Pragmatismo, progressivismo e o fascismo americano

O Objetivismo é uma filosofia essencialmente americana. Foi criada por Ayn Rand, mulher que fugiu da Rússia para os Estados Unidos e que, assustada com os ataques à cultura que admirava, tentou proteger a essência do que tornava os Estados Unidos um lugar tão formidável. Desde então, essa nação tem sido o centro intelectual do Objetivismo e o lugar onde essa filosofia se tornou mais influente, como apontou uma pesquisa[1] da Biblioteca do Congresso Americano que elegeu a A revolta de Atlas como o segundo livro mais influente do país, atrás apenas da Bíblia. Existe, todavia, uma filosofia originalmente americana ainda mais antiga que o Objetivismo, da qual pouco se ouve falar, mas cujos efeitos são sentidos até hoje: o Pragmatismo.

Pragmatismo é um sistema filosófico criado no final do século XIX, que conquistou a hegemonia cultural e a manteve praticamente até o final da década de 1940 do século passado, cunhando expressões como “ser pragmático” ou “visões progressistas”. O objetivo deste artigo é fornecer uma análise geral da filosofia pragmatista à luz do Objetivismo, destacando seus méritos e deméritos, bem como tornando clara as influências desse movimento na sociedade contemporânea.

Dentre os diversos autores considerados pragmatistas, três se destacam: Charles Sanders Peirce (1839–1914), considerado o pai do Pragmatismo e seu filósofo mais prolífico; William James (1842 – 1910), que além de filósofo foi pioneiro do ensino de psicologia nos EUA e, possivelmente, o mais popular dos três; e John Dewey (1859 – 1952), o mais jovem e mais politicamente ativo dos três grandes pragmatistas, responsável por, dentre outras coisas, reformar o sistema de ensino americano. Como todo sistema filosófico, o Pragmatismo não é uma construção intelectual uniforme, mas possui divergências, em sua maioria superficiais, entre os diversos autores – divergências essas que serão mencionadas quando relevantes.

A única divergência que deve ser citada com antecedência é entre a metafísica e a epistemologia de C.S. Peirce e as de James e Dewey, as quais são bastante semelhantes entre si. Essas divergências levaram Pierce posteriormente a cunhar o termo pragmaticismo visando diferenciar sua filosofia da dos outros dois autores e, portanto, trataremos delas de forma separada. A ética e a consequente filosofia política dos três autores, todavia, convergem a ponto de serem essencialmente iguais, então, considero o Pragmaticismo como uma vertente do pragmatismo, e não uma filosofia diferente, e devido a isso trataremos das duas em uma mesma seção.

O propósito desse artigo é analisar o Pragmatismo enquanto sistema filosófico integrado. Para isso, começaremos analisando as duas vertentes de metafísica e epistemologia do movimento à luz do Objetivismo. Posteriormente, exploraremos as consequências da epistemologia pragmatista na ética, ramo em que o pensamento dos três autores passa a convergir, e as consequências desse sistema ético em uma escala social. Por último, finalizaremos com uma análise da estética pragmatista, contrapondo-a à filosofia da arte objetivista e ao Realismo Romântico de Rand.

A Metafísica e Epistemologia de C. S. Peirce

A visão de Peirce a respeito da natureza fundamental da realidade pode ser resumida em duas características básicas: o Tycheísmo e a intermutabilidade da mente e matéria. O Tycheísmo (de Tyche, deusa grega da fortuna) é uma visão de mundo que pode ser comparada à de Heráclito de Éfeso, segundo a qual a existência está em perpétuo estado de mudança. A intermutabilidade da mente e da matéria é uma visão de mundo que pode ser comparada ao Panteísmo de Spinoza, segundo o qual o universo é dotado de um tipo de mente. Analisaremos essas duas características a seguir.

C.S. Peirce, com base na observação de que experimentos empíricos não produzem dados perfeitamente correspondentes a modelos, mas sim séries de dados aproximáveis a um modelo, concluiu que as leis que regem o universo não são leis absolutas, mas hábitos.  Segundo o autor, o acaso é uma faceta fundamental da existência e, por mais que ela seja regida por certas leis, existem fatores que operam fora do alcance dessas leis.

