Objetivismo e Escola Austríaca (EA) são duas escolas de pensamento bastante populares no meio liberal, com uma ampla história de diálogo entre si. Ayn Rand recomenda abertamente a obra Ação Humana de Ludwig von Mises (1881-1973) em seu livro Capitalism: The Unknown Ideal, ao passo que Mises chegou a se referir à Rand como “o homem mais corajoso da América” por ter a coragem de afirmar que o progresso se deve a uma minoria de pessoas hiperprodutivas, e não às massas, como pregam os demagogos de diversas correntes de pensamento. Apesar de diversos pontos de convergência, existem divergências profundas entre os dois corpos teóricos que impedem, até os dias atuais, a unificação de ambos em uma única escola de pensamento.
Ambas as escolas rejeitam o coletivismo, tanto na metodologia quanto na ética, considerando o indivíduo como a base de todo fenômeno social. Ambas as escolas rejeitam a dicotomia liberdade econômica versus liberdade de costumes, mostrando como ambas são apenas facetas diferentes do direito do indivíduo à sua própria vida, e como a prosperidade e o progresso social dependem da liberdade total, e não de pequenos “bolsões de escolha” dentro de um sistema autoritário. Com isso em mente, não surpreende que ambas defendam uma redução do Estado ao que consideram as suas funções essenciais, com correntes austríacas defendendo a sua total extinção. Por trás das semelhanças, todavia, escondem-se visões radicalmente diferentes acerca da natureza do conhecimento e do ser humano.
Em um artigo anterior, falamos exaustivamente sobre os problemas austríacos decorrentes da guinada kantiana de Mises, como o mainstream austríaco necessita retornar ao aristotelismo original de Carl Menger (1840 – 1921), e como os autores da Nova Escola Austríaca[1] usam a epistemologia objetivista para corrigir esses problemas. O propósito desse artigo não é revisitar os problemas do apriorismo e subjetivismo kantianos na Escola Austríaca, ou suas consequências no estudo da Economia, mas contrastar a essência do pensamento da EA às ideias do Objetivismo.
Para tal fim, começaremos analisando o maior ponto de convergência entre as duas escolas: a natureza da moeda. A partir disso, gradualmente nos aprofundaremos nas diferenças entre elas, tratando da lei e do Estado, ressaltando as diferenças entre o anarcocapitalismo – conclusão lógica das premissas austríacas – e a ideia objetivista de república racional. Em seguida, analisaremos como as diferenças políticas resultam de diferenças éticas entre elas, com ênfase especial na diferença entre o princípio da não agressão objetivista e o axioma da não agressão austríaco.
Por fim, mostraremos como todas as diferenças, sejam elas no âmbito coletivo ou da moralidade individual, reduzem-se a diferenças essenciais na epistemologia e na metafísica das duas escolas – essencialmente uma diferença entre lógica e dialética. Ao analisar a epistemologia austríaca, focaremos não nas diferenças internas entre as suas diversas correntes, mas em suas semelhanças, mostrando como o erro fundamental de ambas é essencialmente o mesmo – e semelhante ao erro de diversas escolas de pensamento que a EA critica veementemente com razão.
O padrão-ouro
O ponto de convergência mais claro entre a teoria austríaca e a teoria objetivista é a visão de ambas sobre a natureza e a função na moeda – de forma mais concreta, a defesa de um sistema monetário lastreado em ouro. Tanto os autores objetivistas quanto os economistas austríacos entendem a necessidade de um instrumento de troca e reserva de valor que seja independente de qualquer autoridade central, de forma a garantir a liberdade econômica do indivíduo. Ambas as escolas entendem que, caso a oferta de moeda seja controlada pelo governo, não há nada que o impeça de expandir a base monetária para se financiar, corroendo as reservas de valor do indivíduo.
Em oposição às escolas chartalistas (das quais tratamos nesse artigo), que consideram a moeda como um instrumento legal de origem estatal, tanto a EA quanto o Objetivismo reconhecem o fato de que a moeda surge de forma espontânea, produto das interações voluntárias entre indivíduos livres. Para os autores das duas escolas, o papel-moeda estatal é uma distorção tardia da instituição da moeda, que traz como consequência crises econômicas cíclicas devido à expansão artificial do crédito. Apesar das semelhanças na teoria monetária, as teorias de valor adotadas pelas duas escolas são completamente diferentes.
