Nascida em fevereiro de 1905 na Rússia, com o nome de Alisa Zinov’yevna Rozenbaum, a autora de Cântico (1937) se mudou no ano de 1925 para os Estados Unidos, onde assumiu o nome de Ayn Rand, trabalhando inicialmente como roteirista de cinema e teatro em Hollywood. Entretanto, foi como escritora que ela tornou seu legado irrepreensível para a humanidade. A fama de Rand se iniciou com a obra “A Nascente”, de 1943, e, em 1957, lançou sua obra principal “A Revolta de Atlas”. Atuando como filósofa em tempo integral, Ayn Rand foi a idealizadora do Objetivismo, sistema filosófico que defende as virtudes do autointeresse racional, tais como o pensamento independente, a produtividade, a justiça, a honestidade e a autorresponsabilidade.
Nesse sentido, “Cântico” se passa num futuro em que impera uma ordem governamental totalitária, em que o coletivismo é o único pensamento permitido. Um dos pontos mais marcantes do livro é perceptível logo em seu início, a ausência de pronomes pessoais em primeira pessoa, os personagens do romance utilizam sempre o “nós” no lugar de “eu”, uma estratégia bastante interessante utilizado por Rand para ilustrar a perda da individualidade quando o coletivo vem sempre em primeiro lugar. Outro detalhe interessante que permite reforçar essa visão é o fato de que os personagens não possuem nomes, são identificados por uma sequência de códigos que ficam registrados uma pulseira. Como exemplo, tem-se o herói do romance, identificado como Igualdade 7-2521.
A sociedade vive sob controle de conselhos e tudo é regulamentado, são forçados a viver segundo regras impostas pelos conselhos, não existe vontade, escolhas individuais e, com isso, não existe liberdade. Todo esse controle tirânico se baseia no discurso que o coletivo deve sempre prevalecer sobre o indivíduo e o não pensar no todo em primeiro lugar, além de ser crime digno de julgamento e condenação, é um dos maiores pecados. É esse sentimento de pecador que o herói da obra traz consigo, pois ele, ao contrário de seus irmãos de sociedade, tem pensamentos diferentes àqueles ditados pelo poder maior. Essas discordâncias começam a ganhar força quando o Conselho de Profissões ordena ao Igualdade 7-2521 que ele deverá ser varredor de rua, sendo que ele traz consigo o desejo de ser um intelectual, mas, mesmo percebendo que aquilo não era o seu desejo, assume seu destino, pois esse é o melhor para manter a harmonia do coletivo, segundo o discurso que foi lhe penetrado na mente desde antes de nascer, por aqueles que são os detentores da verdade absoluta.
Na realidade em que se passa a obra de Rand, os conselhos não controlam somente a profissão, controlam o que cada indivíduo deve sentir, seus desejos mais íntimos. Não existe casamento na sociedade em que Igualdade 7-2521 vive, existem apenas encontros periódicos para a reprodução, não ficando a sua escolha quem será seu parceiro. Esses sentimentos do herói fervilham quando ele conhece Liberdade 5-3000, a mulher que o desperta sentimentos antes não conhecidos, de os quais nem sabe o nome. Os rumos da vida do herói de “Cântico” mudam quando ele e seus irmãos de sociedade encontram um túnel, onde começa a descobrir alguns segredos sobre o regime em que vive e seu pensamento começa a se transformar. Todavia, tudo é interrompido quando o protagonista é descoberto e levado para depor perante o Conselho dos Eruditos, onde confessa aquilo que considera que são seus pecados, a partir daí é condenado. Entretanto, o herói não é igual aos demais e não aceita mais as imposições, foge para a floresta desconhecida, seguido por sua amada.
Essa floresta é um local proibido, onde ninguém ousava pisar, pois era rodeada de mitos e era um grave pecado adentrar em seu território, mas Igualdade 7-2521 e Excelente, como chamava sua amada, já estavam se libertando das amarras do sistema em que eram obrigados a viver. No local proibido, o casal começou a fazer várias descobertas sobre o mundo antes do regime totalitário e coletivista que foi implantado: entre os principais achados, estavam escritos que permitiram ao herói descobrir a existência do “eu” e iniciar a compreensão de si como um indivíduo e um ser único, com desejos e liberdade para fazer suas próprias escolhas e seguir suas vontades. Igualdade 7-2521 afirma, em seus dizeres, que não há nada capaz de tirar a liberdade de um homem exceto outro homem.
“Cântico” traz uma poderosa reflexão sobre como o pensamento no coletivo, o desejo de todos serem iguais e de que o “nós” venha sempre à frente do “eu”, podem levar a sociedade para algo sombrio, uma realidade em que os desejos individuais e a liberdade sejam acorrentadas por regras coletivistas. A realidade apresentada por Rand é claramente uma distopia, mas, se for feita uma análise minuciosa em algumas nações do mundo, em especial as que possuem regimes totalitários, é possível identificar traços que arremetem ao futuro de Cântico. Dessa forma, é preciso que cada indivíduo lute por sua liberdade, por sua identidade, tenha consciência de que colocar seus desejos a frente dos desejos coletivos não é, e nunca deve ser, um crime. Não perder a essência de que cada ser humano é único e merece ser tratado como tal, além de ter suas vontades e liberdades de ações e pensamentos respeitadas e garantidas é o cerne para que o “nós” não exclua o “eu”.
“Cântico” não é a mais famosa obra de Rand, mas devido a sua narrativa e ao fato de possuir poucas páginas, é sem dúvidas uma excelente opção para ser a porta de entrada para aqueles que querem adentrar no mundo da filósofa e seus pensamentos.