O que Ayn Rand tem a oferecer a nossa era? A autora americana nascida na Rússia ganhou destaque como romancista e filósofa em meados do século 20 e atraiu um grande público na direita americana com sua crítica afiada ao comunismo. A alternativa completa que ela apresentou em sua filosofia e ficção defendia o individualismo contra o coletivismo – o conflito ideológico fundamental de sua era. É por isso que, apesar de seu ateísmo, ela influenciou significativamente a direita americana e ainda é considerada indispensável mesmo por aqueles que discordavam dela em muitos pontos.
As questões atuais não são exatamente as mesmas, nem os alinhamentos ideológicos. No entanto, as pessoas ainda buscam as ideias de Ayn Rand e tentam entender sua influência, mesmo que, às vezes, sem sucesso. Um artigo recente no Quillette atribui sua influência e relevância principalmente ao seu impacto na cultura pop e ao magnetismo de seus olhos escuros e famosamente penetrantes. Mas há muito mais que isso e, para entendê-la, precisamos mergulhar profundamente em suas ideias.
A influência de Ayn Rand estava intimamente ligada à sua análise dos grandes eventos de sua época. De forma incomum para um filósofo, ela também apresentava suas ideias em colunas de opinião sobre as notícias políticas e culturais do dia. Ofereceu novas reflexões sobre epistemologia e formação de conceitos em um artigo na Convenção Nacional Republicana de 1964. Suas ideias sobre a relação entre razão e emoção foram apresentadas em um discurso sobre o contraste entre os dois grandes eventos culturais de 1969: Woodstock e a chegada do homem à Lua.
Porém, como ela estava operando num nível filosófico mais profundo, sua mensagem transcende o contexto particular em que ela escreveu. Em sua introdução à edição do 25º aniversário de A nascente, ela citou Victor Hugo: “Se um escritor escrevesse apenas para sua época, eu teria que quebrar minha caneta e jogá-la fora”.
Sua filosofia é particularmente relevante para a batalha atual da guerra cultural. E me refiro à batalha atual, porque as raízes de nossa guerra cultural são muito mais antigas do que imaginamos. Não há muito mais o que dizer sobre a conformidade ideológica da era das mídias sociais que Rand não tenha exposto em A nascente, em que ela dissecou a conformidade ideológica dos intelectuais modernistas durante a Década Vermelha na década de 1930.
O tema de A nascente, Rand escreveu mais tarde, era “individualismo versus coletivismo, não na política, mas na alma do homem”. O coletivismo na alma é personificado em Peter Keating, o conformista supremo cujo único objetivo na vida é identificar o ambiente, sinalizar sua virtude e ser o que os outros esperam que ele seja. Mas essa crença é endossada e reverberada pelo principal vilão do romance, Ellsworth Toohey, um personagem essencial para entender um perfil importante em todas as épocas: o intelectual totalitário.
De certa forma, personagens como Toohey são uma resposta à suposição jeffersoniana de que a difusão do conhecimento e educação garantiria o triunfo da liberdade. No início do século 1920, a tirania não era mais defendida por monarcas e seus parasitas; tinha se tornado um credo dos intelectuais. Este é um enigma que desafiou os melhores autores da época. (Veja, por exemplo, o personagem O’Brien de 1984.)
Rand usa Toohey para mostrar como a psicologia da conformidade recebeu voz, respaldo e encorajamento pela filosofia coletivista da época. Rand faz de Toohey um espelho caricato dessa conformidade ideológica, evidenciando o vazio e esterilidade essenciais desta. Em um momento de confissão, eis como ele descreve o mundo ideal do coletivista:
Um mundo em que o pensamento de cada homem não será o seu próprio, mas uma tentativa de adivinhar o pensamento no cérebro de seu vizinho, que, por sua vez, não terá nenhum pensamento próprio, mas uma tentativa de adivinhar o pensamento do próximo vizinho, que não terá nenhum pensamento… e assim por diante, Peter, no mundo todo. Uma vez que todos devem concordar com todos. Um mundo em que nenhum homem terá desejo próprio, mas direcionará todos os seus esforços para satisfazer os de seu vizinho, que, por sua vez, não terá nenhum desejo, exceto o de satisfazer os do próximo vizinho, que não terá nenhum desejo… pelo mundo afora, Peter. Uma vez que todos devem servir a todos. Um mundo em que o homem não trabalhará por um incentivo tão inocente quanto o dinheiro, mas por aquele monstro sem cabeça: o prestígio. A aprovação de seus semelhantes, a boa opinião deles, a opinião de homens que serão proibidos de ter qualquer opinião. Um polvo, só tentáculos e nenhum cérebro.
