Libertarianismo x Capitalismo Radical (Parte I)

Libertarianismo, escreve David Boaz, “é a noção de que cada pessoa tem o direito de viver sua vida como decida, sempre e quando respeite o igual direito de outrem”.

Libertários defendem o direito individual à vida, liberdade e propriedade – direitos que as pessoas possuem de forma natural, anteriores à criação de governos. Na visão libertária, todas as relações humanas deveriam ser voluntárias; as únicas ações que deveriam ser proibidas por lei são aquelas que implicam a iniciação da força contra aqueles que não a iniciaram – ações como assassinato, estupro, roubo, sequestro e fraude[1].

Dada essa descrição de libertarianismo, perguntam-me : i) O que há de mal nisso?, ii) como um amante da liberdade pode se opor ao libertarianismo?

São boas perguntas. Para respondê-las, procedemos a considerar, no espírito de Frédéric Bastiat, não somente o que se vê, mas também o que não se vê.

O que não se vê?

Elementos cruciais que não se veem incluem as posições libertárias quanto à fonte e o conhecimento dos direitos, e se respostas objetivas demonstravelmente verdadeiras a essas perguntas são necessárias, ou mesmo possíveis, em defesa da liberdade. Nesses temas, qual são as posições libertárias?

Os direitos não são nem “autoevidentes”, nem “divinos” e, muito menos, “naturais”

Ao examinar a literatura libertária, vemos que, em geral, os libertários defendem que os direitos são “autoevidentes” ou “dados por Deus” ou, de alguma forma (e inexplicavelmente) “naturais[2]”. Muitos libertários defendem que os direitos são corolários da “autopropriedade” ou da ideia de que a vida do indivíduo pertence a ele, o qual consideram um “axioma”, uma verdade autoevidente, uma premissa irredutível[3]. E muitos defendem que a maldade ou a proibição da iniciação da força é um axioma, o chamado “axioma / princípio da não agressão[4]”.

A ideia essencial unificadora nesse núcleo da ideologia libertária é que a existência de direitos e a legitimidade da propriedade ou são autoevidentes, ou são uma questão de fé, ou são suficientemente explicadas pelo termo “natural”; dessa forma, argumentos morais ou filosóficos mais profundos em apoio delas são desnecessárias. Para que prover argumentos filosóficos para o que as pessoas podem saber simplesmente abrindo seus olhos, fechando seus olhos, ou fazendo sinal com as mãos e dizendo “natural”?

O fato é que as pessoas não sabem e nem podem saber nada sobre a natureza dos direitos ou a legitimidade da liberdade através desses meios. Se quisermos defender a liberdade com êxito, precisamos entender e articular, entre outras coisas, a procedência dos direitos, porque os temos e como sabemos disso.

Embora os pais fundadores dos Estados Unidos sustentassem que os direitos eram “autoevidentes”, “dados por Deus” ou “naturais”; e apesar de terem fundado os Estados Unidos com base nessa ideia, ela é falsa – e sua falsidade tem se tornado cada dia mais clara desde a época da independência, haja vista a multiplicação de filosofias que rejeitam essa mesma possibilidade de direitos. Logo analisaremos algumas delas. Mas, primeiro, consideremos alguns dados perceptuais do tema.

Está claro que não podemos ver, ouvir, tocar, provar ou cheirar os direitos. Olhe ao seu redor: os direitos não podem ser vistos ou, tampouco, percebidos. O único fato autoevidente sobre os direitos é que os direitos não são autoevidentes.

Tampouco há qualquer evidência que justifique a ideia de que os direitos provenham de “Deus”. Não há evidência de que Deus exista, muito menos que os direitos emanem de Sua vontade. Crer em Deus é uma questão de fé – aceitação de ideias em defesa das quais não há evidência. (Quando uma pessoa aceita ideias com base nas evidências, ela segue a razão, não a fé). Ademais, segundo às escrituras, os deuses do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo ordenam explicitamente que as pessoas violem direitos (voltaremos nisso em breve). Se uma pessoa decide crer em Deus, esse é um tema pessoal, e uma sociedade civilizada respeita e protege seu direito de praticar os aspectos (que não violam direitos) de sua crença. Contudo, afirmar que os direitos advêm de Deus não é uma boa estratégia para defender direitos ou advogar a liberdade.  

