Utilitarismo: a ditadura da turba

Uma ideia comum, tanto em tratados acadêmicos como em decisões informais entre amigos, é a de que a coisa certa a fazer é aquela que faz o maior bem ao maior número. À primeira vista, pode parecer uma ideia razoável ou, no mínimo, bem-intencionada. No entanto, uma análise mais apurada revela uma gama de problemas: o que exatamente é o “bem”? Como podemos medi-lo? Ele é o mesmo para todo mundo? Como proceder quando algo que faz mal a uma pessoa faz bem a outra?

Em essência, o Utilitarismo é uma filosofia moral. Criado por Jeremy Bentham (1748-1832) e ampliado consideravelmente por John Stuart Mill (1806-1876), continua vivo nas obras de utilitaristas contemporâneos como Peter Singer (1946), H. J. McCloskey (1925) e R. M. Hare (1919 – 2002), bem como na ideia popular da política como busca pelo bem da maioria. O propósito desse artigo não é tratar em detalhe das inúmeras variantes da escola[1], mas sim analisar as ideias essenciais da filosofia utilitarista, comuns a Bentham, Mill e os diversos autores que aprofundaram suas ideias.

Primeiro, analisaremos a metafísica e a epistemologia de David Hume (1711 – 1776), na qual Bentham e Mill se basearam, tratando do sensacionalismo[2] e da rejeição da dedução em prol da indução. Depois, a ideia de utilidade como algo quantificável e como fim último – a ligação entre a epistemologia e a ética utilitaristas. No campo da ética, trataremos dos três princípios fundamentais adotados pelos utilitaristas – o consequencialismo, o igualitarismo e o coletivismo – demostrando como são consequências da epistemologia humeana, e contrastando-os com a ética do egoísmo racional de Ayn Rand. Como ligação entre a ética e a política, trataremos da distinção entre utilitarismo de ato e utilitarismo de regras, e das consequências disso na defesa utilitarista de direitos individuais e liberdade – uma defesa que influenciou profundamente o austríaco F. A. Hayek. Por último apresentarei brevemente a visão de Mill e Bentham quanto à estética e à beleza, comparando-a com a estética objetivista.

Sensacionalismo e indução

É impossível falar de Utilitarismo sem falar de David Hume. Todo código moral se baseia em uma visão sobre o mundo, a natureza humana e a forma de obtenção de conhecimento. Em outras palavras, para conhecermos o certo e o errado, é necessário primeiro saber como obter conhecimento sobre algo. Neste sentido, tanto Bentham como Mill adotam o empirismo radical de Hume.

Para Hume, não faz sentido falar em um mundo externo à mente humana. Afinal, se temos acesso apenas aos dados obtidos pelos sentidos, é com eles que devemos lidar, em vez de supor que existe uma origem externa para as nossas percepções. Para o autor, não há razão, que não o simples hábito, para supor que a mesa da cozinha não se tornará um cachorro amanhã – nunca aconteceu, mas isso não quer dizer que nunca acontecerá. Apesar de não rejeitar os sentidos em si, Hume rejeita a razão – a habilidade humana de tirar conclusões com base no que é observado.

Ao rejeitar a razão, Hume encara um problema no campo da ética: se não podemos tirar conclusões sobre a realidade, como saber que ação seria correta em um determinado contexto? Para ele, deveríamos recorrer à emoção. Assim como seus sentidos, que simplesmente existem, o ser humano é movido por paixões independentes do seu intelecto. A razão apenas nos informa, de maneira incerta, como – mas não qual – fim deveríamos alcançar. Em última instância, quem nos direciona são as paixões – das quais, nas palavras de Hume, “somos escravos”.

Apesar do mérito de rejeitar a ideia de fé ou qualquer tipo de conhecimento independente da experiência, há uma falha grave no raciocínio de Hume: afirmar que é impossível generalizar a partir do observado é, em si, uma generalização com base no que é observado. Essa contradição, basicamente ignorada por Bentham, é abordada por Mill em seu Sistema de lógica dedutiva e indutiva. Para ele, as regularidades observadas na natureza tendem a se manter, e isso é tão comum que a nossa mente aceita generalizações de forma automática e involuntária. Apesar de sua negação explícita à ideia de conhecimento a priori, Mill utiliza o conceito humeano de sensações como algo independente da existência para afirmar que desenvolvemos automaticamente a ideia de que as generalizações são válidas, e que, agindo com base nessa crença anterior, concluímos que elas, na maior parte do tempo, funcionam.

