Resgatando a espiritualidade para os amantes da vida

A espiritualidade pertence exclusivamente ao domínio da religião? Muitas pessoas pensam que sim. Mas esse é um erro, espiritualmente, destrutivo.

O espírito é a parte não física de uma pessoa, contemplando sua consciência, sua faculdade racional, suas escolhas, seu caráter e suas emoções. Portanto, a espiritualidade está devidamente preocupada com os aspectos internos da vida humana, tais como: a natureza da consciência humana e da razão, como usar a mente, que escolhas fazer, que caráter criar, bem como as experiências emocionais que agregam significado psicológico aos nossos dias na Terra.

Viver uma vida espiritualmente rica e completa exige atender racionalmente a essas áreas. Envolve pensar claramente sobre suas necessidades psicológicas, escolher e perseguir metas que dão significado à vida, desenvolver relacionamentos saudáveis ??com boas pessoas e usar conceitos e métodos que tornam tudo isso possível.

Embora tão importante para a vida humana, a espiritualidade foi corrompida tão profunda e amplamente pela religião que, hoje, poucas pessoas conseguem pensar de forma coerente ou, até mesmo, se comunicar efetivamente sobre isso. E a religião não é o único agressor. Várias filosofias seculares também contaminaram a espiritualidade.

Enquanto a religião insere concepções vulgares da natureza da espiritualidade, certas filosofias seculares, orientais e da nova era negam a própria existência das coisas que tornam a espiritualidade possível e necessária, como o espírito e o eu.

O efeito combinado desses ataques religiosos e seculares é uma guerra em múltiplas frentes contra a espiritualidade. E a consequência disso? Essa guerra degradou e desfigurou essa esfera vital tão completamente que, hoje, poucas pessoas são capazes de viver uma vida profundamente espiritual – porque quase ninguém tem ideia do que isso significa.

O objetivo deste ensaio é dar início ao processo de reparação desse dano, esclarecendo a natureza secular do espírito (alma) e propondo um léxico de terminologia racional com respeito a essa área fundamental da vida humana.

Não abordaremos essas questões de forma abrangente, pois essa seria uma tarefa para um livro. Em vez disso, o objetivo é explicar brevemente de que formas a espiritualidade foi subvertida e corrompida, refletir sobre a natureza genuína dessa esfera vital e, não menos importante, recuperar a terminologia necessária para pensar e se comunicar sobre ela.

Primeiro, examinaremos a escola de pensamento que nega a existência de espírito.

Filosofia do materialismo: a negação do espírito

O materialismo filosófico é a ideia de que tudo na existência é material ou físico e, portanto, não existem coisas não materiais e não físicas. Nesta visão, a espiritualidade não tem sentido: se não existe espírito, qualquer esforço preocupado com a natureza, a saúde ou o uso do espírito é claramente ridículo.

Espiritualismo, dizem os materialistas; não há nenhuma lógica em contemplar ou buscar algo que não existe. Toda essa conversa de “espírito” ou “espiritualidade” é puro misticismo. As pessoas são só matéria em movimento. Lide com isso e abrace sua natureza exclusivamente física.

Analisada mais de perto, todavia, a teoria dos materialistas não faz sentido.

A teoria materialista é a de que não existem coisas não materiais. OK. Qual é a definição de teoria? Uma teoria é uma ideia sobre a natureza de algo. E o que é uma ideia? Uma ideia é um pensamento – uma coisa não material. Percebeu o problema?

O materialismo equivale à ideia de que ideias não existem, ou o pensamento de que pensamentos não existem.

Que os seres humanos possuem atributos físicos e não físicos – que somos seres de corpo e mente, matéria e espírito – é um fato autoevidente, universalmente verdadeiro, racionalmente inegável. Claro, as pessoas são livres para negar tal fato – como fazem os materialistas – mesmo que não faça sentido fazê-lo.

Esse fenômeno foi identificado pela primeira vez por Aristóteles, e é chamado de reafirmação através da negação: quando você usa algo para negar a própria existência desse algo, você reafirma sua existência.

Os materialistas não podem defender sua teoria e negá-la ao mesmo tempo. Mas isso não deve preocupá-los: embora mostre que sua teoria está errada, significa que têm uma mente, e que sua vida têm significado. Isso é um belo consolo.

O materialismo nega contraditoriamente a existência do espírito. O nosso próximo agressor nega, contraditoriamente, a existência do corpo (matéria).

Idealismo filosófico: a negação da matéria

O idealismo filosófico sustenta que tudo é ideia, espírito ou alma – e que, portanto, não existe tal coisa chamada matéria, objetos físicos ou corpos. Focaremos pouco nessa escola, pois seu erro básico é essencialmente o mesmo do materialismo.

