Uma carta aberta ao Dr. Jordan Peterson a respeito do sofrimento, da ética e da felicidade

Caro Dr. Peterson,

Muito obrigado por defender o individualismo, em geral, e a liberdade de expressão, em particular; e por desafiar o niilismo acadêmico, em geral, e o pós-modernismo neo-marxista, em particular. O seu best-seller 12 regras para a vida: um antídoto para o caos, sua presença marcante na Intelectual Dark Web e os auditórios lotados ao redor do mundo são sinais encorajadores de que os valores do Iluminismo sobrevivem firmes aos ataques de dentro e fora da academia. Porém, em nome do projeto iluminista, peço-lhe que reflita se, por acaso, não está quebrando a sua regra nº10, sobre ser preciso na fala, quando afirma que “a vida é sofrimento”.

Você diz: “a vida é sofrimento. Não existe verdade mais fundamental e irrefutável”, e sobre essa convicção se baseiam as suas crenças. Se tivesse dito “todos sofrem em algum momento” ou “a vida envolve sofrimento”, quem discordaria? Com todo respeito, discordo dessa afirmação. Se assim fosse, a solução mais óbvia seria o suicídio. E caso “o estado básico da vida fosse o de sofrimento impossível de aguentar”, quem seria sádico o bastante para condenar uma criança a uma vida dessas? Pelo que entendi, as suas regras são predicadas na crença de que as pessoas são capazes de lidar com os desafios da vida, de tal forma que o sofrimento pode ser um aspecto marginal, e não a “essência” da vida. Então por que insiste que “a vida é sofrimento”? Que parte eu não entendi[1]?

Li O Arquipélago do Gulag e outras obras que retratam tragédias na história humana, e o meu segundo livro é sobre a vida na Kampuchea de Pol Pot, então sei do que você fala. No entanto, desde o Iluminismo, consideramos a Idade das Trevas, as pragas, os genocídios, a fome e etc. como aberrações da vida, frente ao que ela pode e deve ser. Sou tetraplégico, e meus familiares sofrem aflições ainda piores, logo, não estou alheio ao sofrimento: poucas pessoas estão. Consideramos aberrações as doenças que transformam o sofrimento em norma tantos para os doentes, como para seus cuidadores por um período de tempo – aberrações que são amenizadas e, no mais das vezes, curadas. Quando a sua filha, Jordan, sofreu terrivelmente por anos, você não sentou e disse: “a vida é assim!”. Você tentou curá-la, partindo do pressuposto de que o sofrimento dela não era a vida como ela deveria e poderia ser. E você sabe melhor do que ninguém como rejeitar a inevitabilidade do sofrimento físico tem reduzido de forma constante a sua prevalência, nos últimos 300 anos. Sim, pode haver sofrimento na vida – mas a vida não é sofrimento![2]         

Se entendi corretamente a sua premissa de que a vida é sofrimento, sua origem remonta ao ponto em que, após seu pensamento ter progredido para além do cristianismo e do socialismo de sua juventude, você se viu confrontado por relativistas e subjetivistas que, você sabia, levariam o mundo ao caos e à destruição. Então, como René Descartes, você buscou uma fundação isenta de dúvida, e a encontrou na “realidade do sofrimento”. Ela não deixa espaço para argumentos: niilistas não podem miná-la com ceticismo; totalitários não podem bani-la; cínicos não podem fugir dela. O sofrimento é real, e o ato de fazer alguém sofrer deliberadamente , isto é, ter o sofrimento de outrem como fim, é errado. Essa se tornou a pedra angular de [sua] crença”. Disso você deduziu que “priorizar o alívio da dor e do sofrimento desnecessários na sua hierarquia de valores seria trabalhar para estabelecer o Reino de Deus na Terra”. Em poucas palavras, o alívio do sofrimento tornou-se seu axioma ético e seu padrão de valor, um referencial para sua hierarquia de valores, do sofrimento maior (o mal) ao sofrimento menor (o bem). Da mesma forma que René Descartes disse “penso, logo existo”, você disse “as pessoas sofrem, logo, valoram”.

O problema é que, tal qual os seguidores de René Descartes não tardaram a descobrir, a dúvida cartesiana não é uma fundação válida para uma filosofia. Da mesma forma, não resulta em um padrão apropriado de valor para uma ética (apesar de que, suspeito, a sua utilidade derive de sua conexão com o padrão correto – chegarei lá). Por um lado, quem acreditar nessa premissa literalmente pode chegar à conclusão que expus acima. Por outro, só é aplicável aos aspectos negativos da vida, já que não motiva os positivos. Além disso, torna-se confusa no nível emocional, pois as emoções advém de valores: logo, se você deriva seus valores das emoções, está apenas andando em círculos.