E tampouco é uma boa estratégia afirmar que os direitos são “naturais”. O que significa dizer que os direitos são naturais? Quer dizer que os direitos existem “lá fora”, na natureza, da mesma forma que plantas, planetas ou átomos? Novamente, olhe ao seu redor: não é assim. Quer dizer que os direitos existem dentro do homem, como ossos, sangue ou pulmões? Se você abrir um cadáver (e não estou sugerindo que o faça), você não encontrará direitos dentro dele. Direitos não existem na natureza ou no homem – pelo menos, não fisicamente. Direitos não têm forma física; eles são ideias – especificamente, são princípios altamente abstratos que dizem respeito à liberdade de ação do homem no contexto social.

As ideias seculares negam os direitos ao tratar de justificá-los

Sim, direitos existem. Mas, como muitas coisas que existem – justiça, honestidade, sarcasmo e lógica – os direitos não são perceptíveis. Para entender a natureza dos direitos, porque existem, porque são inalienáveis, como sabemos disso, e o que esses princípios significam na prática, devemos nos focar nas ideias subjacentes que dão origem aos direitos e que são baseadas na realidade perceptual. Essas ideias encontram-se na moralidade e na filosofia mais profunda.

Infelizmente, muitos defensores da liberdade querem evitar a moralidade e a filosofia mais profunda. Isso é, até certo ponto, compreensível, pois quando entramos nesses campos, encontramos que as moralidades e filosofias dominantes rejeitam a possibilidade da existência de direitos.

Por exemplo, um dos códigos morais mais amplamente aceitos hoje, utilitarismo, sustenta que o padrão de valor moral é “a maior felicidade para o maior número”[5]. Nessa visão, a ideia de que as pessoas têm direitos inalienáveis é, como expressa o filósofo utilitarista Jeremy Bentham, “bobagem sobre pernas-de-pau”[6]”. Se o padrão de moralidade é a maior felicidade para o maior número, então a noção de que um indivíduo deveria ser livre para viver sua vida (o direito à vida), de acordo com seu julgamento (liberdade), usando o produto do seu esforço (propriedade), para seus próprios fins (a busca da felicidade) é ridícula. Suponhamos que uma maioria diga que ele proceder assim as torna infeliz. Ou suponhamos que uma maioria, tal como a dos brancos do Sul, está feliz em escravizar uma minoria, os negros do Sul (importados da África). Ou suponhamos, ainda, que uma maioria – os alemães não judeus – é feliz exterminando uma minoria, por exemplo, os judeus alemães. Claramente, o utilitarismo é incompatível com os direitos.  

Um código moral relacionado, e ainda mais amplamente aceito, altruísmo, sustenta que o padrão de moralidade é o sacrifício à serviço dos outros. De acordo com o altruísmo, explica o filósofo altruísta Augusto Comte, temos um “dever constante” (uma obrigação, de fato, imposta) de “viver para os outros”. Devemos ser “servos da humanidade, como, de fato, o somos”; portanto, devemos “eliminar a doutrina dos direitos…a noção como um todo, então, deve ser totalmente repudiada[7]”. Se você tem um dever moral de viver para os outros, se você pertence e dever servir à humanidade, você claramente não pode ter um direito moral a viver para si mesmo, a atuar por seu próprio julgamento, a manter sua propriedade ou a buscar sua própria felicidade.

Logo temos a doutrina cada vez mais popular do igualitarismo, que sustenta – não que as pessoas devam ser tratadas igualmente perante a lei (essa é uma política do capitalismo laissez-faire) – mas, sim, que o padrão da moralidade é, como o filósofo igualitarista John Rawls coloca, “igualdade de oportunidade” para todos os membros da sociedade, com exceção permitida somente quando eles são “para o maior benefício dos membros menos favorecidos da sociedade[8]”. Está claro que se esse é o padrão da moralidade, então direitos não podem existir – pelo menos, não para alguém que não faz parte dos “menos favorecidos”. Como explica Rawls, segundo esse padrão, “é incorreto que indivíduos com mais dotes naturais e um caráter superior que facilitou seu desenvolvimento tenha direito a um esquema cooperativo (isto é, um sistema legal) que lhes permite obter ainda mais benefícios sem contribuir às vantagens dos demais[9]”. Sobre esse padrão igualitário, continua Rawls, certas ações nas esferas social, econômica e social devem ser proibidas. “Nenhuma liberdade básica é absoluta”, nem mesmo “a liberdade de pensamento ou consciência, ou liberdade política e garantias do estado de direito são absolutas[10]”. E, é claro, Rawls enfatiza, os indivíduos não têm “direito a ter certos tipos de propriedade (por exemplo, meios de produção), e liberdade de contrato como entendidos pela doutrina do laissez-faire”, pois “a distribuição da riqueza e renda, e posições de autoridade e responsabilidade, devem ser consistentes com… a igualdade de oportunidade[11]”. Dada a popularidade do utilitarismo, altruísmo, igualitarismo e outros tipos de filosofias anti-direitos, é compreensível que alguns defensores da liberdade se sintam desconfortáveis em discussões sobre moralidade e filosofia profunda. Mas evitar essas ideias não as fazem desaparecer. E as pessoas que aceitaram essas ideias não serão convencidas de que estão equivocadas simplesmente ouvindo dizer que “direitos são autoevidentes” ou “direitos vêm de Deus” ou “direitos vêm da natureza (embora não possa mostrar como)” ou “existe esse axioma da não agressão”. 