Os autores da Escola Austríaca adotam, a partir de Ludwig von Mises, a teoria subjetiva do valor, segundo a qual o valor de um bem é decidido pelo indivíduo que o valora. Opondo-se a teorias intrínsecas de valor, como a do valor-terra ou valor-trabalho, e buscando uma teoria econômica pura, não enviesada por considerações morais, Mises adota apenas a ideia de que todo indivíduo age de acordo com valores, mas exclui de sua teoria qualquer consideração sobre o que dá origem aos valores do indivíduo.
Com base nessa teoria de valor, os economistas austríacos desenvolvem uma teoria subjetiva da moeda, segundo a qual um bem se torna a moeda de uma sociedade de forma espontânea, devido às expectativas subjetivas dos indivíduos sobre a capacidade de trocar esse bem por outros bens. De forma resumida, os austríacos sustentam que, em qualquer sociedade na qual indivíduos desejem efetuar trocas entre si, a convergência de suas valorações subjetivas faz com que alguns bens sejam mais comumente aceitos em trocas, ou comercializáveis. Com o passar do tempo, alguns bens de alta comercialização tendem a se tornar hegemonicamente aceitos em trocas, visto que todo indivíduo espera ser capaz de usá-los em uma troca futura, tornando-se, assim, uma moeda.
A maioria dos autores austríacos, de Mises e Murray Rothbard (1926 – 1995), a Walter Block (1941) e Jesus Huerta de Soto (1956) defendem alguma versão do padrão-ouro como sistema econômico ideal. Apesar da hegemonia dessa forma de pensar, a teoria austríaca da moeda estabelece apenas que a moeda deve ser uma commodity, mas não que a commodity monetária deva, de fato, ser o ouro. A teoria subjetiva do valor coloca a origem da comerciabilidade de um bem exclusivamente no indivíduo, e não em qualquer característica do bem em questão[2]. Por conta disso, o que importa no paradigma austríaco é o processo pelo qual indivíduos livres escolhem um bem para usar como moeda, e não qual bem é usado como moeda.
A defesa objetivista do padrão-ouro, por outro lado, baseia-se em uma teoria objetiva e volitiva[3] do valor, semelhante à adotada por Carl Menger, fundador da Escola Austríaca. Para Ayn Rand, não faz sentido falar de valor sem falar das características do ser humano e do bem valorado. Apesar de ter volição[4] e, portanto, ser capaz de agir da forma que escolher, o ser humano tem uma natureza própria, bem como necessidades específicas. Da mesma forma, todo bem tem uma natureza própria, e é um bem na medida em que pode satisfazer necessidades humanas. Em outras palavras, o fato que o ser humano é livre para escolher seus valores não o torna livre das regras da realidade – o fato de o ser humano escolher dar valor ao ato de saciar a sua sede não o torna capaz de valorar um punhado de areia por sua capacidade de saciar sua sede.
Pelo fato de todo existente ter uma identidade, toda valoração deve levar em consideração não apenas a vontade de quem valora, mas a natureza de quem valora e do que é valorado. O padrão-ouro é defendido pelos objetivistas, não como um bem que se tornou comercializável de forma arbitrária ao longo da história porque indivíduos escolheram efetuar trocas, mas como um bem com qualidades específicas – como o fato de ser um artigo de luxo, homogêneo e divisível – que o torna ideal para suprir necessidades específicas do ser humano, como trocar e estocar valor. Os autores da Nova Escola Austríaca se aprofundam ainda mais no assunto, mostrando como há características objetivas de natureza social, como o bid-ask spread, a razão estoque-fluxo e a capacidade de extinguir dívidas, que transformam uma commodity em moeda.
Ao rejeitar a ideia de valores objetivos – ou, ao menos, a sua relevância para o estudo econômico – autores como Mises impossibilitaram a definição de critérios objetivos que tornem um bem apropriado para uso como moeda. A teoria subjetiva do valor leva, necessariamente, a uma teoria monetária subjetiva, segundo a qual a moeda ideal é aquela escolhida, de forma subjetiva, por indivíduos livres em um processo de mercado.