O acaso metafísico era algo de tal importância para o autor que ele chega a propor uma cosmogonia[2] com base no acaso. Segundo o autor, o acaso absoluto pode, ao longo do tempo, desenvolver hábitos, que explicariam as regularidades parciais observadas na natureza. Essa visão leva Peirce a adotar um falibilismo[3] ainda mais intenso que o dos neopositivistas (dos quais tratamos em um texto anterior) e do próprio Immanuel Kant (1724 – 1804), sustentando que o conhecimento humano é falho não apenas por causa da imperfeição da consciência humana, mas também por conta da natureza dos existentes. Para o autor, não existe base filosófica – apenas pragmática – para a indução; não se pode assumir que uma regularidade observada através da experiência dos sentidos se manterá, pois a natureza dos existentes pode mudar de forma randômica a qualquer momento.

A intermutabilidade da mente e da matéria consiste em enxergar a mente não como uma propriedade humana ou animal, mas como algo que permeia todos os existentes – para ele, a matéria é o resultado de uma “mente universal” que se exauriu e assumiu um hábito. Em outras palavras, a lei da gravidade existiria devido ao fato de que essa mente universal teria exaurido sua capacidade de formular relações randômicas entre as massas dos existentes e sua atração, e assumido o hábito de associar grandes massas à atração de mais matéria.

Influenciado por Duns Scotus, Peirce acreditava na existência real das abstrações não da mesma forma que Platão, com a existência de uma realidade perfeita diferente da que conseguimos perceber, mas como esses “existentes mentais”. Essa crença não apenas possibilitava, mas exigia uma espécie de crença em Deus – a “mente” universal correspondente à forma mais elevada de abstração que foi deveras relevante às expressões políticas do Pragmatismo, como veremos mais adiante.

A intermutabilidade da mente e da matéria é a ponte entre a metafísica e a epistemologia de Peirce. Da mesma forma que a realidade, dotada de mente universal, começava no caos absoluto e, aos poucos, adquiria hábitos, a mente humana começava no caos da infância e, aos poucos, adquiria hábitos. Para o autor, não se deve conceptualizar o pensamento como uma série de decisões voluntárias subsequentes, mas como períodos intercalados de ação automática por hábito e períodos onde o hábito é insuficiente para resultar em comportamento, e se torna necessário pensar.

Na realidade metafísica e epistemologicamente caótica de Peirce não faz sentido pensar em sistemas complexos e integrados de pensamento, visto que a natureza mutável da realidade e as limitações da mente humana impedem construções dessa escala. Para o autor, a atitude epistemológica correta era baseada justamente na natureza mutável da consciência; para Peirce, a cada momento, existiam dados inquestionáveis e dados questionáveis, que poderiam mudar em um momento posterior.

O conhecimento pragmático é adquirido ao se testar hipóteses questionáveis no momento de forma empírica, ignorando o que se toma subjetivamente como certo num determinado momento. Dessa forma, experimentos que se contradissessem não seriam necessariamente excludentes enquanto teorias, mas deveriam ser pensados como dois instrumentos diferentes para a ação.

A Metafísica e Epistemologia de James e Dewey

As teorias metafísicas de James e de Dewey, apesar de divergências superficiais, consistem basicamente em uma negação da metafísica. Ambos os autores adotam uma forma da dicotomia noumena-phenomena[4] e tratam o conhecimento sobre os fatos fundamentais e imutáveis como inalcançáveis. Para ambos, o objetivo da metafísica é a análise da experiência humana – dos fenômenos – e o critério a ser utilizado para a veracidade das proposições não é a sua correspondência com os fatos da realidade, mas a utilidade prática da crença nessas proposições para a vida do indivíduo.

James adota uma versão mais branda dessa metafísica pragmatista, afirmando que os fatos essenciais da experiência humana podem ser descobertos por meio da observação empírica do funcionamento da psique humana, mas confirmados pelos efeitos práticos positivos das crenças. Para ele, as características observáveis da mente, como a fluidez do processo mental, a capacidade parcial de foco e o fato de que todo pensamento é “possuído” por um indivíduo levam necessariamente a algumas experiências universais, como o fato de que todos os seres humanos percebem o mundo tanto na forma de objetos concretos quanto na forma de abstrações físicas e matemáticas.

Em The Will to Believe (A Vontade de Acreditar), James defende que, em situações em que uma ação é incerta, a especulação é inútil, cabendo ao indivíduo escolher a crença que lhe parecer mais útil. Dessa forma, o autor justifica sua crença tanto no livre-arbítrio, quanto na existência de Deus e na imortalidade. Em consonância com a máxima pragmatista de Peirce, segundo a qual a concepção de um objeto é a concepção dos efeitos práticos desse objeto, James provê, em Pragmatism (Pragmatismo), um exemplo perfeito de sua visão sobre crenças quando fala que:

“Se ideias teológicas provam ter valor na vida concreta, para o pragmatismo, elas são verdadeiras, posto que tem uma utilidade. O seu grau de veracidade depende inteiramente da sua relação com outras ideias que devam ser reconhecidas”[5].