Harry Binswanger se refere a esse tipo de teoria da mente como sensacionalismo, i.e. a ideia de que percebemos sensações como coisas distintas dos existentes externos que lhes dão origem, integradas em um segundo momento – no caso de Hume e Mill – devido ao hábito que adquirimos de associar sensações que ocorrem juntas. Na contramão dessa visão, Ayn Rand identifica que as sensações, por serem automáticas, necessariamente estão sob o controle de algo externo à nossa mente, e que após a primeira infância, a nossa forma primária de perceber a realidade é através de perceptos, e não de sensações.

Um percepto é um conjunto de sensações retidas e integradas automaticamente. Não percebemos, conforme argumentam os utilitaristas, um conjunto de sensações distintas que costumamos associar por hábito, chamando-o, por exemplo, de “cadeira”, mas sim uma única entidade, com múltiplas características – não é necessário, nem mesmo possível agir conscientemente, muito menos por hábito, para integrar essas sensações. Por percebermos primariamente entidades é que percebemos que as coisas têm identidade, ou seja, que uma coisa é o que ela é. Graças à nossa faculdade perceptual, não percebemos uma cadeira azul que é, ao mesmo tempo, vermelha e um cachorro, mesmo que estejamos recebendo todas os estímulos necessários para formar essa imagem mental.

É justamente pelo fato autoevidente de tudo que existe ter uma natureza específica que podemos generalizar a partir de nossas observações. Uma mente sensorial estaria sempre condenada ao conhecimento limitado de um recém-nascido, que sente algo, mas é incapaz de saber o quê.

A Utilidade Cardinal

O conceito de sensações como existentes independentes de entidades reais leva à ideia de que as emoções, das mais simples como a dor e o prazer até as mais complexas como a felicidade e o ódio, podem ser conceptualizadas separadamente de suas causas. Ao afirmar que tudo que percebemos são sensações independentes, Hume abre caminho para a ideia de utilidade que Bentham expõe em Uma introdução aos princípios da moral e da legislação.

O prazer e a dor – para Bentham sinônimos de felicidade e tristeza – são sensações específicas que ocorrem independentemente da razão humana, e que, como todas as outras sensações que temos, é quantitativamente mensurável. Sua lógica é relativamente simples: se as sensações que nos levam à ideia de massa, por exemplo, são mensuráveis em gramas, quilos ou libras, não há motivos para supor que as sensações que nos levam à ideia de prazer-felicidade sejam diferentes.

Bentham propõe o conceito de utilidade de modo a unificar as ideias de prazer, inserindo-as no contexto do uso de um objeto. A utilidade de um objeto é a forma como ele é associado à experiência de prazer-felicidade. Bentham propõe diversas formas para medir a utilidade, como sua duração, intensidade ou “pureza”[3], mas é incapaz de estabelecer uma medida quantitativa final que integre as diversas dimensões do prazer. Isso não é um acidente, mas um reflexo do fato de que as emoções são existentes fundamentalmente diferentes de entidades concretas.

É possível justapor entidades concretas, utilizando uma como medida da outra, por exemplo colocar um lápis ao lado de um carro, utilizando a extensão do lápis – uma propriedade física – para medir a extensão do carro. O prazer e a felicidade, além de essencialmente diferentes um do outro[4], são existentes mentais, fundamentalmente distintos de existentes concretos. Uma das diferenças entre os dois é que existentes mentais podem até ser comparados qualitativamente uns com os outros, com base em suas semelhanças e diferenças, mas jamais comparados como existentes físicos, onde um serve de medida quantitativa para o outro, por não terem propriedades mensuráveis.