As filosofias utilitarista, altruísta e igualitária propuseram argumentos em apoio de suas filosofias anti-direitos, e muitos americanos ouviram esses argumentos ou alguma de suas versões, abraçando-os até certo ponto. Por isso que, hoje, estamos amarrados por tantas leis e instituições que violam nossos direitos como o SUS, as escolas públicas, as leis antitruste e milhares de outras. Apesar de os argumentos desses filósofos serem falsos, o fato é que eles têm argumentos, e as pessoas convencidas por eles não mudarão de opinião via afirmações vazias de que direitos existem ou que a liberdade é algo bom[12].

De onde procedem os direitos? Por que os temos? Como sabemos disso? Essas são questões morais e filosóficas que exigem respostas do mesmo tipo. Longe de serem axiomas, primárias irredutíveis ou verdade autoevidentes, os direitos são princípios derivados altamente abstratos que surgem e dependem de uma base moral e filosófica de observações, integrações, princípios e lógica.

Liberdade e direitos devem ser validados só com base na realidade e na razão

Felizmente para os amantes da liberdade, a filósofa objetivista Ayn Rand identificou essa hierarquia conceitual e mostrou como ela está baseada na realidade perceptual – fatos que podemos ver. Para nosso propósito, oferecerei uma breve indicação da estrutura filosófica de seu argumento, começando com o princípio dos direitos individuais[13][14].

Qual é o princípio dos direitos individuais? É o reconhecimento do fato que cada indivíduo é um fim em si mesmo, não um meio para os fins dos outros, e que cada um tem uma prerrogativa moral de agir com base em seu próprio julgamento e para seu próprio bem, livre da coação dos outros. Ele tem o direito de viver como quiser (vida), de agir como quiser (liberdade), de manter e tirar proveito do produto do seu esforço (propriedade), e de perseguir as metas e valores que escolher (busca da felicidade). Em consequência, nada, incluindo grupos e governos, tem o direito moral de forçar um indivíduo a atuar contra seu próprio julgamento.

Subjacente e, ao mesmo tempo, apoiando o princípio dos direitos individuais está o princípio de que a iniciação da força física contra uma pessoa é moralmente perverso e politicamente inadmissível. É moralmente perverso porque, na medida em que é usado contra uma pessoa, impedimo-la de agir de acordo ao seu julgamento racional, o qual é o meio básico de sustentar e promover sua vida. (Se alguém aponta uma arma para sua cabeça e diz para você se calar, o que entregue o produto do seu trabalho, o que escolha uma profissão diferente, um cônjuge diferente, etc, então você não atua baseado em seu próprio julgamento). Iniciar a força é politicamente inadmissível porque o objetivo apropriado de um sistema político é estabelecer e manter as condições sociais que permitem aos indivíduos atuar com base em seu próprio julgamento, melhorando, assim, suas vidas.

Por que disso? Por que é tão importante que as pessoas usem seu julgamento para manter e melhorar as suas vidas? Isso é, de fato, demonstrável, o que cada indivíduo moralmente
deve fazer. Podemos notar tal ponto ao estudarmos a filosofia com mais afinco.  

Sustentando e apoiando o princípio dos direitos individuais e da maldade de iniciar a força está o princípio do egoísmo, o qual defende que cada indivíduo deve agir em seu próprio autointeresse por meio do seu próprio julgamento racional, desfrutando os benefícios de sua ação produtiva. O egoísmo defende que cada indivíduo deveria perseguir seus próprios valores, sem sacrificar-se pelos outros e nem exigindo o sacrifício dos outros por ele, e que cada um deve tratar com os outros somente via meios voluntários, por consentimento mútuo e para benefício mútuo. De onde vem tal princípio? O que o torna verdadeiro? É um princípio derivado de princípios ainda mais profundos, relacionados ao padrão objetivo de valor moral, e a razão mesma pela qual o homem precisa de valores e moralidade.