A sua busca por um padrão objetivo, baseado no qual classificar as coisas como boas ou ruins, e as causas humanas como virtudes ou vícios, é o passo vital que os multiculturalistas – dentre outros – não deram no passado, deixando-os sem razão para defender qualquer valor ocidental, independentemente do quão benéfico seja, contra valores antagônicos doutras culturas, independentemente do quão prejudiciais sejam, já que o relativismo moral concede à cada cultura uma “narrativa” inviolável, que não pode ser julgada senão em seus próprios termos. Religiões balizam padrões de valor por revelações feitas a profetas e registradas em textos sagrados, por exemplo, os Dez Mandamentos – porém, no final das contas, sua validade deve ser aceita por fé. Os novos ateus, como Richard Dawkins e Sam Harris, absorvem partes da ética judaico-cristã, mas rejeitam a base na qual ela se sustenta, acreditando que seus preceitos éticos permanecerão válidos de forma autoevidente. Concordo com você, Jordan, que a moralidade “sequestrada” deles não se sustentará no tempo sem a sua base mística, mas poderá ser utilizada seletivamente por corruptos (como os comunistas fizeram).

Com uma perspectiva totalmente diferente, Rand começou identificando, em primeiro lugar, porque entidades vivas precisam de valores e, portanto, porque seres humanos precisam de valores morais fundamentais, obtendo a resposta de qual seria esse padrão de valor. Depois, observou que entidades vivas possuem valores porque deparam com uma escolha constante: vida ou morte. Para uma roseira, clorofila e luz do sol são valores; para um pássaro, asas e minhocas são valores; nos dois casos, são valores porque promovem a vida dessas entidades. Humanos não podem viver ao adotar os valores de uma roseira, afinal, não podemos realizar fotossíntese, nem ao adotar os valores de um pássaro, afinal, mesmo com instintos, não podemos voar: devemos viver de acordo com as exigências de nossa natureza. Contudo, a natureza humana não nos obriga a utilizar os meios humanos para promover nossas vidas: temos de escolher descobrir e implementar os valores exigidos por nossa natureza. Somos a única espécie que pode agir contra as exigências/requisitos de sua própria natureza, mas não podemos fugir das consequências de nossas escolhas – e, portanto, da necessidade de seguir um código de valores morais em nossa vida.

Se escolhermos viver, devemos identificar a nossa natureza humana, vivendo de acordo com ela. Alguns requisitos de nossa vida são automáticos, como o pulsar do coração, os sistemas imunológicos, os reflexos. etc. Mas o meio de sobrevivência única e distintivamente humano é a razão, e a razão é volicional. É por isso que precisamos descobrir e adotar nossos valores conscientemente, escolhendo agir de forma voluntária para adquiri-los e mantê-los. O ser humano é um animal racional; portanto, deve agir racionalmente se quiser viver. Mas não é sempre autoevidente se uma ação é pró-vida ou anti-vida no longo prazo. O escopo de nossas escolhas é ilimitado, e as repercussões de qualquer ação se estendem numa cadeia de efeitos que levam a outras causas que levam a outros efeitos ad infinitum, o que torna o cálculo pragmático dos efeitos das ações praticamente impossível (a despeito do Utilitarismo). Precisamos de valores morais sob a forma de princípios aplicáveis universalmente a fim de que nossas opções permaneçam sempre nos limites do pró-vida. Por exemplo, você pode escolher ser carpinteiro ou contador, porque ambos são formas de ser produtivo, o que é uma virtude, mas escolher ser vagabundo não se enquadra dentro dos limites das virtudes pró-vida.

Aprendemos nossos valores com nossos pais e/ou com a cultura em que crescemos, mas, cedo ou tarde, de uma forma ou outra, perguntamo-nos por que A é bom e B é mau. Se entendi corretamente, Jordan, a sua resposta seria: porque A reduz o sofrimento e B o aumenta. A resposta de Ayn Rand é: porque A favorece sua vida  como ser humano, enquanto B é prejudicial a ela. Conforme a ética objetivista, o padrão de valor apropriado, fruto da natureza da realidade, incluindo a natureza humana, é: “a vida humana, ou aquilo que é necessário para a sobrevivência do homem qua homem”. Como a razão é o meio de sobrevivência fundamental de nossa espécie, deve ser o nosso valor primário, e como seu uso é volicional, a racionalidade é nossa virtude primária. Quando essa virtude primária é entendida em conjunto com outras identificações da realidade e da natureza humana, as virtudes da independência, integridade, honestidade, justiça, produtividade e orgulho podem ser identificadas, e o início do uso da força pode ser identificado como um vício especialmente pernicioso.[3]