J. S. Mill vai além de seu predecessor, e aborda a questão da complexidade humana e dos diferentes tipos de prazer. Em Utilitarianismo, afirma que alguns tipos de prazer tem uma qualidade superior a outros, afirmando que “Dos dois [prazeres], se há um que é preferido por todos ou quase todos que o experienciam, independente de qualquer obrigação moral de preferi-lo, esse é o prazer mais desejável”[5]. Além de utilizar a opinião da maioria como padrão de medida, o que gera uma série de problemas[6], Mill não lida com a relação quantitativa entre diferentes tipos de prazer, nem com suas implicações para a ética – temas hoje debatidos por utilitaristas contemporâneos[7].

Toda essa confusão decorre do fato de que, como demonstrado por Carl Menger (1840 – 1921), Ludwig von Mises (1881 – 1973) e diversos outros autores da Escola Austríaca de Economia, a utilidade é i) resultado de valores escolhidos pelo indivíduo e ii) uma medida ordinal, e não cardinal. Nosso sistema de dor-prazer é automático, mas como indivíduos racionais com emoções complexas, nossa felicidade vai muito além da simples sensação de prazer: como veremos em detalhes mais adiante, ela é uma resposta aos valores que escolhemos adotar.

É possível medir a utilidade de um bem[8] apenas em relação a outros bens para um indivíduo específico[9]. É possível dizer que uma maçã é mais valiosa que uma pera para um indivíduo específico, em um contexto específico, através da observação de suas escolhas. Não é possível dizer que uma maçã vale 10 utilidades, enquanto uma pera, 9, para todos os indivíduos, em qualquer contexto. Os indivíduos fazem escolhas diferentes, e a complexidade de suas valorações é tal que suas preferências não são perfeitamente transitivas, até para o mesmo indivíduo em contextos diferentes.

A Utilidade como bem

A ideia de utilidade como algo quantitativo e mensurável não é a única ideia fundamental da ética utilitarista. Há uma segunda: além de mensurável, a maior quantidade possível de utilidade – entendida como prazer e felicidade, que são a mesma coisa – é o padrão moral pelo qual julgar a ação humana.

A ideia de que prazer e felicidade são a mesma coisa pinta uma imagem incrivelmente simplista da mente humana. Muitas vezes, algo que nos traz prazer nos torna incrivelmente infelizes, como alguém que trai seu cônjuge em troca de prazer no curto prazo, mas acaba perdendo toda sua família. O contrário também acontece – é natural que o cansaço, e muitas vezes até a dor física ao final de um dia de trabalho árduo nos tragam felicidade. Casos patológicos ilustram ainda mais esse ponto: um dependente químico sente prazer pelo consumo da droga em que é viciado, mas essa prática causa profunda infelicidade.

Apesar de ter negado anteriormente que os humanos são capazes de inferir as consequências de uma ação, Bentham contra-argumenta que se deve levar em conta a dor e o prazer que uma ação trará em sua totalidade, e não apenas no curto prazo. Mill, por outro lado, opta pelo argumento anterior das diferenças qualitativas entre prazeres. O fato é que até mesmo os autores que tentam reduzir a felicidade ao prazer esbarram no problema de que estão tratando de existentes diferentes. O curso apropriado de ação, portanto, não é tentar necessariamente reduzir um ao outro, mas identificar o que exatamente é cada um deles, e como eles se relacionam.

Em A revolta de Atlas, Ayn Rand identifica a diferença entre ambos de forma magistral, através de seu personagem John Galt. Para ela, prazer e dor são partes de um mecanismo biológico que responde automaticamente a certos estímulos. Apesar de ter se desenvolvido por pressões evolutivas, tendo a sobrevivência do homem como padrão, o caráter instintivo do mecanismo dor-prazer limita muito sua relevância no contexto de um ser vivo racional e volicional que escolhe seus próprios valores. As emoções de felicidade e sofrimento são os equivalentes conceptuais do mecanismo de dor-prazer, e respondem aos valores adotados subconscientemente pelo indivíduo. Como tanto o mecanismo de dor-prazer quanto o mecanismo emocional humano são faculdades mentais automáticas norteadas pela sobrevivência do indivíduo, é natural que haja uma correlação entre dor e sofrimento, assim como entre felicidade e prazer. Essa correlação, porém, não é absoluta – ambos são mecanismos distintos e relativamente independentes.

