Um dos anticonceitos mais destrutivos da história da filosofia moral é o termo “dever”.
Um anticonceito é um termo artificial, desnecessário e racionalmente inútil, projetado para substituir e destruir algum conceito legitimo. O termo “dever” não apenas destrói simples conceitos; ele é um assassino metafisico e psicológico, pois invalida todos os elementos essenciais de uma visão racional da vida, tornando-os inaplicáveis às ações do homem.
O conceito legítimo com significado mais próximo a “dever” é “obrigação”. Os dois são normalmente usados como sinônimos, mas existe uma profunda diferença entre eles que as pessoas sentem, mas raramente sabem identificar.
The Random House Dictionary of the English Language (1966) assim descreve a diferença: “dever, obrigação refere-se ao que se sente obrigado a fazer. Dever é o que se realiza, ou que se evita realizar, em cumprimento de ditames permanentes da consciência, da piedade, do direito ou das leis: dever para com o país, para com a verdade, para com a educação adequada dos filhos. Obrigação é o que se é obrigado a fazer para cumprir os ditames da tradição, dos costumes ou da decência, sob a forma de cumprimento de uma promessa pessoal ou acordo determinado e específico: obrigações financeiras ou sociais.”
Do mesmo dicionário: “Obediente Sin. 1. respeitoso, dócil, submisso…
Um dicionário mais velho é um pouco mais aberto sobre o assunto: ‘Dever – 1. conduta devida aos pais ou superiores, como mostrado na obediência ou submissão…”Obediente -1. Pronto para cumprir tarefas exigidas por aquele que tem o direito de reclamar submissão, obediência ou deferência…” (Webster Internacional Dictionary, 1944).
O significado do termo “dever” é: a necessidade moral de executar determinadas ações por nenhuma outra razão que a obediência a uma autoridade superior, sem levar em conta qualquer objetivo, motivação, desejo ou interesse pessoal.
É evidente que esse anticonceito é um produto do misticismo, e não uma abstração derivada da realidade. Em uma teoria mística da ética, “dever” representa a noção de que o homem deve obedecer aos ditames de uma autoridade sobrenatural. Mesmo que o anticonceito tenha sido secularizado, e a autoridade da vontade de Deus tenha sido atribuída a entidades terrenas, como os pais, o país, o Estado, a humanidade, etc, sua suposta supremacia ainda repousa em nada além de um decreto místico. Quem diabos poderia ter o direito de reivindicar esse tipo de submissão ou obediência? Esta é a única forma adequada para esta questão, pois nada nem ninguém pode ter tal direito ou reivindicação nesta Terra.
O grande representante do “dever” é Immanuel Kant; ele foi muito mais longe do que os outros teóricos, que parecem inocentemente benevolentes em comparação. “Dever”, ele sustenta, é o único padrão de virtude; mas a virtude não é a sua própria recompensa: se uma recompensa estiver envolvida, já não se trata mais de virtude. A única motivação moral, diz ele, é a devoção ao dever pelo dever; apenas uma ação motivada exclusivamente por essa devoção é uma ação moral (ou seja, uma ação realizada sem qualquer preocupação com a “inclinação” [desejo] ou autointeresse).
“Pelo contrário, conservar cada qual a sua vida é um dever, e é além disso uma coisa para que toda a gente tem inclinação imediata. Mas por isso mesmo é que o cuidado, por vezes ansioso, que a maioria dos homens lhe dedicam não tem nenhum valor intrínseco e a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral. Os homens conservam a sua vida conforme // ao dever, sem dúvida, mas não por dever. Em contraposição, quando as contrariedades e o desgosto sem esperança roubaram totalmente o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, mais enfadado do que desalentado ou abatido, deseja a morte, e conserva contudo a vida sem a amar, não por inclinação ou medo, mas por dever, então a sua máxima tem um conteúdo moral.[1]
E, também:
E sem dúvida também assim que se devem entender os passos da Escritura em que se ordena que amemos o próximo, mesmo o nosso inimigo. Pois que o amor enquanto inclinação não pode ser ordenado, mas o bem-fazer por dever, mesmo que a isso não sejamos levados por nenhuma inclinação e até se oponha a ele uma aversão natural e invencível, é amor prático e não patológico, que reside na vontade e não na tendência da sensibilidade, em princípios de ação e não em compaixão lânguida. E só esse amor é que pode ser ordenado.[2]
“[Assim, a primeira proposição da moralidade é que para ter valor moral uma ação deve ser feita a partir do dever.]” (Ibid., pp. 18-19; Frase entre parênteses é de Wolff)
Se fossemos aceitá-lo, o anteconceito “dever” destrói o conceito de realidade: um poder sobrenatural inexplicável tem precedência sobre os fatos e determina as ações do indivíduo, independentemente do contexto ou consequências.