Dewey adota uma versão ainda mais radical da visão pragmática, segundo a qual a investigação metafísica e epistemológica é irrelevante para a descoberta de princípios. A única forma de descobrir a veracidade de um princípio é aplicando-o e observando os resultados práticos dessa aplicação.

Em seu livro Knowing and The Known (algo como O Saber E O Que É Sabido), Dewey atribui os problemas da metafísica e epistemologia clássicas ao uso impreciso de conceitos que refletem eras históricas (de forma semelhante aos estados do conhecimento do Positivismo Clássico, que analisamos em um texto anterior). Para o autor, a díade metafísica-epistemologia teve seu início com o estágio de auto-ação, em que os fenômenos são atribuídos a entidades que realizam ações por causa de sua natureza intrínseca, como no animismo primitivo. Esse estágio é seguido, mas ainda coexiste, com o estágio do fenômeno entendido como resultado da interação entre entidades, conceptualizadas como sistemas que se equilibram em diferentes níveis. Exemplos desse segundo estágio incluem a Física Newtoniana, com sua lei de ação e reação, e a Filosofia Aristotélica, com sua ideia de interação entre essências.

Após o estágio de auto-ação e de interação, Dewey sugere que a sociedade começa a adotar um terceiro estágio, mais avançado, mesmo que ainda persistam as formas antigas de conceptualização. Esse último estágio, chamado de estágio de transação, é semelhante ao estado positivo de Comte, na medida em que é caracterizado pelo abandono da ideia de naturezas, essências ou causas, e pela adoção de uma forma de conceptualizar que entenda os fenômenos como resultados das relações de todas as entidades de forma simultânea.

Apesar de suas diferenças, tanto James quanto Dewey abandonam a busca pelo conhecimento sobre a natureza da realidade, que consideram infrutífera, em prol da busca por regularidades. Mais importante que isso, a epistemologia de ambos, assim como a de Peirce, sustenta que todo conhecimento é transitório e apenas instrumental à ação, sendo a utilidade da crença o critério de validação de sua veracidade. Qual o critério pelo qual se mede a utilidade da crença não é um tema abordado por nenhum dos três autores.

A resposta do Objetivismo

O Pragmatismo possui seus méritos. Seus autores tentaram rejeitar o racionalismo cartesiano e o idealismo alemão de Kant e Hegel, apesar de adotarem a dicotomia noumena-phenomena que caracteriza o pensamento de ambos. Os autores também pensaram a filosofia como algo prático, colocando o bem-estar do homem na Terra como o objetivo final do pensamento filosófico – o fato de que isso fazia parte da tradição intelectual americana desde sua fundação diminui, mas não apaga, o mérito dos autores. Dito isso, podemos passar, sem medo de cometer alguma injustiça, para a crítica objetivista a esse movimento, cuja hegemonia resultou em uma verdadeira catástrofe sociocultural para os Estados Unidos.

Para entender a crítica objetivista à metafísica de Peirce é necessário entender o que Rand chama de primazia da consciência. A primazia da consciência é o resultado da aplicação errônea de conceitos criados através da observação da própria mente para a totalidade da existência. Este erro se manifesta de forma individual, com a crença de que a mente de cada indivíduo cria seu próprio universo; de forma social, com a crença de que a realidade é criada através do consenso entre os indivíduos por meio de uma suposta consciência coletiva; e de forma sobrenatural, com a crença de que a realidade é uma manifestação da consciência de um ser divino.

Em contraste à primazia da consciência, o Objetivismo adota a primazia da existência – a ideia de que a existência existe de forma independente da consciência de qualquer ser humano. Pode-se validá-la de forma empírica com o simples experimento de se tentar mudar uma característica da realidade apenas com a força de vontade e, inexoravelmente, falhar repetidamente.

O Pragmatismo adota a primazia da consciência em sua versão sobrenatural. É justamente essa visão metafísica, que se assemelha a uma secularização do pensamento religioso do milagre como algo possível, que dá origem ao Tycheísmo. O Tycheísmo – a crença na eterna mutabilidade da existência – nada mais é do que a negação de um dos axiomas primários[6] do Objetivismo. O axioma da identidade é a proposição autoevidente de que um existente existe da forma como ele existe – ou seja, tudo que existe possui uma natureza específica. Essa ideia, já adotada com outra roupagem pela filosofia clássica grega, é validável pela observação de que a realidade não permite contradições; em outras palavras, não há nenhuma evidência perceptual de que algo pode ser simultaneamente quente e frio, vermelho e azul ou, em termos mais abstratos, A e não A.