A alegria é a sensação boa que decorre da realização de nossos valores. No entanto, valores não existem “em um vácuo”, sendo parte de um todo: o sistema integrado de valores que uma pessoa adota em sua vida. Valores são escolhidos, o que inclui a possibilidade de escolher valores que levam à destruição do próprio indivíduo. Como a vida do indivíduo é o seu valor último – o fato que torna a própria valoração possível – atingir qualquer valor contrário à sua vida representa, ao mesmo tempo, a perda de outro valor. A alegria de alcançar um valor assim, portanto, é sempre contraditória, isto é, sempre sentida como uma mescla da alegria de concretizar um valor com o sofrimento relativo à perda de outro. Rand define a felicidade como o estado de alegria não contraditória que um indivíduo racional, que adota a sua própria vida como padrão final de valoração, sente ao atingir valores que não contradizem uns aos outros – um estado tanto metafísico quanto psicológico, semelhante à eudaimonia de Aristóteles[10].

Da Ética à Política

A ideia de utilidade como padrão moral leva a três princípios que balizam tanto a ética quanto a política utilitarista. O consequencialismo é a crença de que o valor moral de uma ação é definido por suas consequências, e não pela ação em si. O igualitarismo é a ideia de que todo e qualquer indivíduo tem exatamente o mesmo valor intrínseco. O coletivismo, no contexto ético e político, é a crença de que o grupo (seja ele a tribo, a nação, a raça ou qualquer outro grupo arbitrário) é o padrão de valor de uma ação. Todos esses princípios são extremamente problemáticos.

Se é impossível discernir precisamente a natureza de uma ação, e a utilidade é o padrão último de valor, apenas as consequências de uma ação específica são relevantes para a moral – a natureza da ação em si é irrelevante. Levar a ética utilitarista às suas últimas consequências é argumentar que roubar um indivíduo e distribuir seus bens para um número ótimo de pessoas é uma ação boa, já que a nova situação produz um “lucro” de utilidade frente ao sofrimento de quem foi roubado; em última instância, assassinar esse indivíduo de forma súbita e sorrateira seria até mais moral, pois sua morte o pouparia do sofrimento de perder seus bens. No âmbito da política, esse princípio toma a forma mais sutil da redistribuição de renda – se a utilidade marginal[11] do dinheiro diminui quanto mais dinheiro se tem, é moral tomar de quem tem muito e dar para quem tem pouco.

O deontologismo – a ideia de que apenas a ação em si, e não suas consequências, define seu valor moral – é frequentemente pintado como uma alternativa ao consequencialismo. Seja na ideia de pecado da moral cristã, seja no imperativo categórico de Immanuel Kant, é normal considerar o “bem” como algo absoluto, intrínseco a uma ação, e independente do contexto. As duas visões estão erradas, e são apenas dois lados da mesma moeda irracional – a separação entre a ação em si e suas consequências.

Assim como todo existente, toda ação tem uma identidade específica, i.e. ela é o que é, e sempre terá as mesmas consequências dentro de um mesmo contexto. Toda ação deve ser pensada em sua totalidade: suas motivações, sua execução, suas consequências imediatas e de longo prazo, etc. Princípios éticos servem justamente para reduzir a enorme complexidade das diversas ações particulares ao seu essencial – seu papel na promoção (ou destruição) do indivíduo. Só é possível “alcançar um fim bom por meios ruins”, ou “agir de forma boa com resultados ruins”, se o padrão moral adotado for arbitrário, e anti-vida.

O igualitarismo utilitarista está intimamente ligado ao coletivismo. Se o padrão de valor é a utilidade quantitativa pura e simples, e todos os indivíduos tem a mesma capacidade de sentir dor e prazer, todos eles são intrinsecamente iguais. O valor de uma ação, portanto, deve ser definido pela utilidade gerada por essa ação à totalidade de pessoas que existem, independentemente de seu envolvimento com a ação em questão. Um empresário honesto de sucesso tem valor, não por seu mérito individual, nem pelo valor que gera para indivíduos específicos, mas sim pelo valor que gerou para a “sociedade”. O problema com o assassinato não é da vítima, que perdeu sua vida, mas “da sociedade”, que perdeu utilidade.