“Dever” destrói a razão: ele substitui o conhecimento e o julgamento, tornando o processo de julgamento e raciocínio irrelevante para as suas ações.
“Dever” destrói valores: ele exige a traição ou sacrifício dos seus valores mais elevados em prol de um comando inexplicável – e transforma os valores numa ameaça ao valor moral, uma vez que a experiência do prazer ou desejo põe em dúvida a pureza das motivações de cada um.
“Dever” destrói o amor: quem poderia querer ser amado não por “afeição”, mas por “dever”?
“Dever” destrói a autoestima, afinal, não existe um “eu” a ser estimado.
Se aceitarmos esse absurdo em nome da moralidade, a ironia é que o “dever” destrói a moralidade. A teoria deontológica da ética (centrada no dever) confina os princípios morais a uma lista prescrita de “deveres”, deixa o resto da vida do homem sem qualquer orientação moral e exclui a moralidade de qualquer aplicação real às preocupações da existência do homem. Pela perspectiva deontológica, assuntos como trabalho, carreira, ambição, amor, amizade, prazer, felicidade e valores (na medida em que não são perseguido como deveres) são considerados como amorais, ou seja, fora da província da moralidade. Se é assim, então, por qual padrão um homem deve fazer suas escolhas diárias ou traçar o curso de sua vida?
Em uma teoria deontológica, todos os desejos pessoais são banidos do domínio da moralidade; um desejo pessoal não tem significado moral, seja ele um desejo de criar ou de matar. Por exemplo, se um homem não está sustentando sua vida por meio de deveres, essa moralidade não faz qualquer distinção entre o sustento via trabalho honesto ou roubo. Se um homem optar por ser honesto, não merecerá nenhum crédito moral por isso; Kant diria que tal honestidade é “louvável” mas sem “importância moral”. Só um repressor vicioso, que sente um profundo desejo de mentir, enganar e roubar, mas que obriga a si mesmo a agir honestamente em prol do “dever”, receberia o reconhecimento do valor moral de Kant e seus seguidores.
Este tipo de teoria é que concede à moralidade uma má reputação.
O medo e/ou o ressentimento generalizado da moralidade – o sentimento de que a moralidade é um inimigo, um reino bolorento de tédio e sofrimento sem sentido – não são produto dos místicos, dos ascetas ou dos códigos cristãos como tais, mas sim da veneração ao mais horrendo monumento ao ódio pela vida, pelo homem e pela razão: a alma de Immanuel Kant.
(As teorias de Kant tem, é claro, misticismo da ordem mais baixa [da ordem “numenal”], embora ele as tenha apresentado em nome da razão. O nível primitivo de desenvolvimento intelectual dos homens é melhor demonstrado pelo fato de que ele conseguiu escapar com essa.)
Se a palavra “gênio” denota ter habilidades extraordinárias, então Kant pode ser chamado de gênio na sua capacidade de identificar, manipular e perpetuar os medos, as irracionalidades e, sobretudo, a ignorância do ser humano. Sua influência se baseia não em filosofia, mas em fatores psicológicos. Seu ponto de vista sobre a moralidade é propagado por homens que jamais ouviram falar dele – ele apenas lhes concedeu um status acadêmico formal. O sentido kantiano de “dever” é incutido pelos pais quando declaram que uma criança deve fazer alguma coisa, porque sim. Uma criança criada com agressões sem causa, arbitrariamente, recebendo explicações e “obrigações” inexplicáveis perde (ou nunca adquire) a capacidade de compreender a distinção entre uma necessidade real e os caprichos humanos – e passa a vida de forma abjeta, obedecendo cegamente à segunda, enquanto desafia a primeira. No sentido pleno do termo, ela cresce sem uma compreensão clara da realidade.