Isso soa como uma terça-feira comum no Twitter. Toohey também sabe “capturar audiências”: “Não terei nenhum outro propósito a não ser mantê-los contentes. Mentir, adulá-los, elogiá-los, inflar sua vaidade”. Em seu futuro coletivista, o líder é o maior seguidor de todos.
Tudo isso contrasta com o verdadeiro propósito do romance, que é nos mostrar o homem totalmente independente, alguém sem coletivismo em sua alma: o jovem arquiteto Howard Roark. Explicando por que recusa pagamento e crédito por um projeto particular, Roark diz: “A única coisa que importa, meu objetivo, minha recompensa, meu início e meu fim, é o próprio trabalho. Meu trabalho feito do meu jeito.”
De importância central para o romance A nascente é a distinção entre os conceitos “primeira mão” e “segunda mão” – respectivamente, a pessoa que adquire ideias e valores em primeira mão por meio do contato com a realidade, e a pessoa que lida com o mundo adotando as opiniões e gostos dos outros. Muito antes do Instagram, Roark descreve a segunda como o tipo de pessoa que “não importa o que seja, nunca conseguem dizer: “ele não pode dizer, com relação a uma única coisa: ‘Foi isso o que eu quis porque fui eu quem quis, não porque fez com que os meus vizinhos olhassem boquiabertos para mim.’”
O objetivo de Rand era nos mostrar como é ver o mundo puramente através dos próprios olhos.
Ayn Rand é conhecida por sua política, mas como ela escreveu: “Não sou primeiramente uma defensora do capitalismo, mas do egoísmo; e não sou primeiramente uma defensora do egoísmo, mas da razão.” O tema mais profundo de sua obra é a necessidade de ver o mundo em primeira mão e seguir a razão irrestrita onde quer que o leve em busca da verdade. “Liberdade”, escreveu ela, “é o requisito fundamental da mente do homem”.
A necessidade básica do criador é a independência. A mente racional não pode trabalhar sob nenhuma forma de compulsão. Não pode ser podada, sacrificada ou subordinada a qualquer consideração. Exige total independência na função e no motivo.
As doutrinas “progressistas” contemporâneas dominantes, em contraste, são a sistematização da “segunda mão”. Por exemplo, a “teoria crítica” nega, por princípio, nossa capacidade de ver o mundo em “primeira mão”, de ver as coisas como realmente são e, em vez disso, insiste que tudo é filtrado por “construções/constructos sociais”. Por essa perspectiva, não temos escolha a não ser nos tornarmos um Peter Keating, vulneráveis à manipulação de pessoas como Ellsworth Toohey. A variação atual dessa perspectiva pode ser relativamente nova, mas tem raízes filosóficas profundas para as quais Rand forneceu respostas filosóficas detalhadas, inclusive em trabalhos técnicos de filosofia defendendo nossa capacidade de conhecer a realidade em primeira mão num sentido mais profundo.
Mas ela teve maior influência como defensora do pensamento como um eto. Esta citação de A revolta de Atlas, em particular, fala à nossa época: “Não há pensamentos ruins, exceto um: recusar-se a pensar”. Não foi um mero floreio retórico. Ela realmente considerava a recusa de pensar não apenas como um mal, mas como a essência do mal. Em sua moralidade, a escolha mais básica é a escolha de pensar:
A qualquer momento, em qualquer etapa da vida, vocês são livres para pensar ou se esquivar do esforço de pensar. Porém não são livres para escapar da sua natureza, do fato de que a razão é o seu meio de sobrevivência – de modo que para vocês, como seres humanos, a questão do ‘ser ou não ser’ é a questão de ‘pensar ou não pensar’.
Posteriormente, ela escreveu:
Nada é dado ao homem na Terra, exceto um potencial e o material para realizá-lo. O potencial é uma máquina superlativa: sua consciência; mas é uma máquina sem vela de ignição, uma máquina da qual sua própria vontade tem de ser a vela de ignição; o auto-arranque, o motorista; ele tem que descobrir como utilizá-la e ele tem que mantê-la em constante ação, O material é o todo do universo; sem limites postos no conhecimento que o homem pode adquirir nem para o prazer da vida que ele pode alcançar. Mas tudo do que o homem precisa ou que deseja tem que ser aprendido, descoberto e produzido por ele — por sua própria escolha, por seu próprio esforço, por sua própria mente.