Peirce, ao defender, de forma semelhante a Ayn Rand, que os sentidos eram a única fonte de informação, mas negar a natureza dos existentes, basicamente diz que a experiência é a única forma de se adquirir conhecimento ao mesmo tempo em que afirma que a natureza da realidade impossibilita a produção de conhecimento. Explicitando o pensamento do autor dessa forma, a contradição em seu sistema fica clara.

Apesar dos defeitos da metafísica de Peirce, sua adoção de alguma espécie de metafísica dá uma coesão lógica ao seu sistema que inexiste no pensamento de James e Dewey. Como normalmente acontece com pensadores que rejeitam um dos ramos da filosofia, essa negação explícita apenas faz com que eles adotem implicitamente a metafísica de outro autor – no caso de James e Dewey, a metafísica kantiana que eles criticam.

Como qualquer ideia, a negação da metafísica de James e Dewey não existe num vácuo, mas parte do pressuposto de uma divisão entre a realidade tal como ela é e a realidade tal como é percebida. Essa divisão, por si só, é uma visão metafísica, visto que pressupõe uma característica fundamental e eterna dos fatos da realidade.

Na contrapartida do Pragmatismo e do Idealismo Alemão, o Objetivismo rejeita a dicotomia noumena-phenomena em todas as suas possíveis versões. Como exposto por Leonard Peikoff no epílogo à Introdução à Epistemologia Objetivista, essa dicotomia pressupõe que, como a percepção humana é imperfeita, há sempre uma diferença entre o que se percebe e o que realmente existe, e isso implica na rejeição de qualquer conhecimento sobre os fatos da realidade. Ao mesmo tempo, ignora-se o fato de que a imperfeição da percepção humana é um fato percebido justamente através dos sentidos.

Na Introdução, Ayn Rand expõe a dicotomia kantiana e sua contradição de forma ainda mais simples. Segundo a autora, Kant afirma que a consciência é incapaz de perceber a existência porque possui identidade, ignorando o fato de que todos os existentes possuem identidade. Em outras palavras, perceber a realidade é, necessariamente, perceber a realidade de alguma forma; para Rand isso é um fato simples, enquanto para Kant, é uma razão para descartar o conhecimento.

O Objetivismo não sustenta que a mente humana é perfeita, e que o ser humano é capaz de perceber toda a extensão da realidade de forma automática e infalível. Pelo contrário, justamente por ter uma percepção limitada é que o ser humano precisa conceptualizar. Justamente por ter uma faculdade conceptual falível é que o ser humano precisa de um método. Esse método é a lógica, definida como a integração não contraditória daquilo que é apreendido pelos sentidos. Em outras palavras, ser incapaz de saber tudo não implica em ser incapaz de saber algo.

A ética experimental e altruísta

A epistemologia e a ética pragmática estão tão intimamente ligadas que é difícil tratar as duas de forma tão separada. Todos os três autores afirmam que, até certo ponto, é possível conceptualizar, e que essas conceptualizações servem para guiar as ações do ser humano. Apesar disso, o Pragmatismo nega a capacidade e a necessidade de se integrar as conceptualizações em abstrações mais elevadas, impossibilitando tanto modelos científicos de larga escala quanto um código coeso de abstrações normativas, seja ele ético ou estético.

Apesar da rejeição de um código ético único e integrado, o Pragmatismo não rejeita a ética enquanto ciência normativa. Apesar de todas as diferenças metafísicas e epistemológicas, todos os autores defendem uma abordagem aberta e experimental, segundo a qual o progresso da Ética se daria através do estudo das diferentes escolas de pensamento e a aplicação dos diferentes princípios em diferentes situações, com a posterior observação dos resultados.

Além de experimental, a ética do Pragmatismo é radicalmente relativista. A visão de que o conhecimento – de certa forma, até a personalidade humana – é algo que não pode ser integrado leva à visão de que, em um dado momento, há sempre alguns dados que podem ser questionados frente a outros dados que se supõem, automática ou arbitrariamente, a depender do autor, serem inquestionáveis. Essa visão epistemológica leva à visão ética de que não há finalidade última no comportamento do indivíduo, mas que, para cada decisão tomada, há um fim momentaneamente inquestionável em relação ao qual o indivíduo pode escolher diversos cursos de ação. A ação correta, para o Pragmatismo, é a que leve a esse fim de forma mais eficiente, ainda que posteriormente se questione a validade desse fim em relação a outros valores.