Como adulto, um homem pode rejeitar todas as formas de misticismo, mas seus resquícios psicoepistemológicos kantianos resistem (a menos que ele os corrija). Ele continuará a considerar qualquer tarefa difícil ou desagradável como uma imposição inexplicável para ele, como um dever que ele realiza, mas se ressente; ele acredita que é seu “dever’ ganhar a vida, que é seu “dever” ser moral e, em casos extremos, que é seu “dever ” ser racional.
Na realidade – e na ética objetivista – não há tal coisa como “dever”. Existe apenas uma clara escolha e o pleno reconhecimento obscurecido pela noção de “dever”: a Lei da Causalidade. A abordagem adequada para a ética, o ponto de partida de uma metafísica limpa, não contaminada por qualquer toque de kantianismo, pode ser melhor ilustrada pela seguinte história. Em resposta a um homem que dizia que ela tinha que fazer uma coisa ou outra, uma idosa negra disse: “amigo, não há nada que eu precise fazer a não ser morrer”.
Vida ou morte é a única alternativa fundamental dos homens. Viver é seu ato básico de escolha. Se ele escolhe viver, uma ética racional lhe indicará os princípios de ação para implementar sua escolha. Se ele não escolhe viver, a natureza seguirá seu curso.
A realidade confronta o homem com um grande número de “obrigações”, mas todas elas são condicionais; a fórmula geral da necessidade realista é: “Você deve, se -” e se esta for a escolha do homem: “- se você quiser atingir uma determinada meta”. Você deve comer, se quiser sobreviver. Você deve trabalhar, se quiser comer. Você deve pensar, se quiser trabalhar. Você deve observar a realidade, se quiser pensar, se quiser saber o que fazer, se quiser saber que objetivos pode escolher, se quiser saber como alcançá-los.
A fim de fazer as escolhas necessárias para alcançar seus objetivos, você precisa automatizar sua mente ao princípio que o anticonceito “dever” já quase apagou de sua mente: o princípio da causalidade – especificamente, a causalidade final de Aristóteles (que, na verdade, só se aplica a seres conscientes), isto é, o processo pelo qual um fim determina os meios, ou seja, o processo de escolher um objetivo e tomar decisões necessárias para alcançá-lo.
Em uma ética racional, é a causalidade – e não o “dever” – que serve como princípio norteador da análise, avaliação e seleção de ações de uma pessoa, em especial, as necessárias para alcançar uma meta de longo prazo. Seguindo este princípio, um homem não age sem conhecer o propósito de sua ação. Na escolha de seu objetivo, ele considera os meios necessários para alcançá-lo, pesa o valor da meta frente às dificuldades do meio e do contexto hierárquico de todos os outros valores e objetivos.
Ele não exige o impossível de si mesmo, e não aceita facilmente que as coisas são impossíveis. Ele nunca se perde no contexto do conhecimento disponível para ele, e nunca evade da realidade, percebendo plenamente que seu objetivo não será concedido a ele por qualquer poder que não seja a sua própria ação, e se ele evadir, não seria alguma autoridade kantiana que ele estaria traindo, mas a si próprio.
Se ele fica desanimado por alguma dificuldade, ele se lembra de sua meta, sabendo que ele é totalmente livre para reconsiderar, perguntando-se: “será que isso vale a pena?” – e que nenhuma punição estará envolvida, exceto a renúncia ao valor que ele deseja. (Poucos desistem nesses casos, a menos que seja racionalmente necessário.)
Em circunstâncias semelhantes, um kantiano não se concentra na sua meta, mas no seu próprio caráter moral. Sua reação automática é culpa e medo – medo de falhar no seu “dever”, medo de alguma fraqueza que o “dever” proíba, medo de se provar moralmente “indigno”. O valor da sua meta desaparece da sua mente, submergindo em uma enchente de autodúvida. Ele pode caminhar dessa forma triste por um tempo, mas não por muito tempo. Um kantiano raramente realiza ou se compromete com metas importantes: elas são uma ameaça a sua autoestima.
Esta é uma das diferenças psicológicas cruciais entre o princípio de “dever” e o princípio final da causalidade. Um discípulo da causalidade olha para fora, e é orientado por valores e para a ação, o que significa: ele é orientado pela realidade. Um discípulo do “dever” olha para dentro, ele é egocêntrico, não no sentido racional-existencial, mas no sentido psicopatológico do termo, isto é, preocupado com um eu extirpado da realidade; “egocêntrico” neste contexto significa: “centrado na autodúvida”.
