bens de consumo para manter a sua existência.

Tomando a necessidade de estocar valor como base, o crédito surge como uma alternativa mais eficiente à simples acumulação de riqueza. Ao invés de simplesmente estocar moeda, o indivíduo pode emprestar dinheiro a um produtor, comprando um título (bond) lastreado em moeda, mas que lhe renda valor ao longo do tempo; ao invés de simplesmente trocar a moeda que acumulou por bens de consumo, o indivíduo pode fazer um investimento que lhe conceda a renda que precisa para existir. Fica fácil perceber como a relação de troca entre riqueza e renda é mais igual entre as partes do que a relação de troca entre valor presente e futuro quando se pensa no mito grego de Midas, que possuía uma quantidade absurda de ouro (riqueza), mas não conseguia convertê-la em algo que, de fato, pudesse utilizar (renda).

As transações de crédito surgem como uma alternativa mais produtiva à simples acumulação e, posterior, desacumulação. O indivíduo pode converter renda em riqueza ao conceder crédito comprando um título com lastro em ouro ou prata e, posteriormente, converter riqueza em renda quando esse bond atingir sua maturidade. Toda transação de crédito, porém, vem com um risco, pois quem toma o crédito pode não ter a capacidade de pagar o que deve. Cabe ao indivíduo que concede o crédito analisar a relação entre o lucro e o risco.

Em um mercado de crédito aberto, com uma moeda honesta, as transações individuais variam entre o bid, a taxa de juros mais baixa definida pela recusa do credor marginal em emprestar dinheiro a uma taxa inferior à sua preferência temporal, levando em conta também os riscos envolvidos, e o ask, a taxa de juros mais alta definida pela recusa do produtor marginal em tomar dinheiro a uma taxa superior à sua produtividade marginal. Em outras palavras, se a taxa de juros for maior do que a produtividade do capital do produtor, vale à pena para ele liquidar seu capital e comprar títulos – mecanismo que faz com que a moeda flua para as atividades mais produtivas da economia. Se, por outro lado, a taxa de juros for mais baixa que a preferência temporal do credor, vale à pena para ele liquidar seu título e ficar com a moeda – essa capacidade de não emprestar moeda se chama soberania do credor.

Se a existência de uma moeda com valor presente é essencial à regulação do bid no mercado de crédito, o que acontece quando o governo impede a circulação de metais monetários e os substitui por dinheiro lastreado na dívida pública? Antes de responder a essa pergunta, é necessário analisar uma segunda fonte de crédito descartada pelo mainstream austríaco: as Real Bills of Exchange.

Uma Segunda Fonte de Crédito: A “Real Bills Doctrine”

Além da poupança, Fekete identifica uma segunda fonte de crédito, que dá origem a um mercado completamente diferente do baseado na acumulação: a produção de bens com demanda urgente. Na contramão do mainstream austríaco, o autor retoma a ideia de Adam Smith de uma fonte de crédito de curto prazo baseado na expectativa de produção.

Uma real bill of exchange é um instrumento de crédito comercial de curto prazo cuja base não é a poupança do indivíduo mas a demanda por bens no curto prazo, sendo emitido por um varejista a seus fornecedores[19] para ser pago em até 90 dias[20]. Para aproximar a ideia de um nível concreto, um padeiro pode perceber uma demanda inesperada e urgente de pão por parte de seus consumidores, mas não ter caixa o suficiente para comprar a farinha necessária. Seu fornecedor de farinha pode escolher aceitar um documento redigido pelo padeiro se comprometendo a pagar pela farinha nos próximos 90 dias, quando tiver vendido o pão. Ambos os agentes econômicos saem ganhando nessa situação.

Suponhamos, todavia, que o produtor de farinha precise não de uma promessa futura, mas de moeda presente para pagar seus funcionários. Com a integração do mercado e o crescimento cada vez maior das cadeias produtivas, surge o mercado das real bills, onde essas notas promissórias podem ser vendidas para um capitalista por um valor descontado. Nesse caso, todos os três agentes envolvidos ganham: o padeiro pode lucrar atendendo sua demanda, o produtor de farinha pode lucrar atendendo o padeiro e, ao mesmo tempo, pagando seus funcionários, e o capitalista pode lucrar com a margem entre o preço descontado que pagou pela nota e o preço a ser pago no vencimento dessa nota.

