A linguagem pode ser objetiva, afinal?

A linguagem não pode ser objetiva, pois é essencialmente uma construção social, criada coletivamente para que as pessoas possam se comunicar entre si. Por causa disso, uma palavra significa o que quer a maioria das pessoas quiser que signifique”.

Essa parece ser uma forma comum de pensar sobre a linguagem, mas equivale a dizer que um carro não pode ser rápido, porque seu propósito é tocar músicas no rádio. A linguagem possibilita a comunicação, mas assim como o sistema de som de um carro, esse não é seu propósito principal. O termo “comunicação” se refere a duas mentes capazes de perceber o mundo, trocando informações que identificaram. Antes de comunicar, é necessário identificar – e a identificação, em nível conceitual, requer linguagem.

Ao criar conceitos, integramos diversas percepções diretas – ou conceitos formados anteriormente – em uma única unidade mental: estabelecemos um símbolo para essa unidade – uma palavra ou imagem que traz o conceito em questão, e seu conteúdo, à mente. Essencialmente, a linguagem é a associação entre símbolo e significado – e esse processo pode se dar de forma objetiva, ou segundo caprichos momentâneos.

Se os símbolos utilizados por uma pessoa denotam conceitos específicos, e podem ser usados para formular proposições com significado claro, essa pessoa está utilizando a linguagem de forma objetiva, e ela lhe servirá tanto para a cognição quanto para a comunicação. Se os símbolos que ela utiliza são intercambiáveis entre si, e as proposições podem significar qualquer coisa – ou nada em específico – então, ela não serve nenhum propósito que não a desorientação e a dominação de um indivíduo por outro.

Na medida em que os símbolos de uma pessoa correspondem aos símbolos de outra, a comunicação é possível, pois o mesmo símbolo terá o mesmo significado para ambas. Essa correspondência não precisa ser – e geralmente não é – perfeita: uma criança e um biólogo têm coisas diferentes em mente quando falam em um “cachorro”, mas ainda assim conseguem se entender. Pessoas com associações e até definições diferentes podem se entender, na medida em que suas palavras se refiram aos mesmos existentes. Em outras palavras, a comunicação é possível na medida em que a linguagem é objetiva.

O fato de um cientista poder dialogar com uma criança evidencia que a linguagem não é um mero “acordo coletivo” sobre o significado exato das palavras, mas sim um instrumento individual de cognição que, por sua vez, possibilita um tipo de interação social. Se todas as pessoas que falam português subitamente decidirem que “justiça” e “igualdade” significam a mesma coisa, a linguagem não foi simplesmente alterada, mas corrompida – não se trata da redefinição inócua de um acordo coletivo, mas do fim de um instrumento necessário para identificar algo real.

Por isso, sempre preste bastante atenção quando alguém tentar mudar a sua forma de falar. Procure entender qual é a ideia que estão tentando redefinir – ou pior, apagar por completo.

A forma como agradecemos por algo faz diferença?

Decidi escrever um artigo mais leve – em tempos de epidemia global, é preciso. E o que há de mais leve que diferenças linguísticas interessantes?

Percebi que a forma de agradecer em português é incrivelmente inadequada. A expressão thank you apenas reconhece que alguém fez algo bom por você – algo semelhante ao grato que usamos ao final de e-mails. A expressão muchas gracias vai além, dado que “muitas graças” deixa subentendido o desejo de coisas boas para a outra pessoa.

A expressão obrigado que usamos remete a algum tipo de dívida para com quem somos gratos – o que contradiz a natureza espontânea e não contratual de um favor. Em outras palavras, um favor não é uma troca: se fazemos um favor a alguém, ele não se torna “obrigado” a nada. Suspeito que isso tenha relação com o papel histórico das escusas “trocas de favores” na vida social portuguesa. O termo grato não reflete muito o sentido de gratidão: mas os brasileiros encontraram um bom substituto informal na expressão valeu – assim como thank you – para reconhecer o valor de uma determinada ação.

Por outro lado, as línguas inglesa e portuguesa são problemáticas quando precisamos pedir, com educação, algo que não seja um favor. A expressão please é uma forma simplificada de falar if it pleases you (tradução livre, “se isso lhe dá prazer”). Mas se estou pedindo algo pelo qual lhe paguei? Certamente não me importo se o cumprimento de um contrato trará ou não prazer à outra parte. A expressão por favor do português e do espanhol é ainda pior nesse sentido, pois acaba transformando qualquer pedido no pedido de um favor. Isso parece refletir uma falta de assertividade e, provavelmente, é consequência de uma sociedade altruísta, na qual devemos agradar os outros, e torcer para que os outros nos agradem – ao invés de trocar valor por valor.

Novamente, os brasileiros resolveram esse problema por meio de gírias – uma gíria particularmente boa, cujo equivalente ainda não encontrei em nenhuma outra língua. Ao invés de pedirmos por favor, podemos pedir na moral. Pedir algo na moral é reconhecer que o pedido não é um favor, mas que há respeito o suficiente entre as partes para que uma lembre à outra, gentilmente, o certo a fazer.

Termino esse artigo com uma pulga atrás da orelha: a previsão de que alguns leitores pensarão “Viu? A linguagem não é algo ‘puro’, já que possui diversos julgamentos de valor. Como a linguagem é um instrumento essencial para o ato de pensar, em última instância, a sociedade define como pensamos”. De fato, uma expressão carrega consigo a forma de pensar das pessoas que a cunharam – mas ela não nos obriga a pensar da mesma forma. Esse artigo, por si só, ilustra a nossa capacidade de transcender as barreiras impostas por uma língua, seja investigando outras línguas, ou pensando no que há por traz das expressões comuns do nosso cotidiano, substituindo-as por expressões melhores quando necessário.

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Revisado por Matheus Pacini.

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