Para a EA, o ouro e a prata acabaram sendo escolhidos – e parte disso se deve a suas características físicas – porém não são necessariamente os melhores bens monetários. Pode acontecer que, devido a uma mudança na conjuntura econômica, a platina ou o trigo se torne um bem mais comercializável. Além de mudanças de natureza espontânea, também é possível que um empresário crie um ativo lastreado em uma cesta específica de diversos bens, que acabe sendo mais comercializável que qualquer commodity específica. O que importa, para a teoria austríaca, é a valoração subjetiva dos indivíduos, e não a natureza do bem.
Por conta de sua natureza subjetivista, a conclusão lógica da teoria austríaca da moeda não é o lastro ouro em si, mas a teoria exposta por F. A. Hayek (1899 – 1992) em A Desestatização da Moeda, segundo a qual a moeda ideal é aquela selecionada em um processo de livre concorrência entre ativos monetários privados. Na ausência de uma teoria de valor que leve em conta as características específicas do bem valorado, o que resta é o processo social de livre concorrência que origina a instituição monetária. O Objetivismo, por outro lado, parte da ideia de valores objetivos para chegar a uma defesa objetiva do padrão-ouro. Essa dicotomia entre processos sociais subjetivos da escola austríaca, e a natureza específica dos existentes do Objetivismo é ainda mais intensa quando aplicada à natureza da lei e do Estado.
O anarcocapitalismo e a república racional
Tanto o Objetivismo quanto a Escola Austríaca defendem uma redução do Estado ao necessário para a manutenção da liberdade do indivíduo. Para o Objetivismo, o necessário é um exército, para proteger o indivíduo de ameaças externas, uma força policial, para proteger o indivíduo de criminosos domésticos, e um sistema legal, para resolver disputas através da aplicação da lei a casos específicos – tudo isso guiado e fiscalizado por princípios legais específicos, baseados no direito do indivíduo à sua própria vida. A Escola Austríaca, por outro lado, possui uma miríade de visões diferentes sobre a lei e o Estado.
Os autores austríacos mais antigos, de Menger a Mises, focam mais na natureza do mercado, e não escrevem extensamente sobre a natureza ou o ideal do Estado, limitando-se a defender um governo enxuto, restrito à defesa da propriedade privada. De certa forma, é possível dizer que o minarquismo dos primeiros austríacos se assemelha ao ideal político objetivista. No entanto, essa visão política não possui uma justificativa racional e sistemática e, portanto, não pode ser considerada a “visão austríaca” sobre o tema. Autores posteriores, como F.A. Hayek e Murray Rothbard, não tratam apenas do processo de mercado, mas se aprofundam na natureza e no papel do Estado, apresentando visões extremamente conflitantes entre si.
Hayek apresenta uma visão mais conservadora da natureza do Estado, semelhante àquela de liberais clássicos como John Locke. Para o autor, a lei não é algo decidido e criado propositalmente por um grupo de indivíduos, mas um conjunto de valores que emerge de forma espontânea das interações sociais, de forma semelhante à moeda. Em Direito, Legislação e Liberdade, Hayek explica como, em uma sociedade livre, há um tipo de ordem, que emerge de forma não planejada, pois a interação recorrente entre indivíduos dá origem a um conjunto de princípios que guiam as suas ações – princípios que ele chama de Nomos[5].
Apesar de negar a existência de uma base objetiva para a moral, Hayek percebe que os valores que emergem de forma espontânea em uma sociedade não são necessariamente corretos, mas, com frequência, precisam ser corrigidos por um corpo legislativo. A ideia que mulheres e negros não deveriam ter direito ao voto, por exemplo, emergiu de forma espontânea na sociedade ocidental, e foi corrigida por ações legislativas propositais. Mas se não há uma base objetiva para a moralidade da lei, qual deve ser o critério usado pelo legislador para alterar o Nomos de uma sociedade?
Hayek responde a esse questionamento usando a própria limitação do conhecimento humano como critério para definir a lei ideal. Segundo o autor, a ausência de critérios objetivos para a definição de um código moral implica que o sistema social ideal é aquele que permite uma experimentação estável por parte dos indivíduos. Em outras palavras, as leis espontâneas desenvolvidas por um povo devem ser corrigidas, de forma gradual, na medida em que impedem a liberdade do indivíduo, entendida como um instrumento empírico na descoberta de formas melhores de se viver.