A taxa de desconto não está diretamente relacionada com a taxa de juros que emerge do mercado de títulos, visto que a origem e as pressões que operam nos dois mercados são diferentes. O mercado de notas se torna cada vez mais essencial à medida que as cadeias de produção se tornam maiores e mais complexas e precisam compensar pagamentos de forma que seria pouco prática via depósitos de moeda ou do mercado de títulos. Na ausência de um mercado de notas, nosso padeiro poderia não ser capaz de comprar farinha utilizando a taxa de juros do mercado de títulos.

Parte da rejeição do mainstream austríaco à doutrina das Real Bills of Exchange ocorre devido à definição de inflação utilizada por Mises, enquanto que outra parte ocorre por ignorância quanto ao conteúdo da doutrina, como exemplificado por este artigo de Robert Blumen[21]. Trataremos primeiro da questão da ignorância, esclarecendo exatamente o que a Nova Escola Austríaca quer dizer quando trata do termo, para depois confrontar o real conteúdo da teoria com as ideias de von Mises.

Em seu artigo, Blumen cita Fekete, mas tece uma crítica contra uma doutrina das Real Bills of Exchange que não tem nenhuma semelhança com a proposta do autor. No modelo descrito por Blumen, real bills são documentos que podem ser adquiridos por bancos, que, por sua vez, podem usá-las como lastro para emitir moeda. De fato, uma moeda cujo lastro é dívida, seja uma real bill ou um título do tesouro, não é um valor presente e, portanto, não pode extinguir uma dívida. O modelo criticado pelo autor, porém, é totalmente diferente do modelo proposto por Fekete.

O mercado de real bills proposto pela Nova Escola Austríaca é aquele onde um capitalista compra uma bill, pagando em moeda. O meio circulante que entra no mercado é, de fato, moeda, e o débito inicial é extinguido assim que o capitalista recebe seu pagamento, também em moeda. Nesse ponto, a diferença essencial entre as definições de inflação do mainstream austríaco e da Nova Escola Austríaca se tornam claras. Para Mises, Hayek e Rothbard, o aumento da oferta de moeda no mercado resultante das câmaras de compensação diminuiria o valor da moeda. Como vimos no artigo anterior, o valor da moeda é praticamente imutável, independentemente da quantidade de moeda em circulação, por conta da alta relação estoque-por-fluxo da commodity monetária e seu baixo spread bid-ask.

A teoria austríaca mainstream se baseia em uma visão subjetivista da comerciabilidade da moeda e analisa um mercado de crédito cuja base é apenas o juro originário, derivado do aspecto temporal necessário a qualquer ação, seja ele uma categoria a priori ou um fato axiomático de autoevidente. Por sua vez, a Nova Escola Austríaca adota um critério objetivo para definir comerciabilidade, e identifica duas origens objetivas e, portanto, dois mercados diferentes de crédito; ambos sujeitos a pressões diferentes e independentes sobre seus preços marginais. Com isso em mente, podemos analisar as semelhanças e diferenças entre as versões das teorias dos ciclos econômicos das duas escolas.

A Teoria Clássica dos Ciclos Econômicos

O grande mérito da Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos (TACE) foi o de ter refutado contundentemente as teorias que atribuíam o caráter cíclico da economia moderna ao sistema capitalista, ao “espírito animal”[22] ou a qualquer outra característica intrínseca à livre atividade bancária. Ao demonstrar como funciona um mercado livre de crédito e o quão essencial ele é para a manutenção e ampliação da atividade produtiva, os autores da escola austríaca identificaram que a origem dos ciclos econômicos destrutivos[23] é apenas uma: a intervenção estatal no mercado de crédito.

Um segundo mérito digno de nota é a rejeição à ideia monetarista de inflação constante atrelada à produção, proposta por autores como Milton Friedman. Ao demonstrar que a inflação tem efeitos que vão além da mudança de um suposto nível de preços e que a expansão forçada de crédito do Estado tem efeitos nocivos para a sociedade independentemente de sua relação com o que é produzido, a escola austríaca contribuiu para livrar o meio liberal de uma de suas crenças econômicas mais nocivas.

