“Se há um Atlas na filosofia que carrega toda a civilização ocidental em seus ombros, ele é Aristóteles”. Assim começa a análise de Rand sobre o livro Aristóteles de John Hermann Randall. Rand não escondia a sua dívida com Aristóteles, pelo fato de ele “ter definido os princípios básicos de uma perspectiva racional da existência e da consciência do homem”. Aristóteles e Rand partilhavam a visão do homem como “animal racional” capaz de atingir valores e levar uma vida de realização pessoal. Mesmo assim, existem diferenças fundamentais entre eles no ramo da Ética – a principal sendo a questão da base da moralidade. Aristóteles afirma que o valor último do homem é o estado de “florescimento humano”, mas argumenta que, devido à quantidade de variáveis envolvidas e às muitas concepções de florescimento existentes, o campo da ética é inerentemente impreciso. Por outro lado, Rand determina que o valor último do homem é a sua própria vida, e que o propósito da moralidade é definir um código de valores que dê suporte à vida do homem. Essa posição dá à Rand um critério objetivo para a ação moral, algo que falta na ética de Aristóteles (“objetivo” aqui sendo usado como sinônimo de imparcial, universalmente aplicável, ditado por, e derivado dos fatos da realidade). Ao vincular a existência da moralidade aos requisitos verificáveis da vida humana, Rand apresenta um código ético mais integrado e preciso do que o de Aristóteles, cuja concepção de ética, por não contar com a métrica randiana da vida, é circular, inexata e imperfeitamente fundamentada.
A primeira linha da Ética a Nicômaco articula o objetivo do projeto ético de Aristóteles: identificar o bem último, i.e. o valor último, “… aquilo a que todas as coisas visam”. Para Aristóteles, identificar o “bem” é de suma importância; “Não teria, então, o conhecimento disso uma grande influência na vida?”. No capítulo 4 do livro 1, Aristóteles expõe sua definição de bem último: “parece haver acordo porque tanto o homem comum quanto as pessoas de refinamento superior afirmam se tratar da felicidade… eles diferem apenas no que constitui a felicidade”. Nota: a palavra utilizada por Aristóteles para a felicidade é eudaimonia, um termo grego amplamente utilizado, traduzido como um “estado de florescimento humano”. Até na época de Aristóteles, todavia, o que constituiria essa vida de eudaimonia era tema de intenso debate.
A Ética a Nicômaco pode ser entendida como uma tentativa de definição dessa eudaimonia e como alcançá-la, e a metodologia presente na obra é, sem dúvida, admirável. Aristóteles não recorre à dedução de “princípios primários” imaginários, tampouco à revelação divina. Não surpreende que muitos considerem Aristóteles o primeiro biólogo ou mesmo o primeiro cientista. Para ele, todas as entidades têm uma função característica (“ergon”), e o bem está em realizá-la. A função do homem, “o animal racional”, consiste na “agir na alma de acordo com a razão”, i.e. levar uma vida de atividade racional. Para o ser humano, viver racionalmente leva a, e é, o estado de florescimento humano.
Com o objetivo de discernir a natureza do “florescimento humano”, Aristóteles estuda as ideias e as ações do povo de Atenas, considerado em processo de florescimento. Mas como ele sabe identificar quem está “florescendo”? Ele responde: “Devemos chegar à verdade considerando quem são os que consideramos estar nesse estado”. Infelizmente, essa é uma forma de raciocínio circular, que diz em essência: descobriremos o significado de bem pela observação de homens bons. Isso me parece uma tentativa de Aristóteles de chegar ao equivalente filosófico do critério de “homem razoável” utilizado no direito consuetudinário. Na ausência de um princípio claro, um juiz pode pedir ao júri que considere como um “homem razoável” agiria em determinada situação. Apesar de sua possível utilidade, esse é um ponto de referência impreciso. Ele falha em prover um critério objetivo para avaliar a ação ética. Rand resolve esse dilema com sua solução metaética.
No campo por ele chamado de “virtudes de caráter”, Aristóteles, na ausência de uma métrica exata, opta por defender essencialmente os ideais gregos da sua época, virtudes como a coragem, o autocontrole e a honestidade. Considerando a sabedoria de Aristóteles e a saúde da cultura grega, não surpreende que ele atribua valor basicamente às características que contribuem para a vida. Porém, também inclusas em sua análise estão características que parecem ser mais preferências do que princípios – como, por exemplo, “sagacidade”. Essa pode ser uma característica valiosa, mas é difícil entender por que ela pode ser qualificada como uma virtude essencial. Além disso, falta em Aristóteles uma virtude que Rand considera crucial para a vida: a produtividade. Novamente, isso se deve ao fato de que Rand conecta o que constitui um valor ou uma virtude ao que veremos ser um padrão objetivo baseado na vida. (Rand admite que, antes da Revolução Industrial e da evidência esmagadora das invenções criadas pela razão, seria impossível que Aristóteles tivesse induzido a conexão direta entre a razão e a criação de valores que geram vida).