Mesmo afirmando de forma explícita que não há valores válidos para toda e qualquer situação, a influência do pensamento alemão e dos ideais cristãos nos três autores faz com que um princípio comum emerja de forma constante no relativismo pragmático: o altruísmo. Não há uma defesa explícita e consistente do princípio do autossacrifício em nenhuma obra do Pragmatismo, visto que a filosofia se opõe a essa atitude em relação a princípios. Ainda assim, em The Doctrine of Chances (A Doutrina dos Acasos), Peirce afirma que “aquele que não sacrificaria sua própria alma para salvar o mundo inteiro é, ao meu ver, ilógico em todas as suas inferências, coletivamente”[7].

O altruísmo não é defendido ardentemente apenas por Peirce; Dewey, em seu livro Ethics (Ética), sustenta que a adaptação do indivíduo à promoção dos fins coletivos da sociedade é a questão central da Ética enquanto ciência. Suas reformas educacionais tinham como foco a adaptação da criança ao meio social e às demandas altruístas e democráticas da vida em sociedade, em detrimento do que ele enxergava como a aridez do conhecimento puro. Até mesmo James, o pragmatista que mais sacrifica a ética altruísta em prol do relativismo, fala em O Equivalente Moral da Guerra, das virtudes da “solidariedade social” e do sacrifício em nome da pátria e do bem comum.

Apesar de ambos os sistemas adotarem uma visão teleológica da ética e considerarem explicitamente o sucesso e bem-estar do ser humano como meta, a ética do Pragmatismo é completamente incompatível com o Objetivismo. O estudo dos diferentes sistemas éticos, como propõem os pragmatistas, é importante para qualquer pessoa interessada em estudar Filosofia a fundo, independentemente dessa pessoa adotar ou não os princípios objetivistas. A ideia de que um indivíduo pode ter um código moral composto por partes não integradas de outras filosofias escolhidas de acordo com os caprichos do momento, todavia, é absurda; para se definir o que é útil ou não, ainda que apenas no curto prazo, é necessário definir um objetivo.

A ideia de que objetivos simplesmente aparecem de forma automática na mente do indivíduo consiste não apenas na rejeição de uma moralidade racional, mas na ideia de que as emoções de um indivíduo devem guiar suas ações. De acordo com Rand:

“Emoções são o resultado automático dos julgamentos de valor do homem, integrados automaticamente por seu subconsciente; emoções são estimativas daquilo que promove os valores do homem ou os ameaça, daquilo que é para ele ou contra ele – calculadoras rápidas como um raio dando a ele a soma de seu lucro ou perda.”[8]

Sendo emoções estimativas de valoração moral, elas também estão sujeitas aos critérios da valoração moral, não sendo informações soltas na mente do indivíduo, em qualquer que seja o contexto. Falar que emoções são estimativas de valoração moral não é o mesmo que dizer que um indivíduo tem, ou deveria ter, pleno controle consciente de suas emoções – muito pelo contrário. As emoções, assim como os perceptos[9], fazem parte de um mecanismo automático e respondem aos valores que o indivíduo já adota, conscientemente ou não, no momento em que a emoção é evocada.

Assim como o relativismo e emocionalismo éticos do Pragmatismo, a ética do Objetivismo é a simples aplicação de sua epistemologia à prática humana. Rand propõe uma Ética racional, desenvolvida através da identificação das características essenciais do Homem (i.e. aquilo que o diferencia dos outros existentes). O Homem é um ser vivo e, como tal, precisa agir visando alcançar alguns objetivos específicos para se manter vivo. Diferentemente dos outros seres vivos, porém, o Homem é volicional e racional, ou seja, não age simplesmente por instinto, mas precisa escolher seus objetivos, e tem a capacidade de integrar os dados perceptuais em conceitos.

Dizer que a moral objetivista é um código racional e integrado baseado na natureza do homem não é o mesmo que dizer que todas as ações de um indivíduo estão prescritas pelo sistema filosófico – a ética estabelece apenas as regras gerais que se estendem a todos os seres humanos. Cabe a cada indivíduo conhecer a sua própria natureza – aquilo que os diferencia dos outros seres humanos – e escolher seu próprio caminho na vida.