O ser humano é, por conta de sua própria natureza, essencialmente individual. Apesar de vivermos e florescermos em sociedade, é impossível comer, exercitar-se, pensar ou sentir por outra pessoa. A natureza de nosso pensamento e das nossas ações é individual. Como a ética é a ciência que estuda o valor da ação humana, o seu padrão deve ser o indivíduo – a sociedade não pensa, age e muito menos valora. Algo pode ter valor apenas no contexto individual – um objeto, ou uma pessoa, tem valor para uma pessoa específica, em um contexto específico, por razões específicas.

Ao contrário do que ecoa em nossa cultura social-democrata, as pessoas não têm o mesmo valor. Essa afirmação fica mais clara em casos mais extremos (poucos tentam defender a ideia de que uma vítima e seu estuprador devem ser tratados igualmente), mas mais elusiva em casos mais complexos. O valor de uma pessoa é consequência, tanto direta quanto indireta, de seus valores, concretizados em suas ações. De forma mais direta, um padeiro tem valor para mim, pois supre eficientemente a minha necessidade por pães, ao passo que um ladrão é um valor negativo, já que pode roubar meus pães. A valoração, porém, vai muito além disso. Esse mesmo padeiro, enquanto pessoa honesta que adota valores racionais, é um valor muito maior que os pães que produz. Ele reflete meus valores, portanto, pode ser bom para mim de diversas formas, seja como um parceiro de conversa, como um empresário que inventa outros produtos em outros mercados, ou simplesmente como uma concretização de meus valores abstratos – um exemplo a ser admirado.

Apesar da monstruosidade dos valores apresentados nessa seção, grande parte dos utilitaristas não é composta de monstros. Bentham e Mill, assim como vários de seus seguidores, perceberam os problemas gerados por sua filosofia e tentaram criar artifícios intelectuais para combatê-los. F. A. Hayek, um dos maiores proponentes da liberdade no século XX, foi profundamente influenciado por eles. Todavia, essas tentativas tinham como base a filosofia utilitarista e seus valores discutidos até aqui, e por causa disso sempre estiveram fadadas ao fracasso.

A utilidade da liberdade

Apesar das falhas do Utilitarismo, tanto Mill quanto Bentham perceberam as implicações lógicas de seus valores: consequencialismo, igualitarismo e coletivismo necessariamente levam ao sacrifício de uma minoria em prol da maioria. Vivendo no período de transição entre o modelo político aristocrata da Idade Média e o modelo moderno de nação-estado, ambos perceberam a ameaça de uma ditadura da maioria, e buscaram formas de defender a liberdade dentro do contexto utilitarista.

Em sua Defesa da usura, Bentham defende a liberdade do mercado bancário contra Adam Smith[12], que propunha a imposição de um limite máximo à taxa de juros, argumentando que a liberdade de mercado traria mais benefícios à população. Em Um fragmento sobre o governo, o autor utiliza o mesmo argumento para defender a transparência governamental, a liberdade de expressão, e a liberdade de associação. Essas diferentes visões – considerar a utilidade de um ato isolado versus a utilidade de uma regra geral – foram chamadas, por utilitaristas mais modernos, de utilitarismo de ato e utilitarismo de regra.

John Stuart Mill partilha das ideias de seu predecessor e, como ele, defende a Democracia Representativa como forma ideal de governo, visto que possibilita um governo que se submete à vontade da maioria ao mesmo tempo em que o faz de forma indireta, respeitando regras específicas. Mill vai além de Bentham, argumentando não só contra a coerção violenta do Estado, mas também contra formas de coação social pacífica, como o boicote e o ostracismo, que, segundo ele, impediriam indivíduos de manifestar completamente sua individualidade, causando uma desutilidade generalizada.