No campo de suas “virtudes intelectuais”, Aristóteles sustenta que a forma mais elevada de raciocínio é também a mais pura: “a contemplação de verdades atemporais”. Na obra publicada postumamente Ayn Rand Marginalia, Rand responde a essa posição de Aristóteles, afirmando que “essa é a diferença explícita entre Aristóteles e eu”. A contemplação como um fim em si mesma é uma ideia estranha à Rand. Para ela, tudo deve ser avaliado apenas com referência ao seu valor para a manutenção da vida. Vejamos como ela chega nessa perspectiva.
Em seu ensaio A ética objetivista, Rand declara, “a primeira pergunta não é qual é o código de valores que deve ser aceito pelo homem, mas sim, por que o homem precisa de valores?”. Para Rand, a resposta reside na natureza do homem enquanto ser vivo: “Há apenas uma alternativa fundamental no universo – existência e não existência – e pertence a uma única classe de entidades: organismos vivos… Apenas um organismo vivo encara uma alternativa constante entre vida e morte… É apenas o conceito ‘vida’ que torna possível o conceito ‘valor’”. Isso, para Rand, é a fonte última e fundamental de todos os valores – o fato de que a vida é condicional. Tanto metafísica (na realidade) quanto epistemologicamente (em termos da conceptualização lógica do termo ‘valor’), é a vida que torna os valores tanto possíveis quanto necessários. Humanos, como seres de natureza específica, que vivem num mundo com natureza específica, devem pensar e agir de formas específicas para viver.
O ponto de Rand não é que a vida é “um” valor em meio a tantos outros. O seu ponto é que a vida é o valor último. Ela escreve que um “valor último é o objetivo final para o qual todos os objetivos menores são meios, estabelecendo o critério pelo qual todos os objetivos menores devem ser avaliados”. E o que segue é o insight revolucionário de Rand: “A vida de um organismo é o seu critério de valoração; aquilo que promove a sua vida é o bem, e aquilo que a ameaça é o mal”. Aqui Rand identifica precisamente o vínculo entre fatos e valores de uma forma que a eudaimonia de Aristóteles não faz. Isso dá ao código ético de Rand um indicador preciso do que pode ou não ser reconhecido como um valor (aquilo que promove a vida), e o que pode ou não ser reconhecido como uma virtude (as ações que tomamos para adquirir ou manter esses valores que servem à vida).
Alguém pode perguntar: o critério de “vida” de Rand é um critério duro e vago quando comparado à eudaimonia de Aristóteles? Não. Quando Rand afirma que o objetivo último da ética é a vida, ela não quer dizer a mera sobrevivência momentânea, ou a mera sobrevivência física. Ela fala da “sobrevivência do homem como homem”. E ela deixa claro: “A ‘sobrevivência do homem como homem’ abarca termos, métodos, condições e objetivos necessários para a sobrevivência de um ser racional durante a sua vida”.
Alguém pode perguntar ainda: esse esclarecimento adicional de Rand, a “sobrevivência do homem como homem”, não é um artifício para inserir furtivamente um certo conteúdo eudaimonístico em sua afirmação de que a vida é o critério? Não. É a aplicação randiana da “lei da identidade” de autoria de Aristóteles. Nós somos seres de natureza específica, e o nosso meio de sobrevivência é a nossa consciência conceitual. Para Rand, todos os valores e virtudes humanas são validados, definidos e determinados pela sua capacidade de promover ou não a vida. (Isso resolve o problema da circularidade de Aristóteles). Isso inclui os valores cardinais que Rand identifica como razão, propósito e autoestima, e todas as virtudes que precisamos para alcançar nossos valores – racionalidade e todos os seus derivados: independência, integridade, honestidade, justiça, produtividade e orgulho.
Como Rand afirma, a nossa faculdade racional, nosso único meio de sobrevivência, “…é uma faculdade que o homem deve escolher exercer”. Até aprender os meios apropriados para usar a nossa mente (como formular conceitos de forma objetiva, como aplicá-los de forma lógica, como assegurar que as nossas ideias correspondem à realidade), é uma escolha. Todos os nossos valores “espirituais”: arte, amor, filosofia têm valor para a sobrevivência porque são formas de motivar, manifestar ou implementar a nossa faculdade conceitual. Entendida plenamente, a vida guiada pelo critério definido por Rand leva a uma vida eudaimonística, definida racionalmente. Mas é a “vida” em si que permanece sendo o critério objetivo e o valor último.
“This essay was originally written as a course assignment for the Ayn Rand Institute’s Objectivist Academic Center (OAC®) and has been adapted for publication. The Ayn Rand Institute does not necessarily endorse the content of the essay.”
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Traduzido por Bill Pedroso.
Revisado por Matheus Pacini.
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