Por conta de sua visão gradualista e coletivista, Hayek é frequentemente taxado de conservador. Ele, porém, se opõe fundamentalmente ao conservadorismo em dois aspectos distintos: (i) nacionalismo; Hayek, como todo autor da Escola Austríaca, rejeita a ideia de “economia nacional” ou qualquer entidade coletiva do tipo, demonstrando como o comércio e a interação entre membros de diferentes sociedades é benéfica para ambos; (ii) a intenção do autor não é conservar os valores originais de um povo, mas permitir que a sociedade mude de forma estável. A sua visão, porém, tem uma inconsistência interna que a torna vulnerável a críticas por parte da corrente política hegemônica dentro da EA: o anarcocapitalismo.
A visão de Hayek sobre o Estado e a lei abre uma brecha para um questionamento claro e incisivo: se o propósito da liberdade é permitir que o indivíduo descubra novas formas de se viver, como é possível descobrir qual a melhor delas em um sistema distorcido pela manutenção de suas tradições? Toda a teoria austríaca converge para a constatação de que a intervenção estatal causa distorções na informação disponível ao indivíduo. Como, então, uma sociedade que seja parcialmente livre, abrindo espaço para uma liberdade incompleta, pode ser um ambiente favorável ao teste de novas ideias? Ela não pode, e é por isso que as premissas austríacas levam, em última instância, à visão anarcocapitalista de autores como Murray Rothbard e Hans Hermann-Hoppe (1949).
O anarcocapitalismo busca essencialmente a extinção do Estado, com a alocação de suas funções essenciais como a defesa, o policiamento e a mediação de conflitos para o setor privado. Para Rothbard, a natureza do Estado é incompatível com as ideias de liberdade e propriedade, visto que o mesmo impõe leis com as quais o indivíduo pode não concordar, além de ser mantido por meio de impostos, tomados à força do cidadão.
Com a extinção do Estado, as pessoas seriam livres para se associar apenas de acordo com seus valores em comum, fundando cidades privadas por meio de contratos, com suas próprias leis – quaisquer que sejam elas – e pagando empresas especializadas por proteção militar e policiamento, além de empresas jurídicas privadas para a resolução pacífica de conflitos. A paz seria mantida pelo desejo racional – e a necessidade, em um contexto de mercado – das empresas envolvidas pelo lucro, que as faria evitar conflitos armados sempre que possível.
De forma mais concreta, Antônio, marxista convicto, não seria mais obrigado a sustentar um sistema que considera corrupto, podendo fundar a sua própria comuna com indivíduos de valores semelhantes, dentro da qual os meios de produção seriam de posse comum, e as decisões públicas seriam tomadas por meio de comitês populares. A alguns quilômetros de distância, José, muçulmano sunita, poderia fundar a sua própria cidade teocrática, onde os habitantes se submeteriam voluntariamente à Sharia, e as decisões públicas seriam tomadas pelo Imã local, ou algum outro comitê religioso. Os habitantes de cada cidade arcariam com seus custos de defesa e policiamento, posto que a interação racional evitaria uma guerra entre ambas e, no evento de qualquer desavença, a resolução se daria em tribunais privados. Tudo corre bem, desde que a interação entre as duas cidades seja regida pelo princípio da propriedade privada.
O problema com o modelo anarcocapitalista fica evidente com a hipótese de uma desavença na qual Antônio acusa José de roubar um carro, bem coletivo de todos os habitantes de sua cidade. Mesmo supondo que ambas as cidades estejam sujeitas, em suas interações, ao princípio da propriedade privada, os procedimentos jurídicos considerados apropriados por cada uma seriam totalmente incompatíveis. O sistema jurídico da cidade de José não reconhece a validade plena do testemunho de mulheres e infiéis, principalmente quando em contradição com a palavra de um homem muçulmano honesto. Antônio, por outro lado, não reconhece a validade de um testemunho individual que se oponha à verdade coletiva decidida pelo povo.
O problema não é apenas uma divergência no conteúdo da lei local, que pode ser resolvido por um princípio global de propriedade, mas uma incompatibilidade quanto aos valores que embasam toda a interação social entre os indivíduos. Com isso em mente, fica fácil perceber como, com a repetição desse padrão, a soberania do consumidor[6] facilmente daria origem a empresas de segurança dispostas a, de fato, entrar em guerra.
O erro fundamental do ideal anarcocapitalista no âmbito político é tratar o Estado como uma organização, que pode ser extinta através da ação dos indivíduos. Ayn Rand percebe que o Estado não é apenas uma organização, mas uma instituição logicamente necessária ao conceito de direitos. Assim como o mercado é o processo através do qual os indivíduos organizam a produção, que sempre existirá enquanto houver trocas voluntárias, o Estado é o processo através do qual os indivíduos organizam a violência, e sempre existirá enquanto houver a capacidade humana para agressão, e valores que a guiem.