Para o mainstream austríaco, o fenômeno dos ciclos econômicos é essencialmente ligado à capacidade de o Estado aumentar o crédito disponível para além dos limites de mercado sem a possibilidade de falência. Em um sistema bancário livre, há sempre um risco envolvido para um banco que deseja conceder crédito além das suas reservas monetárias. Quanto mais um banco expande seu crédito, maior sua tendência a se endividar com outros bancos – se o banco A expande seu crédito e seus clientes usam esse dinheiro para transacionar com clientes dos bancos B e C, sua dívida líquida para com estes bancos aumenta[24]. Basta que um dos bancos tente liquidar dívida superior ao caixa do banco A que este decretará falência.

Quando o Estado, que pode não decretar falência por conta de seu monopólio do uso da força, interfere no sistema bancário agindo como emprestador de última instância de uma moeda baseada em dívida, ele e pode essencialmente manipular a taxa de juros sem estar sujeito aos mecanismos de controle que operam em um mercado financeiro livre. Esse plano de ação, porém, não é inócuo – o mercado de juros é responsável por regular o fluxo do dinheiro para as atividades produtivas. As arbitragens do empresário do mercado financeiro estabelecem o patamar de produtividade a partir do qual passa a valer à pena investir. Se a produtividade do meu empreendimento está abaixo da taxa de juros, significa que existem utilizações mais produtivas para os recursos disponíveis do que o meu projeto.

Dentro do paradigma austríaco, um aumento artificial da taxa de juros, chamado de “contração de crédito”, faz com que diversas atividades que seriam lucrativas em um ambiente livre deixem de ser executadas, causando uma crise de subutilização de capital. O que acontece na prática é, geralmente, o inverso. Reduzir artificialmente a taxa de juros, ou, popularmente, “expandir o crédito”, é uma estratégia comumente utilizada por governantes para se beneficiarem de uma falsa sensação de crescimento econômico.

Uma taxa de juros artificialmente baixa faz com que diversas atividades que não seriam lucrativas em um ambiente livre pareçam ser no curto prazo, o que inunda a economia com investimentos injustificados, ou malinvestments na terminologia de Mises, e cria a falsa impressão de crescimento econômico. Inevitavelmente, os agentes que compõem o mercado se reajustam, custosamente, às condições reais do mercado, reajustando seus preços e inviabilizando vários dos investimentos feitos no período inicial de expansão – a expansão inicial leva, por sua própria natureza, a uma posterior contração.

Apesar de todos os seus méritos, o caráter estritamente indutivo e a priori da teoria austríaca dificulta fazer previsões de caráter mais específico. Entendendo o modelo austríaco, fica fácil perceber como a manipulação da taxa de juros piora a qualidade de vida da população de um país, mas não é possível avaliar de forma objetiva o quanto o país está sendo afetado ou prever o quão perto ele está do próximo bust. Essa insuficiência teórica leva muitos economistas honestos e competentes à atrocidade metodológica de combinar o paradigma austríaco com instrumentos positivistas de análise.

Este texto[25] de Ronald-Peter Stoferle é um exemplo perfeito dos efeitos negativos trazidos pela insuficiência teórica da teoria austríaca dos ciclos econômicos. Nele, o autor tece uma crítica correta e bem-escrita às atitudes dos bancos centrais – em especial, do Banco Central Europeu – que resultam em uma taxa de juros negativa. Ao tentar calcular o quão baixas podem ficar as taxas de juros, porém, o autor adota uma metodologia positivista, citando uma estimativa do quanto os poupadores alemães seriam afetados com base em preços históricos, e não deduções praxeológicas. Ao fazer as devidas correções epistemológicas, os autores da Nova Escola Austríaca não apenas dão uma descrição mais detalhada do processo de formação do Boom e do Bust, como também apresentam de forma logicamente consistente variáveis que podem ser utilizadas para monitorar o estado da economia.

