Resenha sobre a obra “Cântico”

Considerada a primeira distopia da autora russa radicada nos Estados Unidos, Ayn Rand, Cântico é um romance lançado pela primeira vez em 1938 no Reino Unido. Nos anos 1920 e 1930, os ideais coletivistas e socialistas tinham bastante influência nos Estados Unidos e ambas as ideologias, socialista e nazista, eram vistas como viáveis pelos americanos, influenciando os editores inicialmente a negarem seu lançamento, reconsiderando-o apenas no pós-guerra, em 1946. Criadora da corrente filosófica chamada Objetivismo, Ayn Rand chegou com apenas 21 anos em Nova York fugindo da recém-criada União Soviética.

Rand iniciou os primeiros esboços de Cântico em sua adolescência, no começo dos anos 1920, provavelmente inspirada pelo que aconteceu na Rússia, e pelo nascimento e fortalecimento das ideologias coletivistas que floresciam nestes anos. Seu livro é uma forma de resposta a esses movimentos de concentração de poderes nas mãos do Estado e de redução do “eu”, sendo esta palavra o cântico (ou o que seria melhor, hino) referenciado no título da obra.

A história é narrada em primeira pessoa e, logo na primeira página, o leitor já pode notar uma certa estranheza na forma como seu protagonista e narrador, Igualdade 7-2521, pensa e escreve sua história. Toda a individualidade foi removida pela ordem totalitária mundial instaurada após o “Grande Renascimento”, evento-chave no enredo que marca o ponto de consagração do coletivismo sobre o progresso e o individualismo dos “Tempos não-mencionáveis”.

Conforme Igualdade 7-2521 descreve o funcionamento de sua sociedade, o leitor vai sentindo-se desconfortável com a identificação de alguns paralelos com alguns fatos da sociedade atual. A mais clara e que dá o tom do romance é a do controle do pensamento pelo controle da linguagem. Em Cântico com a supressão do “eu”, e atualmente, com a tentativa de imposição pelos progressistas de pronomes neutros em nossos idiomas. A coleção de coincidências é assustadora e ainda conta com o exemplo de um “Conselho Mundial” que define todo o funcionamento da sociedade distópica: é impossível não pensar em nossa ONU e sua Agenda 2030 nos empurrando para um possível “Grande Renascimento”.

A descrição do sistema educacional e de trabalho pelo narrador tem seus próprios paralelos. A educação estatal molda e incute seus valores em quase todas as pessoas do universo de Cântico, reforçando o ideal coletivista e abafando qualquer possibilidade de questionamento e de destaques. A educação fornecida aos alunos é de péssima qualidade, a ponto de todos serem nivelados para acompanhar a capacidade de uma personagem que possui apenas metade de seu cérebro. No Brasil do século XXI, temos os valores progressistas sendo ensinados e os alunos sendo niveladas por baixo com a falta da possibilidade de reprovação de alunos com mau desempenho, por exemplo. Até mesmo os “Conselhos de vocação” do romance já existem em alguns países, separando as pessoas ainda na infância entre as aptas e não-aptas a uma formação superior, deixando as segundas apenas com a possibilidade de ensino técnico, independentemente de sua vontade ou dedicação posterior.

Ao avançar em seus estudos e descobertas, Igualdade 7-2521 também descreve como as pessoas estão sempre com semblante amedrontado e sem grandes perspectivas apesar de o Estado declarar todos como felizes. Ao reinventar a lâmpada e a energia elétrica, o narrador também nos mostra como tudo que não é permitido por lei é proibido, e de como a única preocupação do Estado é continuar seguindo seus planos independentemente do benefício às pessoas. A substituição do uso das velas não é nem cogitada com o objetivo de manter sua fabricação e utilização e toda a cadeia de empregos alocada nessa responsabilidade. Nesta passagem também vemos a perseguição acadêmica àqueles que de fato pesquisam e produzem conhecimento em detrimento aos “donos do saber” e dos títulos.

A apresentação (e negação) de sua descoberta é o ponto de maior revolta para o protagonista, que, neste momento, decide fugir daquela sociedade e buscar sua felicidade, assim como a autora do romance saindo da Rússia soviética. Igualdade 7-2521 conhece o amor a outro indivíduo, sua companheira Excelente, por fim descobrindo o Eu, um novo homem que abandona sua identificação e se batiza como Prometeu. Assim como o titã mitológico se rebelou contra o Olimpo, roubou o fogo e o entregou à humanidade, nosso protagonista se revoltou contra o Estado e redescobriu a luz, o amor e a noção de individualidade.

A história termina com Prometeu tendo acesso a livros antigos, redescobrindo a linguagem antes de ter sido controlada e o hino de exaltação ao indivíduo, a palavra “Eu”. A eterna vigilância, como defendida por Thomas Jefferson, deve ser mantida para manutenção de nossa liberdade contra os desmandos daqueles que buscam um “Grande Renascimento” em nossos tempos. Deve ser mantida para não nos deixarmos seduzir pelos discursos utópicos e as soluções fáceis e coletivistas, não nos deixarmos seduzir pelas concentrações de poder e pela dominação dos indivíduos pelo todo, seja pela força seja pela pressão social.

O uso da força para dominação nos assusta e gera reação, o uso das artimanhas criadas por autores como Antônio Gramsci passa desapercebido. É fácil vermos os caudilhos latino-americanos como problemas, é muito mais difícil entendermos que boa parte do entretenimento e da educação possuem suas agendas, seu controle de palavras, seu conselho dos sábios. A partir do momento em que percebemos esses ataques ao “Eu” e deixamos passar batido, vamos caminhando para o desaparecimento dessa palavra e para a distopia. Finalmente, o livro também é um convite a nós leitores ao estudo dos saberes clássicos como aqueles defendidos por Aristóteles, celebrado como mentor intelectual pela autora Ayn Rand, e à busca pela felicidade como fim em si mesma.

Obra original:

Rand, Ayn. Cântico – 2ª Edição – Campinas: CEDET.

Resenha de:
Káliman Borges, Empreendedor, Co-fundador do VExpenses e Associado Prospect do IFL-SP.

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