Ayn Rand entende o Estado como a consequência prática da hegemonia de certos valores em uma sociedade. Sejam quais forem os valores adotados pelos membros de uma sociedade – e sejam eles racionais ou não – eles ditam a forma pela qual esses indivíduos organizam a violência em um contexto social. Em The DIM Hypothesis, Leonard Peikoff chega a indentificar como o método usado por uma sociedade para integrar informação leva a determinados sistemas políticos, relacionando a dialética platônica ao totalitarismo, a lógica aristotélica ao republicanismo e a anti-lógica kantiana ao tribalismo.
A resposta objetivista à questão do Estado não é a sua extinção, mas a sua adequação a princípios racionais. O aspecto volicional da natureza humana faz com que o homem necessite de valores para guiar as suas ações. O aspecto racional da natureza humana faz com que ele possa escolher liberdade, propriedade e justiça como valores individuais e, consequentemente, como princípios políticos. Com base nisso, é possível construir um estado republicano, limitado à sua função essencial: a defesa da propriedade e da liberdade dos indivíduos de invasores estrangeiros, por meio de um exército; de criminosos domésticos, por meio de uma polícia; e do próprio governo, por meio de um sistema legal.
Apesar de defender uma sociedade em que indivíduos com valores conflitantes possam viver em paz, o anarcocapitalismo austríaco nega apenas parcialmente a necessidade de certos valores para atingir uma organização social. Para que o modelo proposto por autores como Rothbard, Block e Hoppe funcione, é necessário que os membros de uma sociedade aceitem o princípio da autopropriedade do indivíduo, que consideram universal e independente das outras escolhas das pessoas. É exatamente essa ideia de que a propriedade pode existir em um “vácuo filosófico” que diferencia a política austríaca da política objetivista – e o axioma da não agressão do princípio da não agressão.
Não Agressão: Axioma ou Princípio?
A base da teoria política, tanto para o Objetivismo quanto para a Escola Austríaca é o Princípio da Não Agressão (PNA), também chamado de Axioma da Não Agressão (ANA) pelos austríacos. É exatamente essa diferença entre princípio e axioma que está no cerne das diferenças éticas das duas escolas de pensamento.
Um axioma é uma proposição que identifica uma verdade autoevidente, necessariamente implícita em qualquer outra afirmação. Influenciado pela Praxeologia de Mises e Rothbard, Hans-Hermann Hoppe busca criar uma teoria ética a priori e livre de quaisquer julgamento de valor, mostrando como a propriedade privada é um valor universal e autoevidente. Para o autor, pouco importam quais os valores metafísicos e epistemológicos que uma pessoa adote – todos eles implicam na ideia da autopropriedade.
A ética argumentativa de Hoppe consiste em demostrar, de forma não contraditória, que se dois indivíduos estão dialogando, e não trocando socos, ambos aceitaram, ainda que de forma implícita, a premissa de que seu interlocutor é capaz de produzir e entender frases com significado. Ao aceitar essa premissa, escolhendo dialogar com outrem, o indivíduo decide, ainda que implicitamente, que o diálogo é, não apenas possível, mas desejável frente à opção de violência física. O autor conclui que pregar a violência, portanto, seja ela de forma direta ou através de violações à propriedade privada (por meio de impostos por exemplo) é uma contradição performática, i.e. entre o que é dito e o que é praticado pelo indivíduo. Considerando que é impossível organizar a violência, tal como é necessário para a existência de um Estado, sem dialogar com outros indivíduos, Hoppe conclui que qualquer código de valores leva ao anarcocapitalismo.
Utilizando os princípios da Praxeologia no campo da Ética, portanto, Hoppe chega à conclusão de que, independentemente dos valores adotados por um indivíduo, se ele dialoga com alguém – ainda que com seus aliados políticos, e não seus inimigos – ele não pode praticar um ato de violência sem contradizer as próprias premissas implícitas que adota em sua ação. Essa ideia universal se aplicaria a qualquer indivíduo, de qualquer credo, independentemente dos valores que ele aceita, tornando a propriedade privada e o princípio da não agressão axiomáticos. O autor, porém, ignora o importante fato de que a própria ideia de que a contradição invalida uma forma de pensar é, por si só, dependente de um conjunto de valores.