O critério de referência para determinar se uma ação – ou uma política, ou uma instituição – é boa ou má, correta ou incorreta, reduz-se a identificar os requisitos da vida do indivíduo. Por quê? Pois as pessoas são indivíduos – cada qual com sua mente, seu corpo, sua vida – e porque a única razão pela qual os indivíduos precisam de valores ou orientação moral de forma a viver. Se uma pessoa não quer viver, ele não precisa de valores ou orientação de nenhum tipo; ele pode, simplesmente, parar de agir e logo morrerá. Só a decisão de viver de uma pessoa é que tornam os valores possíveis e necessários para ela. Ele não pode perseguir valores a menos que esteja vivo, e não tem que persegui-los a menos que queira viver. Em última instância, uma moralidade objetiva está baseada nos requisitos da vida de um indivíduo.

Como podemos estar seguros de que essas ideias são verdadeiras? Podemos chegar a conclusões verdadeiras, e verificar até que ponto nossas ideias são válidas ao analisar a realidade e usar a razão, nosso meio de conhecimento. A razão funciona através da observação, da integração conceitual, e do princípio da não contradição. Quando nossas ideias encontram correspondência na realidade perceptual (coisas que podemos ver, tocar, etc), então, são verdadeiras. Se detectamos que nossas ideias contradizem a realidade que percebemos, o contradizem coisas que foram previamente demonstradas, temos que, se é o caso, corrigir nosso pensamento.

Com base nas ideias anteriores e sustentando-as estão as leis da identidade e da causalidade – as verdades axiomáticas autoevidentes que indicam que as coisas são o que são e podem agir somente de acordo com sua natureza. Uma pessoa é uma pessoa; ele não é um percevejo, ou um lírio, ou um deus. Pode-se obter conhecimento e viver só pela contemplação da realidade, pensando e agindo racionalmente; não se pode adquirir conhecimento e viver se não se quer vê-la ou nela pensar, dedicando-se simplesmente a desejar ou rezar por um milagre. Se uma pessoa se nega a pensar e agir de forma racional, não tardará em morrer (a menos que outros lhe permitam viver como parasita de seus esforços racionais). Podemos captar essa verdade ao abrir os olhos e analisar a realidade.

LEIA A PARTE II

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Tradução e revisão por Matheus Pacini

Publicado originalmente em The Objective Standard.

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[1] BOAZ, David, Libertarianism: A Primer. New York: The Free Press, 1997. p. 2.

[2] BOAZ, David, Libertarianism: A Primer. p. 62, 74;  ROTHBARD, Murray N. The Ethics of Liberty. Atlantic Highlands, NJ: Humanities Press, 1982. p. 21–24.

[3] BOAZ, David, Libertarianism: A Primer. p. 64; ROTHBARD, Murray N. The Ethics of Liberty, p. 59.

[4] BOAZ, David. Libertarianism: A Primer, p. 74; ROTHBARD, Murray N. “War, Peace, and the State,” in Egalitarianism as a Revolt Against Nature, and Other Essays, 2nd ed. Auburn, AL: Ludwig von Mises Institute, 2000. p. 116.

[5] MILL, John Stuart. Utilitarianism. Indianapolis: Hackett, 1979. p. 7-11.

[6] Citado em HOOK, Sidney. The Paradoxes of Freedom. Berkeley: University of California Press, 1962. p. 8.

[7] COMTE, Auguste, The Catechism of Positive Religion. London: John Chapman, 1852. p. 309, 313, 332–33.

[8] RALWS, John. Justice as Fairness. Cambridge: Harvard University Press, 2001. p. 42–43. RALWS, John. A Theory of Justice, rev. ed. Cambridge: Harvard University Press, 1999, p. 266.

[9] RALWS, John. Theory of Justice, p. 89.

[10] RALWS, John. Theory of Justice, p. 54; Justice as Fairness, pp. 104, 111.

[11] RALWS, John. Theory of Justice, p. 54.

[12] Se as pessoas fossem persuadidas por tais asserções, quão efetivas seriam como defensores intelectuais da liberdade?

[13]  A apresentação simplificada da hierarquia conceptual subjacente ao princípio dos direitos tem o propósito de indicar a natureza da hierarquia. 

[14]  RAND, Ayn, The Virtue of Selfishness. New York: Signet, 1964. BIDDLE, Craig, “Ayn Rand’s Theory of Rights: The Moral Foundations of a Free Society,” in The Objective Standard, Fall 2011.

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