“Estar em foco” é o maior elogio na filosofia de Rand, e a pior coisa que se pode estar é “fora de foco”. Aqui, “foco” se refere a “uma consciência plena, ativa e propositadamente direcionada da realidade”, pensar como uma escolha moral. É a resposta dela para um dos enigmas mais antigos da filosofia: como alguém pode conscientemente fazer o mal? Sua resposta é que ser mau é estar deliberadamente fora de foco. Faz-se o mal porque não se sabe o que se está fazendo – mas a falta de conhecimento não é mera ignorância. É a escolha do não saber, de não querer o conhecimento, recusar-se a examinar o significado e implicações de suas ações.
As doutrinas agora amplamente ridicularizadas como woke (“despertar”) constituem um sistema para esse tipo de evasão. Oferece um programa de autocensura que consiste em fechar-se à expressão de quaisquer ideias que possam ser rotuladas como erradas. Tweets potencialmente ofensivos, livros, especiais de comédia, estátuas – todos eles têm de ser purgados em um ritual de purificação. Paralisados pelo medo de pensamentos maus, os adeptos abraçam a recusa de pensar.
But notice that the fully independent man’s individualism is expressed, not just in his thoughts, but in his work. In The Fountainhead, Howard Roark explains the “meaning of life”:
Mas observe que o individualismo do homem plenamente independente é expresso, não apenas em seus pensamentos, mas em seu trabalho. Em A nascente, Howard Roark explica o “sentido da vida”:
Roark levantou-se, estendeu o braço, arrancou um galho grosso de uma árvore, segurou-o em suas mãos, com um punho fechado em cada ponta. Então, com seus pulsos e nós dos dedos tensos contra a resistência, ele envergou o galho lentamente, formando um arco.
– Agora eu posso fazer o que quiser com ele: um arco, uma lança, uma bengala, uma balaustrada. Esse é o significado da vida.
– A sua força?
– O seu trabalho. – Ele atirou o galho para o lado. – O material que a Terra lhe oferece e o que você faz com ele…
Este tema é desenvolvido de forma mais completa em A revolta de Atlas. O cenário dos romances de Rand costumavam seguir suas próprias experiências, mas com um atraso de alguns anos. Seu primeiro romance, We the Living, tratava de estudantes independentes lutando para sobreviver nos primeiros anos da ditadura soviética, assim como ela tinha feito anos antes. Em A nascente, seus heróis eram principalmente artistas e intelectuais no início de suas carreiras, lutando para ter sucesso com suas visões criativas. Em A revolta de Atlas, escrito após ela se tornar uma autora best-seller que se misturou com magnatas dos negócios, seus heróis são empresários que também estão perseguindo suas visões criativas, mas desta vez construindo linhas ferroviárias e inventando novas ligas de metal.
A filosofia moral de Rand é mais conhecida por sua defesa do autointeresse. Mas seu verdadeiro cerne é sua defesa de uma virtude central que dá sentido ao eu: a produtividade, adotar o trabalho e o espírito do trabalho. Por trás disso está uma ética racional e secular em que a moralidade é baseada nos requisitos da vida humana, sendo o central o trabalho produtivo. Ela é, Rand escreve, o reconhecimento “de que o seu trabalho é o processo de alcançar seus valores, e perder sua ambição por valores é perder sua ambição de viver – que seu corpo é um carro, mas sua mente é o condutor, e você deve dirigir até onde sua mente o levar, com a realização como o objetivo de sua jornada.”
Alguns anos atrás, os sociólogos Bradley Campbell e Jason Manning publicaram um influente estudo no qual descreveram três tipos de culturas, cada qual definida pelo que confere status às pessoas e dá significado e valor às suas vidas. Uma cultura de honra é sintetizada pela prática de duelo, usando a violência para responder a um insulto percebido. Em uma cultura de dignidade – pense em Frederick Douglass ou Martin Luther King Jr. – o senso de valor é principalmente interno e pode-se suportar pacientemente a injustiça sem diminuí-lo. Campbell e Manning chamam nossa cultura atual de vitimização, na qual a fonte de status e significado é a alegação de opressão, sofrimento e “marginalização”. Daí a busca obsessiva por “microagressões”, por mais triviais que sejam.