Diferentemente do relativismo e do emocionalismo, o altruísmo enquanto princípio ético não decorre da epistemologia pragmatista, mas é defendido por seus filósofos da mesma forma. Na contramão desse pensamento, Rand defende o egoísmo racional. Egoísmo não deve ser entendido como a disposição de tomar por força, mentira ou choro a propriedade de outrem – isso é trocar a vida de um ser racional que produz seu próprio valor pela vida de um parasita que depende da produção de terceiros. Egoísmo é a noção de que o valor último da vida de um indivíduo, e aquele que pauta todos os seus outros valores, é a sua própria felicidade, definida como o estado de consciência advém da concretização de valores não contraditórios.

Se o Pragmatismo não provê um sistema moral para resolver conflitos entre os homens, como deve se organizar uma sociedade que adote sua filosofia? É possível imaginar os efeitos do relativismo, emocionalismo e altruísmo na vida de um indivíduo, mas quais são as consequências de se adotar os valores do pragmatismo em larga escala? Felizmente, para a nossa análise – e, infelizmente, para milhões de americanos – a experiência histórica responde a nossa pergunta com a manifestação política da hegemonia cultural do Pragmatismo na primeira metade do século passado: o Progressivismo.

O Progressivismo           

O Progressivismo foi um movimento reformista em larga escala nos Estados Unidos que contou com líderes em todo o espectro político, de republicanos como Herbert Hoover e William Howard Taft, a democratas como Woodrow Wilson e Franklin D. Roosevelt. O movimento era baseado na crença pragmatista de que as leis e instituições políticas não deveriam se guiar por princípios, mas que, à medida em que a sociedade mudava, o governo e suas políticas deveriam mudar também.

A crença na engenharia social por meio de políticas públicas, que domina a esquerda não-marxista até os dias de hoje, teve sua origem e apogeu na era progressivista. A hegemonia do relativismo ético permitiu que os governantes não precisassem se submeter à Constituição Americana, enquanto que a crença no altruísmo e no coletivismo os instigou a inverter a lógica da sociedade americana como um todo – de uma sociedade baseada nos direitos individuais ao ideal socialdemocrata que guia o Partido Democrata e influencia o Partido Republicano até os dias de hoje.

A crença em Deus e na utilidade dos valores cristãos por parte dos autores pragmatistas permitiu que o movimento pragmatista cooptasse e fosse altamente influenciado pelo movimento do Evangelho Social – uma espécie de Teologia da Libertação protestante que visa transformar a sociedade em uma versão terrena do Paraíso. Essa influência intensificou ainda mais o viés altruísta e “puritano” do movimento, levando não só à proibição do álcool em 1919, e ao subsequente crescimento da Máfia, mas a políticas de “purificação social”.

As políticas visando a “purificação social” tiveram, estranhamente, um efeito positivo: o sufrágio feminino. Ao contrário do que se poderia imaginar, o voto feminino nos EUA não se tornou uma realidade devido à tradição de direitos individuais, mas como uma tentativa progressivista de melhorar a qualidade das instituições políticas incluindo o voto feminino, considerado mais “espiritualmente puro”, que o dos homens. Apesar desse benefício eventual, as consequências nefastas da ideologia por trás dessa mudança fazem seus avanços nos direitos individuais parecerem ínfimos.

Na mesma onda de purificação social, todos os estados do Sul e muitos estados do Norte aprovaram leis visando bloquear o voto negro, com a justificativa de que eles não sabiam votar a favor do progresso da sociedade. A busca por pureza, todavia não parou no voto. Movimentos progressivistas ao redor do país propuseram diversas formas de esterilização de indesejáveis, que iam de deficientes mentais e criminosos a cegos, surdos ou pobres. A intensidade da engenharia social progressivista, assim como seu momento histórico, faz com que autores como Jonah Goldberg[10] considerem o movimento como a versão americana do Nazi-Fascismo.

Além do fantasma do racismo e da eugenia, o progressivismo provocou mudanças sociais que permanecem praticamente intactas até os dias atuais. O New Deal de Roosevelt, a criação do Federal Reserve e das leis antitruste são completamente incompatíveis com a filosofia de liberdade e propriedade sob a qual o país foi fundado. A criação de leis que proíbem um indivíduo de negociar justamente por causa do sucesso de sua empresa, a cooptação de todo o sistema bancário para as mãos do governo e a ampliação do papel do Estado na economia só se tornaram possíveis por causa da crença de que nenhum princípio, nem mesmo os resguardados pela Constituição, são absolutos. As consequências econômicas dessas leis, como o desmanche das grandes empresas americanas e as periódicas crises financeiras dos últimos 100 anos são temas para um artigo inteiro.