Há muitas outras diferenças entre os dois princípios. Um discípulo da causalidade é profundamente dedicado aos seus valores, sabendo que ele é capaz de alcançá-los. Ele é incapaz de desejar contradições, de confiar em um “de alguma forma”, de se rebelar contra a realidade. Ele sabe que, em todos os casos, não seria uma autoridade kantiana que ele estaria desafiando ou ferindo, mas a ele mesmo – e que a pena não seria uma marca mística de “imoralidade”, mas a frustração dos seus próprios desejos, bem como da destruição de seus próprios valores.
Um kantiano, ou mesmo um semi-kantiano, não pode permitir-se valorizar qualquer coisa completamente, uma vez que um inexplicável “dever” pode exigir o sacrifício de seus valores e, a qualquer momento, pode acabar com qualquer plano de longo prazo ou esforço que ele poderia ter empreendido para alcançá-los. Na ausência de objetivos pessoais, qualquer tarefa, como ganhar a vida, por exemplo, torna-se enfadonha e insensata, mas ele considera como um “dever” – e ele relaciona observância com os requisitos da realidade como um “dever”. Então, em rebeldia cega contra o “dever”, é contra a realidade que ele começa a ressentir-se e, finalmente, decide fugir, em busca de algum reino onde os desejos são concedidos automaticamente, e os fins são realizados sem meios. Este é o processo subconsciente pelo qual Kant atrai recrutas para o seu misticismo.
A noção de “dever” é intrinsecamente anti-causal. Em sua origem, um “dever” desafia o princípio da causalidade eficiente – uma vez que é imotivado (ou sobrenatural); em seus efeitos, ele desafia o princípio da causalidade-final, uma vez que deve ser realizada independente das consequências. Este é o tipo de irresponsabilidade que um discípulo da causalidade não permitiria a si mesmo. Ele não age sem considerar – e aceitar – todas as consequências previsíveis de suas ações. Sabendo da eficácia causal de suas ações, vendo-se como um agente causal (e nunca procurando se safar com contradições), ele desenvolve uma virtude morta pelo Kantianismo: um senso de responsabilidade.
Ao não aceitar “deveres” místicos ou obrigações não escolhidas, ele é o homem que honra escrupulosamente as obrigações que ele escolhe. A obrigação de cumprir as promessas de alguém é um dos aspectos mais importantes nas relações humanas adequadas, o elemento que leva à confiança mútua e torna a cooperação possível entre os homens. No entanto, observamos a influência perniciosa de Kant: na descrição do dicionário citado anteriormente, a obrigação pessoal é jogada quase como uma nota de desprezo; a fronte do “dever” é definida como “as ordens permanentes da consciência, piedade, direitos, ou leis; a fonte de “obrigação” é “os ditames de uso, costumes ou de propriedade” – então, com um adendo: “e realiza muitas vezes de forma particular a promessa ou acordo especifico.” Uma promessa pessoal ou acordo só é valido como obrigação vinculativa, sem a qual nenhum dos outros pode fazer ou suportar.
A aceitação da plena responsabilidade por suas próprias escolhas e ações (e suas consequências) é de uma disciplina moral tão exigente que muitos homens procuram escapar pelo que eles acreditam ser a mais fácil, automática, irrefletida segurança de uma moralidade de “dever”. Eles aprendem a lição, muitas vezes, quando já é tarde demais.
O discípulo da causalidade enfrenta a vida sem correntes inexplicáveis, obrigações não escolhidas, exigências impossíveis ou ameaças sobrenaturais. Sua atitude metafísica é orientada por um princípio moral que pode ser resumido em um velho provérbio espanhol: “Deus disse: ‘faça o que quiser e pague por isso.” Mas conhecer os próprios desejos, seus significados e seus custos exige a mais elevada virtude humana: a racionalidade.
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Trecho retirado do capítulo 10 da obra Philosophy: Who Needs It.
Traduzido por Matheus Pacini.
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[1] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Disponível online em: https://ufpr.cleveron.com.br/arquivos/ET_434/kant_metafisica_costumes.pdf
[2] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Disponível online em: https://ufpr.cleveron.com.br/arquivos/ET_434/kant_metafisica_costumes.pdf