A Nova Teoria dos Ciclos Econômicos

O modelo de ciclos econômico da Escola Austríaca consiste em um momento de expansão de crédito, seguido de momento onde os agentes econômicos se adaptam à realidade, com a destruição de capital produtivo como consequência. O modelo descrito por Weiner, por outro lado, consiste de um momento de ascensão dos preços e da taxa de juros, seguido por um momento de queda de ambos, que culmina no fenômeno de backwardation – um spread positivo entre o preço presente e o preço futuro – do ouro que podemos presenciar hoje em dia em países como a Suíça e os Estados Unidos; fenômeno que, se não for remediado com a implementação de um sistema monetário honesto, leva ao colapso da moeda.

Se a capacidade do indivíduo de liquidar seus títulos e convertê-los em ouro ou prata está diretamente relacionada com a regulação do bid no mercado de crédito, o que acontece quando o governo impede esse tipo de transação, implantando uma “moeda” de curso legal cujo lastro é, justamente, a dívida pública? O que acontece quando, nesse cenário, o governo decide abaixar artificialmente a taxa de juros para um nível abaixo da preferência temporal do credor marginal? A resposta é relativamente simples: como o credor tem uma necessidade objetiva que precisa ser satisfeita, ele busca o bem que mais se aproxima de cumprir a função da moeda.

A moeda nada mais é que a commodity com o menor spread bid-ask, e sua função essencial é manter valor entre transações. Na ausência de moeda para a qual converter os títulos que não deseja manter, o credor marginal se vê forçado a comprar outras commodities para estocar valor. Quanto mais abaixo de sua preferência temporal está a taxa de juros, mais essa transação vale à pena, tanto para agentes individuais, quanto – e mais importante – para as empresas. Passa a ser mais lucrativo para um produtor de carros, por exemplo, comprar e manter aço, borracha e partes de veículos em estoque, alongando seu processo produtivo, do que emprestar o dinheiro.

O aumento na demanda por commodities faz com que o seu preço aumente, tornando cada vez mais lucrativo para o empreendedor praticar a arbitragem entre o crédito e as commodities, ou seja, tomar empréstimos para compra-las. O aumento da demanda por crédito impulsiona a taxa de juros para cima. Aprecie a ironia desse fato. O efeito final da tentativa dos planejadores centrais de reduzir a taxa de juros é nada mais que um aumento da taxa de juros.

Se o problema foi causado pela diminuição excessiva da taxa de juros, o seu aumento deve consertar o problema, correto? Não. O problema foi causado pela diminuição da taxa de juros a um patamar abaixo da preferência temporal, mas o que acontece com a preferência temporal dos agentes econômicos em um cenário no qual há uma tendência de alta nos preços das commodities? Isso mesmo, ela aumenta.

A tentativa do banco central de reduzir os juros acaba criando um fenômeno de feedback positivo: o aumento dos preços aumenta a taxa de juros que, mesmo abaixo da preferência temporal, aumenta mais ainda os preços. O fenômeno desse tipo mais conhecido é a microfonia, no qual o barulho residual captado por um microfone é amplificado e novamente absorvido pelo microfone em um ciclo que, se não for interrompido, acaba destruindo o equipamento. Infelizmente, a ação dos planejadores centrais não costuma incluir a aceitação dos danos já sofridos e o fim do ciclo – mas sim, num novo grito no microfone para tentar recuperar o amplificador.

O ciclo de aumento da taxa de juros chega necessariamente ao seu fim apenas quando a utilidade marginal decrescente dos bens e a elevada taxa de juros tornam as expansões de estoque, bem como a emissão de novos títulos, inviáveis. Por conta da atratividade artificial da arbitragem entre os juros e o aumento do estoque no momento anterior, as empresas, agora endividadas, precisam de liquidez para pagar suas dívidas. A busca por liquidez leva a um aumento na oferta de títulos, o que, por fim, pressiona a taxa de juros para um patamar menor.

Se a taxa de juros finalmente começa a diminuir e o ciclo inicial chega ao seu fim, a economia pode voltar a prosperar até que o banco central incorra novamente no mesmo erro, correto? Infelizmente, não. Devido à saturação dos estoques de bens, a alta taxa de juros agora está acima da produtividade marginal, que regula não o bid, mas o ask do mercado de crédito. É nesse momento que o ciclo econômico identificado pela Nova Escola Austríaca se diferencia definitivamente do modelo clássico da Escola Austríaca. Ao invés de simplesmente “se reajustar aos fatores reais” com a liquidação dos investimentos mal feitos, há um segundo momento de destruição de capital que necessariamente ocorre com a queda dos preços e da taxa de juros.