A teoria aqui é que objetos físicos não existem. Para que um idealista possa expressar essa ideia, todavia, ele próprio precisa existir fisicamente: deve usar suas cordas vocais, uma caneta, um teclado, etc.; para que outros possam ouvir ou ler tal colocação, eles devem existir fisicamente, ter ouvidos, olhos, cérebro, etc.

Aqui novamente, a reafirmação através da negação se aplica. Um idealista é livre para negar tal fato (a existência de coisas físicas), mesmo que não faça sentido fazê-lo.

Em termos da condição humana, Ayn Rand resumiu de forma eloquente o absurdo do materialismo e do idealismo da seguinte forma: “Um corpo sem alma é um cadáver; uma alma sem corpo é um fantasma”.

Felizmente, você e eu não somos nem materialistas, nem idealistas. Mas o nosso próximo agressor tem algo a dizer sobre isso.

Autonegação: a negação do “eu”

Enquanto o materialismo nega a existência da alma, o idealismo nega a existência do corpo; a autonegação aceita a existência da alma e do corpo, porém, nega a existência do próprio eu (ser).

De acordo com os autonegadores, o eu é uma ilusão, e o objetivo final da espiritualidade é dissipar essa ilusão, transcendendo o eu.

Mas a negação do eu não é um ato de espiritualidade; muito pelo contrário, é um ataque ao próprio ser para quem a espiritualidade importa: o eu.

O argumento básico para a inexistência do eu é o seguinte: você não pode localizar o seu “eu”. Olhe em volta, para dentro de si, para fora. O “eu”, o “ego” não pode ser encontrado. Claro, você pode localizar seu corpo e seu cérebro, mas esses não são o seu “eu”. Eles são, meramente, o seu corpo e o seu cérebro. Eles são coisas físicas movidas por processos químicos. Sim, você está consciente, mas sua consciência também não é sua. É apenas a sua consciência, que emana do seu corpo e cérebro. E sim, você tem pensamentos, mas não há pensadores (nem você, nem ninguém); há apenas pensamentos, que emanam da sua consciência.

Concordo que isso seja bastante confuso, mas esse é o argumento dos autonegadores. A essência de seu argumento é esse último ponto: a ideia de que ninguém (nenhum “eu”) pensa os pensamentos que você pensa. Como Sam Harris, proponente dessa ideia, diz: “Se você procurar o pensador desses pensamentos, você não o encontrará. E a sensação que você tem … “Que diabos Harris está falando? Eu sou o pensador! – é apenas outro pensamento, emanando da consciência.”

A consciência pode existir, dizem os autonegadores, mas o “eu” não. O eu não é real. E tratá-lo como se fosse real é crer numa fantasia.

Esse é o argumento deles, mas não resiste ao escrutínio racional.

Como supracitado, o espírito de alguém é a parte não física do “eu”. O “eu” de um indivíduo, por sua vez, é o espírito dele mais seu corpo. É o ser integrado que consiste em espiritual mais material; o ser complexo que você conhece por “eu”, “eu mesmo” ou “ego”; o ser que, existente nos outros, chamamos de “você”, “ele” ou “ela”. O ser é o ser que vive, fala, pensa, valoriza, age, cuida e sonha.

Dizer “não existe ‘eu’” é um caso claro de reafirmação através da negação. Quem está fazendo a reivindicação? O seu “eu”, ora bolas.

Em última instância, a ilegitimidade do materialismo, do idealismo e da autonegação reside no fato de que a existência do espírito (mente), da matéria (corpo) e do eu (a integração corpo-mente) se resume à realidade perceptiva, bem como à experiência direta. Estritamente falando, a reafirmação através da negação não é prova de sua existência; Em vez disso, é a reafirmação do fato de que sua existência é autoevidente.

Tratemos agora do agressor mais difundido contra a espiritualidade: a religião.

Religião: corrupção da espiritualidade

Segundo a religião, a espiritualidade pertence, em última instância, a um ser “sobrenatural” chamado “Deus”. Nessa visão, ser espiritual é conectar-se com Deus, supostamente, o espírito supremo, a fonte final de todos os outros espíritos, e o alvo mais elevado de preocupação espiritual. Essa teoria é extremamente popular – e, evidentemente, falsa.

Não há provas da existência de um ser sobrenatural, razão pela qual ninguém jamais as apresentou. Existem, é claro, pessoas e livros que afirmam a existência de Deus. Contudo, reivindicações não são evidências.