            Na contramão do progressivismo e suas inúmeras outras reformas coletivistas, como a ampliação de sindicatos, a criação de agências de proteção ambiental e a reforma antiacadêmica do ensino público, o Objetivismo defende os valores que deram origem aos EUA: liberdade, propriedade e busca da felicidade. Esses direitos não devem ser entendidos como coexistindo de forma independente, mas como facetas diferentes do mesmo direito essencial – o direito de um indivíduo à sua própria vida.

Ter direito à própria vida significa ser senhor do próprio corpo e, portanto, não ser impedido de tomar quaisquer ações que não incorram em violência contra terceiros – isso é liberdade. Ter direito à própria vida significa ser dono daquilo que se cria com o próprio trabalho e daquilo que se consegue através de trocas voluntárias com outros indivíduos livres – isso é propriedade. Ter direito à própria vida significa ter o direito de usar seu próprio esforço para buscar seus próprios objetivos de longo prazo, com a segurança que sua integridade não será violada nesse ínterim – isso é a busca da felicidade.

Diferentemente dos pais fundadores, Rand não toma seus direitos como autoevidentes ou dons conferidos por Deus. A autora entende que omitir a justificativa desses direitos foi justamente o calcanhar de Aquiles da Constituição Americana, que permitiu que eles fossem relativizados e, por vezes, solapados por completo.

No lugar da autoevidência ou da origem divina, o Objetivismo sustenta que os direitos advém da natureza humana enquanto ser produtivo. Se um indivíduo é racional e volicional e, portanto, capaz de produzir valor para si mesmo, a única coisa que o pode impedir de fazê-lo é a ameaça ou início de violência física por parte de terceiros. Com base nisso, a autora propõe o Princípio de Não Agressão como base de um sistema de direitos.

De um lado, uma filosofia altruísta e voltada para a sociedade, cujo resultado inevitável é a abolição de direitos, leis e princípios em nome de um bem maior. De outro uma filosofia egoísta, voltada para nada mais que o bem-estar do indivíduo, cujo reflexo social é o direito de cada indivíduo sobre o que é legitimamente seu. O resultado político dos diferentes valores essenciais das duas filosofias americanas é óbvio, mas e seu resultado estético?

Arte comum e coletiva

O único dos três pragmatistas a escrever extensivamente sobre arte foi John Dewey. A teoria proposta pelo autor em Art as Experience (Arte como Experiência), livro baseado em uma série de palestras ministradas por William James, o autor questiona a tradição da alta cultura, colocando a ubiquidade da apreciação da arte como seu critério essencial. Para o autor, a arte é uma construção coletiva que reflete, não o que há de mais sublime em uma sociedade, mas aquilo que é comum a seus indivíduos.

Dewey também se preocupa com efeitos da arte, não no indivíduo, mas na sociedade. Para ele, a arte é o instrumento pelo qual uma cultura pode expressar seus valores comuns, suas experiências cotidianas compartilhadas e, assim criar um senso de comunidade. A arte, por expor os valores de um povo, também pode ser utilizada como objeto de crítica, através do qual uma sociedade pode observar a concretização daquilo que acredita e analisar-se visando o progresso.

A Estética objetivista é, ao contrário da pragmatista, profundamente individualista. Para Rand a obra de arte não é feita para a sociedade, nem mesmo para os clientes do artista, mas para aquele que faz a arte. Definindo arte como “uma recriação seletiva da realidade de acordo com seus julgamentos de valor metafísicos”[11], ou seja, seus valores mais fundamentais, a autora sustenta que a função da arte é expor abstrações profundas a ponto de não serem exprimíveis em palavras.

Em contraste com a exaltação pragmatista do cotidiano, o Objetivismo tem como ideal de arte o heroico. O foco da arte não deve ser aquilo que é comum a todas as pessoas, mas aquilo que pode ser comum a elas, caso elas sejam o melhor possível. O objetivo da arte não é criar um senso comum entre as pessoas ilustrando a norma, mas criar um senso de grandeza no indivíduo ilustrando o ideal.

É contraintuitivo que duas filosofias nascidas no mesmo país, ambas visando melhorar a vida do homem na Terra, possam ser tão opostas. Enquanto o Pragmatismo parte da eterna incapacidade intelectual do Homem para propor a ação emotiva desprovida de valores ou princípios, o Objetivismo parte da sua capacidade de acertar, mesmo com a possibilidade de erro, para propor a ação racional em direção à manutenção da vida. Enquanto a primeira propõe o progresso da sociedade e o sacrifício do indivíduo ao bem comum, a segunda propõe a defesa do indivíduo contra os excessos da sociedade. Enquanto a primeira exalta como o que há de mais comum, a outra enaltece o que há de melhor.