Quando as virtudes objetivistas coincidem com as virtudes judaico-cristãs, o Objetivismo provê uma razão não sacrificial para segui-las; quando divergem, o Objetivismo expõe os motivos da divergência. Não se espera que os objetivistas sacrifiquem suas vidas por um dever calcado em mandamentos aceitos por fé, ou que sacrifiquem seu autointeresse como um dever para com os outros ou a sociedade. Espera-se que eles julguem o que está em seu interesse dentro do contexto de longo prazo de “todos aspectos de sua vida”, tal como requerida pela natureza de nossa existência. Por exemplo, espera-se que percebam que renunciar à gratificação imediata não é um sacrifício, que respeitar os direitos de terceiros não é ser altruísta, todas essas aplicações baseadas em princípios do autointeresse (egoísmo) racional.

Como insinuei acima, suspeito que a utilidade do sofrimento como padrão de valor esteja em sua conexão com a vida como padrão de valor. No nível das sensações, o sofrimento é uma dor, que é a forma que o seu corpo tem de dizer o que evitar pelo bem de sua vida. Então se você é anti-dor, você é pró-vida – a não ser que o seu corpo esteja funcionando incorretamente, ou que você saiba algo que ele não sabe. Por vezes, é preciso superar o dispositivo de evitar a dor, como a dor de uma injeção ou amputação. Também no nível emocional, o papel do sofrimento é avisar que você está agindo contra a sua vida – desde que suas emoções tenham sido corretamente calibradas. Mas é aí que está o x da questão! As suas emoções derivam dos seus valores; adquiri-los lhe dá uma emoção positiva; perdê-los, uma emoção negativa; então, se você deriva seus valores de uma emoção, você está caminhando em círculos.

Se uma virtude é baseada em uma ação pró-vida, digamos, em ser produtivo, e você age de forma imoral, sendo preguiçoso, por exemplo, sofrerá com uma emoção negativa, como vergonha ou ansiedade. Isso é tanto verdade se suas emoções estão funcionando de forma natural (como acontece automaticamente com animais e crianças), i.e. promovendo ações pró-vida. Mas se estiverem funcionando de forma incorreta, como no caso de uma ergofobia (fobia de trabalho), esse defeito pode ser identificado e superado, ou mesmo recalibrado com a ajuda de psicoterapia. Por outro lado, se seu valor moral se baseia em um padrão anti-sofrimento, você não questiona se sua emoção de sofrimento está funcionando corretamente ou não, porque o sofrimento em si é seu padrão. Digamos que você sofre de ergofobia; a “solução” óbvia é parar de trabalhar. Você pode perceber que a “solução” tem efeitos ruins na sua vida, mas se você, por causa disso, reverter a sua “solução”, você mudou de um padrão anti-sofrimento para um padrão pró-vida.

A vida pode envolver sofrimento, mas agir virtuosamente, de acordo com uma moralidade pró-vida, minimiza esse sofrimento, porque o pró-vida é o anti-sofrimento. A vida também pode envolver felicidade, e como o pró-vida é o pró-felicidade, agir virtuosamente a maximiza. Mas quando falo em felicidade, não quero dizer hedonismo. Como Ayn Rand coloca: “A felicidade não é alcançada sob o comando de caprichos emocionais. A felicidade não é a satisfação de quaisquer desejos irracionais que você possa cegamente tentar satisfazer. A felicidade é um estado de alegria não contraditória – uma alegria sem punições ou culpa, uma alegria que não entra em conflito com nenhum dos seus valores e não trabalha pela sua destruição, não a alegria de escapar da sua própria mente, mas de utilizá-la em todo o seu potencial; não a alegria de criar uma realidade falsa, mas de atingir valores que são reais; não a alegria de um bêbado, mas a de um produtor. A felicidade só é possível para um homem racional, o homem que não deseja nada que não objetivos racionais, que não busca nada que não valores racionais e que não se alegra com nada que não ações racionais”.[4]