Com a taxa de juros acima da produtividade marginal, um novo fenômeno de feedback positivo ocorre. Da mesma forma que a arbitragem entre os juros e o estoque no momento anterior, agora se torna lucrativo liquidar capital produtivo para investir em títulos, o que diminui a produtividade marginal e a taxa de juros ao mesmo tempo. Voltemos ao exemplo de produtor de carros: ele agora tem seu estoque saturado, de forma que a taxa de juros do mercado está acima da sua produtividade marginal. O mais lucrativo para ele é liquidar seu capital para comprar títulos.

Além da necessidade de liquidez, há uma segunda pressão sendo exercida sobre o produtor. Operar em um cenário de juros decrescentes significa competir em um mercado onde os novos entrantes sempre tem acesso a juros mais baratos que os produtores de longa data. Isso significa que há uma pressão constante para abaixar os preços, o que força vários produtores a se endividarem cada vez mais a juros cada vez menores, tornando as empresas cada vez mais alavancadas e, consequentemente, frágeis. Se o cenário soa familiar ao leitor, é porque nos encontramos nele no presente momento.

Assim como a microfonia, se não for interrompida, acaba por destruir o sistema de som, a emissão de crédito fraudulento pelo Estado destrói capital, em ambas as fases do ciclo econômico, diminuindo progressivamente o poder de compra do retorno sobre o investimento[26]. Por fim, a fraude institucionalizada dos bancos centrais acaba por destruir seu próprio dinheiro, o que acontece por meio da backwardation permanente do ouro.

Backwardation do Ouro

Quando se lida com um mercado de futuros, ele geralmente está em contango ou em backwardation. Contango é a situação na qual o bid futuro de um bem está maior que seu ask no presente (ou spot). Isso é um sinal de abundância do bem no presente em relação às expectativas futuras – o mercado “premia” o indivíduo que comprar o bem agora e estocar para vender no futuro, quando houver escassez. A situação inversa, na qual o ask futuro de um bem está menor que o seu bid no presente, se chama backwardation. Nesse caso, é possível lucrar vendendo o bem no presente e comprando o mesmo bem de volta no futuro. Em ambos os casos, a arbitragem lucrativa tende a igualar os preços.

Se a escassez de um bem é o que causa backwardation, metais monetários como o ouro e a prata, cujo estoque presente equivale a décadas de produção, nunca deveriam estar sujeitos a esse fenômeno – e normalmente não estavam, até a crise financeira de 2008. Após o ápice da crise, diversas instâncias de backwardation do ouro temporárias começaram a ocorrer – backwardation que não era encerrada por arbitragem. Isso significa que a comerciabilidade do dólar caiu a ponto dos comerciantes de ouro não estarem dispostos a vender para comprar posteriormente, apesar de uma margem de lucro significativa.

Caso o fenômeno tivesse ocorrido apenas após o ápice da crise, ele poderia ser atribuído a um medo irracional dos produtores e comerciantes. A realidade, porém, é que o fenômeno continua ocorrendo até os dias de hoje, 10 anos após o estouro da crise, de forma cada vez mais frequente e intensa[27]. Caso o dólar continue em deterioração, a tendência é que a economia atinja um estado de backwardation permanente, no qual o bid de dólar em ouro deixe de existir completamente – em outras palavras, uma situação onde o mercado de metais monetários, mais sensível que os outros à desvalorização do dinheiro, deixe de aceitar o dólar.

A consequência de uma backwardation do ouro é a progressiva expansão do fenômeno para os mercados adjacentes. Em um primeiro momento, empresários de setores próximos à produção e comércio de ouro teriam de aumentar suas reservas em ouro, aumentando seu valor como meio de troca em relação ao dólar. Em pouco tempo, essa mesma pressão começa a ser exercida pelos empresários desses setores nos empresários com os quais lidam. Na ausência de qualquer pressão no sentido contrário, essa pressão de mercado eventualmente culmina no crescimento astronômico dos preços em dólar e no colapso da moeda.