Essa visão é surpreendentemente comum em meios liberais. Milton Friedman (1992 – 2006), um famoso economista liberal, baseia sua defesa da liberdade econômica na constatação de que os mercados são mais eficientes do que a ação estatal – na ideia de que a liberdade é o melhor meio para atingir a prosperidade, que é o fim. F. A. Hayek (1899 – 1992) é ainda mais parecido com os utilitaristas. Adotando a mesma epistemologia humeana que rejeita a possibilidade de generalizar com base na observação, Hayek vê o progresso como um constante processo social de tentativa e erro, que só pode acontecer apropriadamente se os indivíduos tiverem a capacidade de errar – esse raciocínio pode inclusive levar à conclusão de Mill sobre a coação pacífica. O fato de que, apesar de adotar o mesmo princípio de liberdade como um meio para a prosperidade, Hayek e Friedman têm ideias radicalmente diferentes sobre o papel do Estado[13] ilustra perfeitamente o problema com a defesa utilitarista da liberdade.

Se a liberdade é entendida, não como um valor político, mas como um meio de se alcançar outros valores, ela estará sempre sujeita a esses outros valores. Na prática, isso geralmente significa impor diferentes limites à liberdade individual. Isso pode se dar de forma mais direta, como no utilitarismo de regras de Mill, e sua ideia de que certos direitos podem ser restritos se essa restrição promove o bem – a argumentação comum de quem quer restringir a propriedade de armas – ou de forma mais sutil, como na defesa de Friedman da existência de um banco central. O fato é que se há um espaço para a arbitrariedade quanto à aplicação da liberdade, já não estamos mais lidando com liberdade, e sim com permissões e restrições.

Como exploramos mais a fundo em um artigo anterior, a fundamentação da defesa da liberdade na ignorância humana, como faz Hayek, é extremamente problemática. A ideia de que é necessário deixar as pessoas experimentarem para atingir o progresso, pois não sabemos o que é bom ou ruim até tentarmos, é extremamente vulnerável às críticas de um reformador radical ou um revolucionário violento. Se não sabemos o que é certo e errado, e precisamos tentar para descobrir, não há argumentos contra um revolucionário socialista que busca experimentar com uma nova forma de socialismo, nem bases para a condenação moral de uma comunidade racista – esse último ponto é defendido fervorosamente por austríacos como Hans-Hermann Hoppe (1949).

A liberdade pode ser defendida apenas com uma fundamentação moral e epistemológica apropriada. Como argumenta Ayn Rand, os sentidos do homem são válidos, e ele é capaz de usar a sua faculdade racional para identificar a natureza dos existentes. Uma consequência disso é que o homem é capaz de identificar a sua própria natureza – um animal racional e individual, que precisa escolher seus próprios valores, visando a manutenção da sua própria vida. Como o homem concretiza seus valores através de ações, a única forma de impedir a manutenção da sua vida é através do uso ou da ameaça de violência física, impedindo a valoração, a ação em si, ou o usufruto das consequências de sua ação. É apenas a identificação desses fatos fundamentais que dá sustentação ao princípio político da liberdade.

A liberdade deve ser pensada, não como um instrumento político, mas como o princípio fundamental para guiar a ação do homem em um contexto social, e, consequentemente o Estado. Considerar “as consequências da liberdade” é ignorar o papel de princípios na cognição humana. Princípios são instrumentos que usamos para condensar toda a informação referente às inúmeras ações que realizamos, através da identificação da sua natureza. Um princípio serve justamente para guiar a ação frente a fatores que não conhecemos, como a total extensão das consequências de uma ação. Por causa disso, é impossível ter em mente todas as consequências da liberdade – isso envolveria conhecer as escolhas dos indivíduos , e suas consequências, antes que eles as façam.

É possível apenas dizer que, em uma sociedade livre, os indivíduos tem direito ao resultado de suas próprias ações, e são impedidos de tomar valor de terceiros – e que, considerando a natureza individual do ser humano, isso é desejável. A prosperidade é simplesmente uma das muitas consequências da liberdade, mas não o seu objetivo final, nem sua justificativa moral. A forma de governo que possibilita a manutenção da liberdade, apropriadamente entendida, é uma República Constitucional na qual os direitos individuais são protegidos da maioria pela lei, e não uma democracia onde o maior grupo escolhe até onde vai a liberdade.