A busca pela felicidade, tal como consagrada enquanto direito inalienável na Declaração de Independência Americana, é uma perspectiva distintamente iluminista, mas ela tem sua raiz no conceito de eudaemonia da Grécia antiga, o que a torna uma perspectiva distintamente ocidental. A vida como sofrimento é uma perspectiva distintamente oriental. “As Quatro Nobres Verdades” sobre a natureza do sofrimento constituem a pedra angular do Budismo. Mas nos dois milênios e meio de seu reinado, o que essa religião fez para melhorar a vida dos seres humanos aqui na Terra? O objetivo do Budismo não é melhorar o seu aqui-e-agora, mas fazer com que você aceite o seu sofrimento, que você merece por seus pecados em vidas passadas, e dos quais não há escapatória, nem mesmo na morte. Na filosofia ocidental, esse “pessimismo metafísico” ressurge sempre que os filósofos se afastam da realidade cognoscível, em prol de uma dimensão sobrenatural, e.g. Santo Augustinho (que abriu as portas para a Idade das Trevas), Arthur Schopenhauer e os existencialistas (que abriram as portas para o niilismo do pós-modernismo).

Os filósofos que abriram as portas para o conhecimento e a vontade de tornar esse mundo melhor para o ser humano foram os que se voltaram para esta realidade, para identificar como podemos conhecê-la, e como podemos transformar esse conhecimento em poder, e transformar esse poder em valores pró-vida-humana, e.g. Aristóteles, São Tomás de Aquino (que abriu as portas do Renascimento), Francis Bacon, John Locke, Isaac Newton, e os “otimistas metafísicos” do Iluminismo. Qualquer que seja o legado de premissas pró-vida-humana da herança judaico-cristã, foi o renascimento da influência racional grega que deu origem ao Iluminismo. E foi a promoção, por parte do Iluminismo, da razão e dos direitos que deram origem à ciência moderna, à indústria, à liberdade política, ao capitalismo – e aos produtos e serviços que impediram os humanos de morrer como moscas, possibilitando que a população mundial crescesse de 1 para 7 bilhões, aumentando a expectativa de vida de 30 para 70 anos, reduzindo a prevalência do sofrimento de forma tão intensa que a ideia de uma pessoa viver até os 100 anos e morrer pacificamente em sua cama, sem ter vivido uma dor aguda ou crônica, já não é mais inconcebível.

A filosofia de Ayn Rand pode ser colocada no lado do “otimismo metafísico”, mas ela preferiu chamar esse otimismo de “premissa do universo benevolente”, e ela provavelmente chamaria a sua visão de “premissa do universo malevolente” (que é semelhante à sua identificação de “hobbesiano por temperamento”). Por “benevolente”, Rand não quis dizer que o universo foi planejado para nos ajudar ou para ser gentil conosco, mas que ele não joga dados, de forma que podemos conhecer suas regras e, obedecendo-as, comandá-lo de forma a melhorar nossas vidas. Pelo que entendi, esse é o objetivo de suas 12 regras, não é? A sua primeira regra é que devemos ficar em pé com as costas eretas e os ombros para trás, aceitar responsabilidade e se esforçar. Isso é, como a maioria das suas regras, uma ação pró-vida. O propósito último de uma ação como essa é a manutenção de sua vida (e da vida de seus entes queridos e, de forma secundária, de todas as pessoas). Mas esse benefício último pode ser sentido ao longo da vida como o alívio do sofrimento – ou como felicidade. Então a busca da felicidade não é apenas um direito político, mas algo moralmente correto. Quando o assunto é a melhor estratégia terapêutica para pessoas em um estado psicológico perturbado, curvo-me à sua expertise. Mas quando o assunto é uma estratégia moral para toda vida, a maximização da recompensa da felicidade deve ser o outro lado da moeda da minimização do sofrimento. E, eu acredito, o lado mais glorioso.

Então…

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Publicado originalmente em Objectivism Ayn Rand.

Traduzido por Bill Pedroso.

Revisado por Matheus Pacini.

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[1] PETERSON, Jordan B. 12 Rules for Life: An Antidote to Chaos; Penguin, Random House Canada, 2018, p. 161.

[2] Peterson, 12 Rules, pp.197,198

[3] RAND, Ayn. “The Objectivist Ethics,” The Virtue of Selfishness; A New Concept of Egoism, New York, The New American Library, 1964, pp. 34.

PEIKOFF, Leonard. Objectivism, the Philosophy of Ayn Rand. Dutton, Penguin Group, New York, 1991, pp. 206–324.

[4] RAND, Ayn. Atlas Shrugged, Random House, New York, 1957 p. 1022.

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