O leitor que desejar explorar o assunto mais a fundo, vai ter a agradável surpresa de perceber que, na contramão da economia austríaca mainstream, os autores Nova Escola Austríaca não recorrem à metodologia positivista para complementar seu trabalho com análises empíricas, desenvolvendo seus próprios índices e formas de monitoramento. O leitor que se interessar pelo assunto e decidir explora-lo mais a fundo, pode contar com uma série de análises levando em conta o histórico da taxa de juros nominal[28], a variação no poder de compra do retorno sobre o investimento (Yield Purchasing Power) e mudanças na relação entre os preços presentes e futuros dos metais monetários em diversos países.

Os melhores lugares para começar a estudar mais a fundo as ideias dessa escola, que vão de modelos das funções catalíticas operantes no mercado de crédito e os efeitos do ciclo de crédito no mercado de aposentadorias às minúcias das aplicações práticas da teoria, tanto em um contexto comercial quanto na execução um retorno ao regime de moeda honesta, são o site do professor Antal Fekete (http://professorfekete.com) e os sites de Keith Weiner (https://keithweinereconomics.com e https://monetary-metals.com).


[1] O individualismo metodológico é a ideia de que toda ação, ainda que seja  imbuída de significado coletivo, é realizada por indivíduos. Nas palavras de Mises “É o carrasco, e não o estado, quem executa um criminoso”.

[2] Intrinsicismo, Subjetivismo e Objetivismo são três visões essencialmente diferentes sobre a verdade, os conceitos e as qualidades dos existentes. Intrinsicismo é a crença de que as qualidades que percebemos nos existentes são características intrínsecas a eles e que, portanto, conceitos são criados e a verdade é atingida por uma absorção passiva dessas características pela consciência. Exemplos de intrinsicismo são as ideias de essência aristotélica, formas platônicas ou revelação divina cristã.

Subjetivismo é a crença de que as qualidades são essencialmente criadas pela mente humana e que, portanto, conceitos são meras construções intelectuais sem conexão com a realidade e a verdade é algo inexistente. Exemplos de subjetivismo são o materialismo histórico marxista e a epistemologia kantiana.

O Objetivismo se opõe a essas duas visões, afirmando que as qualidades percebidas são uma relação entre os existentes e a consciência, e que a verdade pode ser atingida através de um processo ativo da consciência: a integração não-contraditória da informação adquirida através dos sentidos.

[3] Aristoteles ja propunha uma teoria de valor semelhante em De Anima p. 25–38

[4] Principles of Economics, 1871 p. 53-54.

[5] Marginalismo é a ideia de que o valor de um bem não é algo intrínseco nem estável, mas varia de acordo com a quantidade do mesmo bem que um indivíduo ja possui. Adotando o marginalismo, não faz sentido falar do valor de um copo d’água, mas apenas do valor do próximo copo d’água a ser consumido no contexto em questão.

[6] O singularismo metodológico é a ideia de que cada indivíduo, ainda que compartilhe de características comuns, é único em suas capacidades e valorações, o que impossibilita a construção intelectual de “indivíduos médios”.

[7] Human Action, 1949 – p.43-44

[8] The Virtue of Selfishness, 1964 – p.71 – Tradução Livre

[9] Em Teoria e história e em The ultimate foundation of economic science, Mises fala sobre a ciência do funcionamento do processo valorativo do indivíduo, que chamou de Timologia, que seria um ramo da história, e não da economia.

[10] Economic Science and The Austrian Method, 1995 – p.17

[11] Probabilidade de classe é a forma de análise probabilística aplicada a eventos homogêneos, através da qual se pode prever que em x número de eventos, y terão o resultado a. Probabilidade de caso é a forma aplicada a eventos únicos, e consiste na análise dos fatores que influenciam este evento para tentar prever seu resultado. O movimento de prótons e elétrons, por exemplo, pode ser analisado através da probabilidade de classe, enquanto que a ação humana deve ser analisada pela probabilidade de caso.

[12] O método de construções imaginárias consiste em criar construir versões extremamente simplificadas do mercado de forma deliberada e, progressivamente, torna-las mais complexas e mais próximas da realidade de forma a ressaltar características dos mercados reais.

[13] Para se tornar uma teoria, é necessário que uma hipótese tenha comprovação empírica. Não há nenhuma comprovação empírica da “Teoria” Quantitativa de Moeda até os dias de hoje.