A Utilidade do Belo

Bentham e Mill não escrevem extensivamente sobre a beleza, a arte, ou a estética em geral. As obras citadas anteriormente, porém, tocam no assunto, e nos dão uma noção de como esses autores pensavam sobre o tema. O sensacionalismo e a ideia de utilidade são essenciais para a estética de ambos – que, como veremos, é uma rejeição da estética enquanto ciência.

Se sensações existem de forma independente de suas causas, o sentimento que temos ao apreciar uma obra de arte também deve ser pensado como algo independente de quaisquer causas. Se a utilidade é o fim último da ação, então o seu valor estético, arbitrário e puramente subjetivo, deve ser levado em conta tanto quanto o seu valor moral. Essa forma de pensar permeia o mundo artístico contemporâneo, e contribui para o mito de que a arte é algo puramente subjetivo, e não está sujeita a julgamentos de valor.

O fato de que seres humanos são movidos emocionalmente por obras de arte é uma obviedade – é a razão pela qual nos referimos a algo como “arte” em primeiro lugar. A função da estética é justamente entender como e porquê a arte nos move. A ideia de que apenas “sentimos” arbitrariamente é equivalente à ideia de que as nossas emoções são arbitrárias – é uma rejeição da busca por causas.

Em seu Romantic Manifesto, Ayn Rand define a arte como uma recriação seletiva da realidade, de acordo com os julgamentos mais fundamentais do artista sobre a realidade, o Homem e o seu lugar no mundo. Assim como um fotógrafo, um pintor deve escolher exatamente qual será o conteúdo de sua pintura – por exemplo, um homem. Ao contrário do fotógrafo, porém, o pintor deve escolher exatamente como representar esse homem, i.e. quais são os aspectos essenciais que ele irá reproduzir em sua pintura, e como ele os reproduzirá. Isso nos diz, não o que é verdadeiro ou correto, mas o que é importante, de acordo com os julgamentos do artista. Através das inúmeras escolhas do artista em relação ao conteúdo e ao estilo, a arte dá forma concreta aos seus valores mais abstratos, e traz a abstração para o nível perceptual.

De acordo com a teoria objetivista, a resposta que temos a uma obra de arte é uma de congruência ou rejeição. Quando apreciamos uma obra de arte, dizemos implicitamente “é assim que eu vejo o mundo”, ou “essa forma de ver o mundo é interessante”. Uma obra de arte que não retrata, de forma alguma, o modo como percebemos o mundo e os valores que adotamos subconscientemente, é incapaz de nos mover.

A ideia de que a existência é algo como um “filme”, no qual somos meros espectadores submetidos a um fluxo arbitrário de sensações é perversa. No âmbito da epistemologia, nega a nossa razão; no campo da ética, nega a complexidade e o valor do indivíduo; na política, apresenta os caprichos da turba como se fossem uma forma de liberdade; e na estética, ignora a natureza fundamental da arte. A realidade é o que ela é – podemos perceber diretamente, com os nossos sentidos, que entidades tem uma identidade específica. Apenas por poder perceber a existência, podemos perceber a importância da razão, do indivíduo, da liberdade, e da arte. Apenas a ação racional pode alcançar consistentemente a utilidade.

_________________________________________

Revisado por Matheus Pacini.

Curta a nossa página no Facebook.

Inscreva-se em nosso canal no YouTube.

__________________________________________

[1] As ambiguidades e contradições não resolvidas da teoria utilitarista, que veremos em detalhes adiante, deram origem a diversas variantes contemporâneas da filosofia, como o “Utilitarismo de preferências” de Peter Singer, o “Utilitarismo de dois níveis” de R. M. Hare, e o “Utilitarismo negativo” de Simon Knutsson.

[2] No contexto da filosofia, “sensacionalismo” não tem o significado quotidiano de exagerar a realidade em busca de atenção, como nas manchetes absurdas de tabloides. O termo se refere à ideia de que todo conhecimento tem base nas sensações. Dentro do Objetivismo, em contraste à filosofia mainstream, o termo é usado para se referir à ideia de que sensações tem uma existência independente dos existentes que lhe dão origem Essa última definição é a que eu uso ao longo deste artigo. 