A ideia de que José, nosso muçulmano sunita radical do exemplo anterior, seria capaz de aceitar ao mesmo tempo as premissas do Islã e o Axioma da Não Agressão, e portanto ser capaz de fundar uma comunidade muçulmana dentro de uma sociedade maior anarcocapitalista, parte do pressuposto de que ele aceita o princípio da não-contradição – do qual trataremos mais a fundo na última seção desse artigo – no que diz respeito ao conhecimento e à ética. A metafísica muçulmana, porém, prega a primazia da consciência e não da existência[7], e sua epistemologia coloca a revelação e a fé acima da lógica e da razão. Dentro desse paradigma, não há razão alguma para rejeitar uma contradição performática como parte do desígnio de Alá.
Da mesma forma, Antônio e sua comunidade marxista adotam a primazia da consciência e a dialética, e podem simplesmente rejeitar o valor da contradição performática como consequência inevitável da falibilidade humana, característica essa do movimento dialético histórico. Diferentemente dos autores da Escola Austríaca, Rand percebe que os valores políticos da liberdade e da propriedade não podem existir sem uma ampla base metafísica, epistemológica e ética.
Diferentemente de um axioma, um princípio é uma “verdade fundamental, primária ou geral, da qual outras verdades dependem”[8], i.e. uma base a partir da qual um certo contexto pode ser analisado, mas que depende de informação prévia para ser percebido e formulado. Um princípio, diferentemente de um axioma, não é autoevidente. O PNA, como todo princípio político, precisa de uma base metafísica, epistemológica e ética.
Os axiomas formulados por Rand não são éticos ou políticos, como o ANA, mas metafísicos. Na base do sistema filosófico da autora estão as ideias de que a existência existe, de que os existentes tem identidade própria e que a consciência é a faculdade através da qual percebemos – e não criamos – aquilo que existe. Essas são, de fato, verdades autoevidentes implícitas em qualquer forma de conhecimento.
Por conta da natureza não contraditória da existência, o método correto para adquirir conhecimento sobre a natureza dos existentes é através da integração não contraditória de toda a informação provida pelos sentidos na formação de conceitos. Conceitos, por sua vez, são integrações mentais de duas ou mais unidades, através da abstração daquilo que é essencial e comum a ambas. Essas ideias são a base do método da Lógica na epistemologia, e a necessidade da adoção do princípio da não-contradição – essencial à ética argumentativa hoppeana – depende, em última instância, de sua aceitação.
Ao aplicar a formação de conceitos através da lógica ao ser humano, percebe-se que ele é, essencialmente, um animal racional. Enquanto animal, o homem precisa agir para alcançar certos objetivos para se manter vivo; enquanto ser racional, ele é incapaz de se manter vivo apenas através de seus instintos como os outros animais, logo precisa escolher seus valores e seu propósito, criando conceitos de forma volicional.
Por conta de sua natureza, a única coisa que pode impedir um ser humano de criar os valores que precisa para se manter vivo é a supressão de sua capacidade racional através da violência, ou da ameaça de violência por terceiros. É por conta disso que, no âmbito político, o homem que quiser ter uma vida boa deve proibir o início da violência física contra terceiros, e é essa a base por trás do PNA e do funcionamento de um Estado racional. A não agressão não é axiomática, mas depende da primazia da existência na Metafísica, da lógica na Epistemologia, e do egoísmo na Ética.
A divergência entre a Escola Austríaca e o Objetivismo, porém, é mais profunda que a ética e a política, e não é restrita ao autores kantianos como Hoppe ou Mises. A divergência entre ambos não diz respeito apenas à natureza dos valores, ou da importância dada a eles. A divergência essencial está no método epistemológico utilizado por ambas as escolas: a lógica objetivista e a dialética austríaca.
Lógica e dialética
Em suas obras, os principais autores austríacos falam exaustivamente sobre o uso da lógica. A Praxeologia de Mises nada mais é do que a aplicação da lógica à dedução de características inerentes à ação, com base em princípios a priori. Rothbard, rejeitando o aprioriorismo de Mises, usa a lógica a partir de axiomas empíricos para, também, deduzir a natureza da ação humana. Hoppe fala sobre o uso da lógica em sua ética argumentativa, utilizando a não-contradição praxeológica como critério para a validade de uma conduta ética. Até Hayek, que rejeita parcialmente a lógica, por conta da falibilidade da consciência humana, presta atenção ao princípio da não contradição em sua metodologia. Nenhum desses autores, porém, usa a Lógica, tal como inventada por Aristóteles – todos eles usam a dialética, método de filósofos como Platão e Hegel.