Espero que o autor se lembre deste texto da próxima vez que precisar escolher sacrificar ou não seus princípios em nome do “pragmatismo” ou do “progresso”. Espero que se lembre que as pessoas que cunharam essas ideias acreditavam que o MC Guimé é um melhor artista que o Ludwig Van Beethoven.

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Revisado por Matheus Pacini e Felipe Diego.

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[1] Library of Congress Survey: Most Influential Books, 1991

[2] Cosmogonia (ou Cosmogenia) é qualquer teoria que se propõe a explicar a origem da existência, do universo ou da realidade fenomenológica dos sentidos.

[3] Apesar de semelhantes, falseabilidade e falibilismo são dois conceitos diferentes. O primeiro se refere à capacidade se provar que uma proposição é falsa, e normalmente é usado de forma normativa. Para Karl Popper, uma proposição científica deve ser falseável). Falibilismo, por outro lado, é a crença de que todo e qualquer conhecimento adotado pelo homem é incerto e sujeito a contradições por pesquisas futuras.

[4] A dicotomia noumena-phenomena, proposta pela primeira vez por Immanuel Kant é a crença de que a realidade é divisível em dois tipos de entidades. Os noumena são as entidades tais como elas realmente são, independentemente da percepção humana. Os phenomena são as coisas tais como percebidas pela consciência humana e, portanto, sujeitas às distorções dos sentidos, às criações subjetivas da mente ou a outras alterações de acordo com a versão específica da dicotomia adotada.

[5] “If theological ideas prove to have a value for concrete life, they will be true, for pragmatism, in the sense of being good for so much. For how much more they aretrue, will depend entirely on their relations to the other truths that also have to be Acknowledged” – What Pragmatism Means, 1904.

[6] Um axioma é uma proposição que identifica uma verdade autoevidente implícita em qualquer outra proposição. Ayn Rand identifica diversos axiomas, como a validade dos sentidos e a volição, mas começa sua análise filosófica com três axiomas primários: os axiomas da Existência, Consciência e Identidade. O Axioma da Existência é a proposição de que “A Existência existe”; O Axioma da Consciência é a proposição de que “A Consciência existe, e é a capacidade de perceber aquilo que existe; O Axioma da Identidade é a proposição de que “Aquilo que existe, existe da forma como existe” ou, em outras palavras, “uma coisa é ela mesma”.

“[7] “He who would not sacrifice his own soul to save the whole world, is, as it seems to me, illogical in all his inferences, collectively.” – Illustrations to the Logic of Science, 1878, p. 116

[8] “Emotions are the automatic results of man’s value judgements integrated by his subconscious; emotions are estimates of that which furthers man’s values or threathens them, that which is for him or against him – lightning calculators giving him the sum of his profit or loss” – The Virtue of Selfishness, 1964, p.27

[9] A Epistemologia objetivista subdivide a consciência em três níveis. O nível sensorial consiste da reação automática de um órgão sensorial a um estímulo externo. O nível perceptual consiste na retenção e integração automática de informação sensorial de forma a perceber entidades, e é a forma básica de percepção humana. O nível conceptual consiste na integração volicional de perceptos ou conceitos em uma única unidade mental através de um processo de abstração seguido da atribuição de uma definição.

[10] Para maiores informações sobre o Progressivismo americano, sua relação com o Nazi-Fascismo e sua influência na esquerda moderna, o leitor pode consultar Liberal Fascism (Fascismo de Esquerda), de Jonah Goldberg.

[11] “A arte é uma recriação seletiva da realidade de acordo com os julgamentos de valor metafísicos de um artista. A necessidade profunda da arte por parte do homem parte do fato de que sua faculdade cognitive e conceitual, i.e., que ele adquire conhecimento pelo meio de abstrações, e necessita da capacidade de trazer suas mais extensas abstrações para sua percepção imediata. A arte supre essa necessidade: por meio da recriação seletiva, ela concretiza a visão fundamental do homem sobre si mesmo e a existência. Ela diz ao homem, na prática, que aspectos da sua experiência devem ser considerados essenciais, significantes, importantes. Nesse sentido, a arte ensina o homem a usar sua consciência. Ela condiciona ou estiliza a consciência do homem ao transmitir uma certa forma de enxergar a existência” – The Romantic Manifesto, 1969, p.45 – Tradução Livre

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