[14] A relação estoque-por-fluxo é a quantidade de tempo, assumindo o fluxo presente de produção de um bem, que demoraria para produzir a quantidade desse mesmo bem que ja existe em estoque.

[15] https://monetary-metals.com/wp-content/uploads/2017/10/Weiner-K-Dissertation-A-Free-Market-for-Goods-Services-and-Money.pdf – p.35

[16] Bid e ask são os dois preços marginais dos quais tratamos na primeira parte deste texto. O bid, ou “preço ofertado”, é o preço mais baixo que um individuo que precise vender com urgência consegue no mercado, definido pela recusa do produtor marginal em vender mais barato. O ask, ou “preço pedido”, é o preço mais alto que um indivíduo que precise comprar com urgência consegue no mercado, definido pela recusa do consumidor marginal em comprar mais caro.

[17] [17]VON MISES, Ludwig. Ação Humana, 1949. p.607

[18] Soberania do consumidor é o conceito praxeológico que denota a capacidade de  consumidor escolher o que será produzido em um mercado livre, visto que é ele que, ao comprar ou se abster de comprar um produto, decide se o empreendedor terá lucro ou prejuízo.

[19] Varejista e fornecedor, nesse contexto, não são profissões, mas posições relativas de mercado, que podem ser ocupadas pela mesma pessoa em momentos diferentes. Um produtor de pães, por exemplo, pode ser um varejista que emite notas para seus fornecedores para fabricar pão em sua padaria e, ao mesmo tempo, ser um fornecedor que aceita notas de um serviço de buffet.

[20] Como explicado mais a fundo por Antal Fekete em “The Two Sources of Interest”, o prazo de 90 dias não é arbitrário, mas corresponde a uma estação do ano, medida de tempo de produção de diversos bens agrários. Demandas que vão além de uma estação e, portanto, de uma temporada produtiva do setor agrário são consideradas demandas de longo prazo.

[21]  https://mises.org/library/real-bills-phony-wealth

[22] “Espíritos Animais” é o termo que John Maynard Keynes utiliza em The General Theory of Employment, Interest and Money para denotar o conjunto de instintos e emoções que fazem o ser humano agir de forma irracional nos mercados.

[23] Vale lembrar que nem todo ciclo econômico é destrutivo. É possível, em um mercado livre, haver uma expansão de crédito maior do que o ideal, seguida de uma contração. Esse caso, porém, consiste apenas de um erro de cálculo de um ou outro banco, que assume o prejuízo, sem danos expressivos para a economia como um todo.

[24] Suponha que o banco A e o banco B estão alavancados da mesma forma, ou seja, a relação entre as dívidas e a moeda disponível de ambos é a mesma. Imagine que o banco A expande seu crédito e concede empréstimos aos seus clientes, enquanto que os clientes do banco B, não tem acesso a esse crédito adicional. A tendencia é que clientes do banco que expandiu o crédito consumam mais que os clientes do banco que não o fez, acarretando em uma transferencia líquida de encaixe de A para B.

[25] (https://mises.org/wire/negative-interest-rates-how-low-can-they-go)

[26] O poder de compra do retorno sobre o investimento, ou Yield Purchasing Power, é a variável principal utilizada por Keith Weiner em sua análise histórica sobre os danos do ciclo de crédito na economia. O leitor interessado no assunto pode aprender mais nessa palestra de Weiner sobre o assunto.

[27] O site Monetary Metals possui uma seção gratuita com o monitoramento do mercado de ouro e prata que frequentemente noticia esse fenômeno.

[28] Diversos economistas – inclusive economistas que se denominam “austríacos” – utilizam a “taxa real” de juros em suas análises. A “taxa real” consiste no valor legal prometido pelo Estado, subtraída por alguma medida arbitrária do nível de preços, como o Índice Geral de Preços (IGP) ou o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Por conta de seu fator arbitrário, a “taxa real” não tem significado cognitivo algum. Se a meta de uma pesquisa é saber quanta moeda falsificada o governo produz, a variável a ser utilizada deve ser a quantidade de notas que o governo pode, de fato, produzir através da emissão de instrumentos fraudulentos de crédito – a “taxa nominal” de juros.

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