A dialética é o método de investigação criado por Sócrates, e posteriormente adotado por diversos filósofos, de Platão a Karl Marx. A base do método é a ideia de que o pensamento individual é enviesado e, portanto, incapaz de alcançar a verdade. A alternativa ao pensamento individual é o diálogo entre dois indivíduos, ou o pensamento dialético, que pondera de forma honesta as críticas ao pensamento original, de forma a entender e consertar suas falhas.
Quando os autores da Escola Austríaca falam em lógica, eles na verdade se referem ao princípio da não-contradição, parte essencial tanto do método lógico quanto do método dialético. A não contradição, porém, é apenas uma parte do método da lógica, que na verdade consiste da integração não contraditória de todas as informações providas pelos sentidos. A aplicação do método da lógica não requer simplesmente que uma tese não tenha contradições internas, mas também que ela se baseie apenas, – e em todos os dados sobre a realidade providos pelos sentidos, sem permitir contradições.
O uso do a priori de von Mises é uma violação direta do caráter empírico do método lógico, pois faz com que a sua teoria parta de uma base arbitrária e não validada, ainda que majoritariamente verdadeira na prática. A rejeição do empirismo em favor do racionalismo por Rothbard fere o mesmo princípio, ainda que suas críticas, tanto ao a priori de Mises quanto ao cientificismo empírico dos positivistas, sejam inteiramente válidas. A ética argumentativa de Hoppe, por outro lado, eleva a rejeição à lógica ao patamar mais elevado dentro da EA.
O pressuposto implícito na ética argumentativa é de que não se pode conhecer, de fato, a realidade, ou ao menos de que é impossível derivar valores éticos de forma objetiva do conhecimento da realidade. O próprio Rothbard, em Beyond Is and Ought, se refere ao sistema ético de Hoppe como algo que “transcende a dicotomia entre o que é e o que deve ser”, e não como um corpo teórico que rejeita essa ideia espúria. Por conta dessa rejeição, o objetivo da ética argumentativa não é integrar, sem contradição, a informação sobre a realidade, mas não entrar em contradição durante uma argumentação – ou seja, dialética, não lógica.
A lógica, tal como inventada por Aristóteles e entendida pelo Objetivismo, parte do pressuposto de que a existência não permite contradições, logo um corpo teórico que se proponha a explicar a realidade não deve permitir contradições entre suas proposições, e entre si mesmo e a realidade. A lógica, na forma deturpada utilizada pela Escola Austríaca, nega a relação entre o corpo teórico e a realidade, refletindo uma adoção metafísica da primazia da consciência. Se a realidade tal como a percebemos é, na verdade, um produto da mente, o que importa é apenas que essa mente não se contradiga. O objetivo não é dominar a realidade, mas dominar a mente de seu oponente intelectual.
O objetivo desse artigo não é desmerecer o trabalho dos autores da EA. Suas críticas, sejam ao Marxismo, ao Positivismo ou a qualquer forma de autoritarismo são brilhantes; sua metodologia individualista, singularista e dedutiva é essencial a qualquer ciência humana que deseje ser levada a sério; suas ideias de marginalismo e cataláxia são revolucionárias para o estudo da Economia. A importância da EA é tão significativa que até economistas objetivistas como George Reisman e Keith Weiner ainda se baseiam no trabalho de autores como Mises e Rothbard.
O propósito desse artigo é mostrar como as premissas epistemológicas austríacas, apesar de levarem a uma metodologia sólida, consistem em uma rejeição da lógica em prol da dialética; e como o uso da dialética em detrimento da lógica, por sua vez, leva à negação do contexto dentro do qual valores existem e fazem sentido – a realidade – e à busca por uma “pureza” arbitrária e impossível, semelhante àquela encontrada na revelação platônica ou no a priori kantiano. Essa rejeição da realidade não apenas abre espaço, mas leva inexoravelmente à rejeição do processo natural e necessário que dá origem ao Estado, e à crença de que o valor da propriedade pode existir fora de um contexto intelectual específico.