Isso descreve a esquerda ativista, mas também descreve cada vez mais os ressentidos conservadores americanos que adotaram sua própria obsessão por vitimização e martírio — uma fixação insegura no medo de que, de alguma forma, em algum lugar, as “elites” os estejam desprezando.
A resposta de Rand está em sua defesa do trabalho produtivo. No lugar de uma cultura de honra, dignidade ou vitimização, ela ofereceu uma cultura de realização, em que trabalho, inovação e produtividade dão seu significado e valor à vida.
Em meu próprio livro sobre o romance A revolta de Atlas comparei a abordagem de Ayn Rand à lenda grega antiga da disputa entre Homero e Hesíodo, os dois maiores poetas do início do mundo clássico. Diz a lenda que eles se conheceram e testaram seus versos uns contra os outros em uma espécie de luta de poesia antiga. Homero derrotou Hesíodo, mas o juiz deu o prêmio a Hesíodo, pois “aquele que convocou os homens a seguir a paz e a agricultura deveria ter o prêmio em vez de outro que insistiu na guerra e na matança”. Isso resume um problema básico que ecoou por milênios. Em tempos modernos, os defensores do Iluminismo lamentaram que o sturm und drang (Tormenta e Ímpeto) dos românticos irracionais e suas perigosas obsessões por sangue e sordidez eram geralmente apresentados de uma forma mais dramática e emocionante do que os ideais de paz e descoberta científica do Iluminismo.
Ayn Rand buscou corrigir esse defeito, emprestando toda a cor e drama do romantismo literário aos valores iluministas encarnados por heróis que são arquitetos, inventores e filósofos. Ela escreveu o tipo de romance em que dois dos personagens principais se unem por causa de seu esforço heroico para conter um vazamento em uma fornalha de aço:
Nos poucos instantes necessários para que Rearden entendesse o que via e avaliasse a natureza do desastre, percebeu uma figura surgir de repente ao pé do alto-forno, viu um braço nu se levantar e jogar um objeto negro no lugar de onde jorrava o metal líquido. A figura era Francisco d’Anconia, e o ato que ele realizara fazia parte de uma arte que Rearden acreditava que ninguém mais aprendia.
Anos antes, Rearden trabalhara numa obscura siderúrgica em Minnesota, onde seu trabalho consistia em fechar os buracos abertos nos altos-fornos jogando neles argila refratária, para deter o fluxo de metal. Era um trabalho perigoso, que já causara a morte de muitos. Já fora extinto anos antes com a invenção da pistola hidráulica, mas algumas usinas com problemas financeiros haviam tentado utilizar, antes de falir, equipamentos e métodos obsoletos de um passado longínquo. Rearden sabia fazer aquilo, mas desde aquela época jamais conhecera outro homem capaz de fazê-lo. Por entre jatos de vapor, à frente de um alto-forno avariado, ele via agora a figura alta e esguia do playboy realizando aquela tarefa com a perícia de um especialista.
O estilo de Rand muitas vezes fez com que ela fosse incompreendida e descartada como uma espécie de nietzschiana. Mas seu objetivo era devolver o ar de autoafirmação e a intensidade dramática dos românticos aos valores iluministas de ciência, razão e produtividade. Os críticos podem reclamar que ela escrevia para “adolescentes”, mas seu apelo para jovens inteligentes e ambiciosos é óbvio: ela entendeu que eles necessitam de uma perspectiva menos penosa sobre o que vem a ser uma vida de trabalho, este em geral concebido como um dever ou imposição.
Ela também entendia que os jovens, quando inflamados pela paixão pelo trabalho e realização, se dedicariam a coisas mais úteis e edificantes – e mais pessoalmente gratificantes – do que o didatismo autoritário da esquerda ativista ou ao “espernear” reativa de grande parte da direita de hoje.
O melhor resultado da guerra cultural é que a cultura vence: em vez de tentar cancelar os projetos de outras pessoas, devemos responder com criações próprias empolgantes, destacando o que nossa filosofia e visão de mundo têm a oferecer. Como resposta ao ressentimento contemporâneo e à autopiedade, vale a pena levar a sério a visão de Ayn Rand de uma cultura de realização.
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Publicado originalmente em Quilette.
Traduzido por Hellen Rose.
Revisado por Matheus Pacini.
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