Do que temos evidência? Temos evidências da existência do mundo natural em que vivemos. Temos evidências de nossa própria existência, de nossos corpos, de nossas almas. Temos evidências da integração corpo-alma, e que podemos fazer escolhas, direcionando nossas ações mentais e físicas. E temos provas de que, se usarmos nossa alma e nosso corpo de certa forma, respeitando os requisitos naturais da vida humana e da felicidade, teremos vidas espiritualmente ricas e gratificantes.

“Mas,” argumentarão os religiosos, “você não consegue explicar, em termos naturais, o surgimento da consciência humana ou do espírito!” – para que a resposta adequada é: e daí?

O fato de (ainda) não podermos saber como se desenvolveu a consciência (através da evolução) ou como se desenvolve num indivíduo não é evidência de que um ser sobrenatural tenha criado ou crie a consciência. Defender o contrário é cometer a falácia conhecida como argumento da ignorância, que consiste em tratar a ignorância como evidência. A reivindicação dos religiosos se resume essencialmente a isto: “Você não sabe como a consciência surgiu, e sua ignorância é evidência de que ela foi criada por Deus”. Não, não é. A ignorância não é evidência.

Nem a ignorância das origens da consciência (ou de qualquer outra coisa) justifica uma origem sobrenatural dela (ou de qualquer outra coisa). Do ponto de vista racional, as causas sobrenaturais, literalmente, não têm sentido –  nenhuma evidência sensorial lhes dá suporte. As coisas na natureza podem ser evidências apenas das coisas na natureza – como, por exemplo, o registro fóssil ser prova da evolução. Coisas na natureza não podem ser evidências de coisas fora da natureza. A natureza é tudo o que existe. É a soma do que existe. Algo fora da natureza seria fora da existência – isto é: inexistente.

Temos um mundo de razões para acreditar que todas as coisas na natureza foram causadas por coisas na natureza, e temos zero motivo para acreditar noutra coisa. Assim, acreditar doutra forma é ter uma crença irracional. As pessoas são livres para crer irracionalmente, mas isso não as torna racionais.

O corpo, o espírito ou a alma de alguém é um fenômeno natural. Assim sendo, todos os aspectos, as exigências e as manifestações do indivíduo são naturais: isto é, seus órgãos, bem como suas faculdades conceitual e emocional. Assim como a necessidade de alimentos e água é natural, a necessidade de propósito e autoestima também o é. E, assim como as emoções diárias de prazer, curiosidade e antecipação são naturais, e pertencem às coisas da natureza, as emoções mais ricas e raras de serenidade, exaltação, reverência e outras são naturais e pertencem às coisas da natureza.

Infelizmente, a religião expropriou termos tão importantes, convencendo grande parte da população de que tais conceitos se aplicam unicamente aos valores religiosos, deixando as pessoas sem conceitos (palavras) para descrever importantes valores seculares – que são, de fato, alusivos a termos espirituais. Essa expropriação conceitual é particularmente evidente com respeito ao aspecto emocional da alma. Como Ayn ??Rand escreve em sua introdução à edição do romance A Nascente:

O monopólio da religião no campo da ética torna extremamente difícil comunicar o significado emocional e as conotações de uma visão de vida racional. Assim como a religião tomou conta do campo da ética, voltando a moralidade contra o Homem, ela também usurpou os conceitos morais mais elevados de nossa linguagem, posicionando-os fora da Terra e fora do alcance do Homem. A “exaltação” é normalmente entendida como um estado emocional evocado pela contemplação do sobrenatural. “Veneração” significa a experiência emocional de lealdade e dedicação a algo mais elevado que o Homem. “Reverência” significa a emoção de um respeito sagrado, que deve ser sentida de joelhos. “Sagrado” significa superior e separado de qualquer interesse do Homem nesta Terra. E assim por diante.

Mas esses conceitos realmente dão nome a emoções reais, mesmo que não exista nenhuma dimensão sobrenatural; e essas emoções são vivenciadas como enaltecedoras ou enobrecedoras, sem a autodegradação exigida pelas definições religiosas. Qual é, então, a fonte ou a referência desses conceitos na realidade? É todo o universo das emoções que provêm da dedicação do Homem a um ideal ético. Mas, separado dos aspectos de degradação do Homem introduzidos pela religião, esse universo das emoções é deixado sem identificação, sem conceitos, palavras ou reconhecimento.

É esse nível mais alto das emoções do Homem que precisa ser resgatado das trevas do misticismo e redirecionado ao seu objeto apropriado: o Homem.

Essa redenção e redirecionamento são essenciais para o estabelecimento e manutenção de uma concepção racional de espiritualidade, nos âmbitos pessoal e cultural.