Vivemos em uma época na qual as teorias ortodoxas da economia estão entrando progressivamente em crise, após décadas de previsões incorretas e políticas públicas desastrosas. É absolutamente necessário que o meio acadêmico austríaco se livre de seus erros essenciais, para que possa substituir o positivismo como paradigma científico hegemônico no campo das ciências humanas.
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Revisado por Matheus Pacini
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[1] A Nova Escola Austríaca é um movimento intelectual fundado pelo economista e matemático húngaro Antal Fekete, baseado na adoção de uma epistemologia objetiva e em um retorno às ideias originais de Carl Menger de lógica, valor e marginalismo.
[2] Os autores austríacos, de Menger a Rothbard, citam diversas características de um bem que contribuem para a sua comerciabilidade. Nenhum autor da EA, porém, estabelece uma relação causal direta para a comerciabilidade, mostrando qual a característica essencial que transforma um bem em moeda. Apenas com a Nova Escola Austríaca e o conceito de bid-ask spread o paradigma austríaco ganha uma definição objetiva de comerciabilidade.
[3] Apesar de sutil, há uma grande diferença entre uma teoria subjetiva e uma teoria volitiva do valor. Uma teoria subjetiva do valor rejeita a ideia de natureza humana, e estabelece que qualquer objeto pode ter qualquer valor, a depender apenas da vontade do sujeito que valora. Isso significa que, em teoria, não há nada de errado com um indivíduo que valore apenas pedras, e troque qualquer bem que tenha acesso por pedras. Na prática, é fácil perceber que esse indivíduo não viverá por muito tempo, e consequentemente não valorará bens por muito tempo.
A teoria volitiva do valor, adotada tanto por Ayn Rand quanto por Carl Menger, propõe que a escolha é uma parte essencial do processo valorativo, visto que o indivíduo valora de acordo com os conceitos que construiu, e de forma não intrínseca ou automática. Apesar disso, a teoria não ignora o aspecto objetivo da valoração: a natureza dos existentes. O ser humano não valora bens por capricho, mas porque precisa valorar para se manter vivo. Isso implica que não é possível, para um indivíduo que se mantenha vivo por tempo o suficiente para ser relevante ao estudo econômico, ter valores que o levem a consumir cianureto, por exemplo.
Pode parecer uma diferença pequena, mas a ideia de necessidades humanas como constantes valorativas são uma das grandes diferenças entre a Escola Austríaca e a Nova Escola Austríaca de Economia, e leva ambas a propor teorias da moeda e do crédito bastante diferentes.
[4] A volição é a característica não-automática da mente humana. O conceito identifica o fato de que o ser humano é incapaz de agir apenas por instinto, como fazem a maioria dos animais, mas precisa escolher seus fins e os meios para alcança-los.
[5] Em sua obra, Hayek contrasta o Nomos, i.e. os princípios que emergem de forma espontânea em uma ordem não planejada, com o Thesis, i.e o conjunto de regras criadas deliberadamente em uma organização. O autor mostra como, quanto mais livre uma sociedade, mais as suas leis serão regidas por Nomos, que limitam o escopo das ações de indivíduos essencialmente livres. Quanto mais autoritária uma sociedade, por outro lado, mais suas leis tomam a forma de Thesis, que ditam especificamente as ações que os indivíduos devem tomar em cada circunstância.
[6] A soberania do consumidor é um conceito de William Harold Hutt (1899 – 1988) adotado pela Escola Austríaca, que identifica o fato de que, em uma economia livre, o consumidor é quem decide, em última instância, os bens que serão produzidos. Objetivamente, quem decide o que será produzido são os produtores, mas são os consumidores que escolhem, através da alocação de seus recursos, quais empresas serão lucrativas.
[7] A primazia da existência é o princípio objetivista de que a existência existe, e a consciência é secundária a ela. Em outras palavras, aquilo que existe, existe de forma independente de qualquer consciência. A natureza é a capacidade de perceber a existência, e não a altera. A visão contrária, chamada por Ayn Rand de “primazia da consciência”, é a ideia de que a consciência, seja ela divina, coletiva ou individual, cria ou influencia aquilo que é percebido, e é a base metafísica da maioria dos sistemas filosóficos irracionais, do misticismo religioso ao coletivismo secular.
[8] Capitalism: The Unknown Ideal, 1967, p.144
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