[3] Pureza é uma medida usada por Bentham para se referir à utilidade no contexto da mudança entre sensações que chamamos de “ação”. Uma felicidade pura é aquela sentida em um contexto com uma baixa probabilidade de ser seguida por dor. Sua filosofia humeana, porém, não lhe permite ligar o prazer ou a felicidade à natureza do Homem ou de uma ação específica.

[4] Como trataremos mais a fundo adiante, o prazer é uma resposta automática de um mecanismo inato do Homem, enquanto emoções como a felicidade, apesar de automáticas, respondem aos valores adotados pelo indivíduo.

[5] Utilitarismo, 1861, John Stuart Mill, p. 11

[6] Para uma visão mais concreta sobre os problemas do coletivismo, ver A Virtude do Egoísmo e a Introdução à Epistemologia Objetivista, de Ayn Rand.

[7] Jonathan Riley, por exemplo, propõe a interpretação de que qualquer quantidade de um prazer superior é preferível a qualquer quantidade de um prazer inferior. Ben Saunders, por outro lado, propõe que Mill estava simplesmente indicando um fator a ser considerado, e não uma divisão estrita.

[8] Ao contrário dos utilitaristas, os austríacos utilizam a ideia de utilidade no contexto mais estrito de um “bem”, e não no contexto geral de um “objeto” – e isso não é um acidente. A concepção da utilidade de um objeto vem da ideia de que a “sensação de utilidade” está relacionada, de forma ampla, com um objeto em geral – a filosofia de Hume não adota a ideia de causalidade necessária para especificar a relação entre objeto e utilidade. A ideia da utilidade de um bem assume um contexto específico – o da escolha entre diferentes meios para realizar um desejo específico.

[9] Pode-se argumentar de que o dinheiro cumpre o papel de medir quantitativamente a utilidade de bens, até mesmo entre diferentes pessoas. O preço de um bem, porém, se refere apenas à disposição dos diferentes indivíduos em trocar bens entre si, e não diz nada sobre o estado mental do indivíduo ao usufruir de seus bens.

[10] Para mais detalhes sobre a diferença entre as ideias de Ayn Rand e Aristóteles sobre a ética e a felicidade, ver Eudaimonia ou Vida?, de Steven Schub.

[11] Em economia, “utilidade marginal” se refere à utilidade de um bem individual, no contexto específico de vários bens similares. A utilidade do primeiro copo d’água para um indivíduo que está com sede será maior do que a do copo d’água seguinte, ainda que os dois sejam virtualmente idênticos, por causa do contexto no qual ele está inserido. Para uma pessoa que não tem absolutamente nada, 5.000 reais tem uma utilidade muito grande, pois esse dinheiro pode ser usado para comprar bens essenciais para a sua sobrevivência, como água e comida. Para um milionário, esse mesmo dinheiro tem uma utilidade consideravelmente menor, pois suas necessidades mais importantes ja foram supridas.

[12] Adam Smith frequentemente é citado, especialmente em círculos conservadores, como um exemplo de pensamento liberal. Todavia, seu pensamento está mais próximo do socialismo do que do liberalismo. O autor adotava a ideia de valor-trabalho na qual Karl Marx baseia a sua obra, em contraste com os economistas da Escola de Salamanca, que ja adotavam a ideia de valor subjetivo antes da publicação das obras de Smith. O autor também utilizava o “bem coletivo” como padrão moral, e justificativa para a liberdade, como evidenciado nesse exemplo.

[13] Um exemplo da diferença entre os dois é a sua visão sobre a moeda. Para Hayek, indivíduos devem ser livres para experimentar com diferentes sistemas monetários, cuja competição levaria ao melhor resultado possível. Friedman, por outro lado, acha necessário restringir a liberdade monetária para possibilitar o progresso da sociedade. Segundo ele, um mercado livre de moedas levaria a crises deflacionárias cíclicas, e é necessário estabelecer e manter um banco central responsável por inflacionar constantemente a moeda de forma previsível.

Uma resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Inscreva-se na nossa Newsletter