Para tal fim, os amantes da vida devem resgatar em definitivo, bem como definir objetivamente os termos importantes cooptados ilegalmente pela religião, de modo a aplica-los na discussão de assuntos espirituais. Forneço definições plausíveis para vários desses termos, mas melhorias são sempre bem-vindas:

Espírito: o aspecto não físico do ser humano; a consciência de uma pessoa. Assim como cuidar do corpo é essencial para a saúde física, também é essencial cuidar do espírito para a saúde psicológica.

Espiritual: que diz respeito à consciência humana; sobre o espírito ou a alma de uma pessoa. Sua vida espiritual ampliou-se grandemente depois de perceber que restringia o espiritual às concepções místicas do termo.

Exaltação: estado de extrema alegria ou felicidade. A exaltação resultou quando o médico descobriu uma cura para a doença de Alzheimer.

Reverência: profundo respeito por alguém ou algo. Depois de perceber que o petróleo fornece a matéria-prima de que a civilização industrial depende, sua reação emocional em relação a ele mudou de desprezo para reverência.

Felicidade: estado de alegria sem obstáculos. Ouvindo a sinfonia, olhos fechados e alma aberta, ele experimentou a felicidade.

Êxtase: sentimento de prazer ou alegria esmagadora. O casal conseguiu o êxtase sexual – e quebrou alguns móveis no processo.

Serenidade: estado de calma e tranquilidade. A serenidade tomou o mundo ocidental após a extinção de regimes que patrocinam o terrorismo.

Adoração: sentimento e expressão de reverência e adoração por alguém. Enquanto algumas pessoas adoram Jesus porque acreditam que ele é filho de Deus, outras pessoas adoram Aristóteles porque o conhecem como pai da lógica.

Sagrado: digno de veneração ou merecedor de reverência. Quando os alunos entraram no corredor e viram a Declaração de Independência, sabiam que estavam na presença de um texto verdadeiramente sagrado.

Felicidade: estado emocional que decorre da realização dos objetivos ou valores de uma pessoa. Tendo lutado durante anos para criar sua escola e aperfeiçoar seu currículo, foi tomado de felicidade ao ver que seus alunos estavam aprendendo a pensar.

Valores: princípios de uma pessoa ou padrões de bom comportamento; a visão do que é moralmente correto ou importante na vida; objetos que alguém para obter ou manter. Produtividade e honestidade estão entre seus valores mais elevados. Serena estava feliz em trabalhar para o avanço da empresa, e ela se recusou a receber o crédito por algo que não havia feito.

Moralidade: código de valores para orientar escolhas e ações. Embora seus pais, professores e pregadores tenham sempre insistido que a moralidade exige servir de forma autossacrificial, depois de ler A Virtude do Egoísmo, ela percebeu que estavam errados, e que a moralidade racional exige que o autointeresse racional, isto é, o uso de sua mente para escolher e buscar valores que servem à vida, respeitando os direitos dos outros de fazer o mesmo.

Orgulho: sentimento de autoestima profunda, obtido pela ação consistentemente com os valores e objetivos racionais de uma pessoa. Tendo lutado durante anos para obter seu doutorado, o orgulho de Dave foi visível durante a celebração.

Amor: sentimento de carinho intenso por uma pessoa ou coisa. Seu amor por sua esposa expandiu-se continuamente enquanto conhecia sua bela alma cada vez mais profundamente.

Sem dúvida, essas definições podem ser melhoradas. Meu objetivo aqui não é formular definições perfeitas, mas enfatizar que a importância de resgatar das garras da religião a terminologia que é essencial para a espiritualidade racional.

A espiritualidade racional diz respeito a compreender e adotar a natureza e as necessidades do espírito humano, agindo em conformidade e, por fim, viver uma vida espiritualmente satisfatória. Existem inúmeras maneiras de ter uma vida assim, e todos os interessados em fazê-lo devem escolher seu próprio caminho. Mas, seja qual for o caminho escolhido, é necessário ter ferramentas conceituais que possibilitem e promovam uma vida verdadeiramente espiritual.

O materialismo filosófico, o idealismo, a autonegação e a religião constituem um ataque de quatro frentes contra o domínio da espiritualidade e, portanto, sobre sua vida. Ao entender sua natureza, identificar seus erros e recuperar a terminologia nesse campo vital, você melhora sua capacidade de viver uma vida profundamente espiritual.

A clareza conceitual sacia a sede da alma. Beba dessa fonte.

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Traduzido por Josiberto Benigno.

Revisado por Matheus Pacini.

Publicado originalmente em The Objective Standard

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