Papa Francisco, religião, capitalismo e Ayn Rand

Dado o fato amplamente reconhecido de que países e populações desfrutam de riqueza e prosperidade precisamente porque adotam o capitalismo, por que o papa Francisco chama o capitalismo de “esterco do diabo”, e voa ao redor do mundo tentando eliminá-lo?

Economistas e outros intelectuais já apresentaram à exaustão a evidência histórica em defesa do fato de que o capitalismo – o sistema de direitos individuais, governo limitado, e estado de direito – é a causa político-econômica da prosperidade. E não é necessária a leitura de muitos livros para entender a mensagem. Jornalistas reportam regularmente fatos relevantes que, como pequenas peças de Lego, podem tomar a forma de um edifício teórico com o passar do tempo.

Nos últimos dias, em antecipação à visita do papa Francisco aos Estados Unidos, diversos pensadores proeminentes publicaram artigos cheios de evidências, mostrando a natureza pró-vida do capitalismo. George Will, por exemplo, escreve: “o comércio capitalista que Francisco desdenha é a razão pela qual a parcela da população em “pobreza absoluta” – (US$ 1,25/dia) caiu de 53% para 17% nos últimos 30 anos, de 1981 para cá.”

Alex Epstein escreve que, desde 1980, graças às tecnologias tornadas realidade por mercados relativamente livres, o mundo aumentou seu uso de carvão, petróleo e gás natural em 80% – haja vista que essa é a forma de produção de energia com melhor custo-benefício. Ao mesmo tempo, a expectativa de vida média do mundo cresceu em sete anos – sete anos extras de vida! Qualquer outra métrica de bem-estar humano aumentou: da renda, passando pela assistência médica, até o acesso à água potável. O maior crescimento se deu entre os mais pobres do mundo.

Com respeito à “mudança climática”, segundo Francisco, um dos “problemas” favoritos supostamente causados pelo capitalismo, Epstein adiciona:

De acordo com o banco de dados de desastres internacionais, as mortes relacionadas ao clima caíram 98% nos últimos 80 anos. Em 2013, houve 21.122 mortes desse tipo em comparação com o auge de 3,7 milhões em 1931, quando a população mundial era menos de 1/3 da atual.

Donald Boudreaux observa que o capitalismo “é o fator mais importante no aumento do padrão de vida das massas ao longo da história”, notando que o papa Francisco, de alguma forma, desconsidera tal fato:

Antes da Revolução Industrial, o cidadão médio vivia com cerca de US$ 3/ dia (em dólares de 2015), e cada habitante dos países subdesenvolvidos atuais – esses lugares menos tocados pelo capitalismo – sobrevive com US$ 7/dia. Em contraste, o cidadão médio no mundo industrializado pró-mercado vive com US$ 110 dólares/dia, e o americano médio com US$ 150/dia. Hoje, graças ao capitalismo, bilhões de nós… vivem uma vida tão boa com a qual nem mesmo o mais poderoso imperador bizantino ou europeu ousava sonhar alguns séculos atrás.

Tais fatos econômicos são indisputáveis – tal como é a teoria econômica que os explica.

Desde que Adam Smith fundou a ciência econômica no século XVIII, suas ideias e as de vários outros economistas – de Jean-Baptiste Say a Ludwig von Mises, de Henry Hazlitt a Thomas Sowell – mostraram como e por que o livre mercado permite a produção em massa de bens e serviços, e a vasta criação de riqueza e prosperidade para todos que são capazes, e estão dispostos a pensar, trabalhar e comercializar.

O profundo pragmatismo do capitalismo pode ser visto mais a fundo no Índice de Liberdade Econômica do Mundo, compilado anualmente desde 1995 pela Heritage Foundation e o The Wall Street Journal. O índice registra as várias formas pelas quais os países com mais liberdade (por exemplo, maior proximidade com o capitalismo puro) desfrutam de maior riqueza e prosperidade que aqueles com menos liberdade (menor proximidade com o capitalismo puro). Não causa surpresa, portanto, que o índice mostre que pessoas em países como Hong Kong, Singapura, Nova Zelândia e Estados Unidos vivem claramente melhor que pessoas em países como irã, Venezuela, Cuba e Coréia do Norte.

Dada a infinidade facilmente acessível de fatos e explanações lógicas mostrando repetidamente que o capitalismo é o sistema social do florescimento humano, não há como um intelectual profissional preocupado com economia não entender essa verdade, pelo menos, em seus conceitos básicos.

Por que, então, o papa Francisco insiste que o capitalismo é “o esterco do diabo”, e que devemos eliminá-lo, ou pelo menos, neutralizar tal sistema maléfico?

O papa parece fazer tais afirmações porque a religião – seja qual for sua vertente – opõem-se, em princípio, às próprias coisas que o capitalismo legaliza e venera – mais notadamente, nesse contexto, a busca egoísta pelo lucro, e o direito de manter e usufruir o produto do seu trabalho.

A Bíblia está repleta de passagens em oposição a esses pilares do capitalismo. No Antigo Testamento, por exemplo, Deus fala “pois nunca deixará de haver pobre na terra; pelo que te ordeno, dizendo: livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o teu necessitado, e para o teu pobre na tua terra (Dt. 15:11). No Novo Testamento, Jesus diz: “Dê a todo aquele que pedir, e se alguém tirar o que pertence a você, não lhe exija que o devolva”. (Lc 6:30). “Porque o amor ao dinheiro é a raiz de toda a espécie de males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se traspassaram a si mesmos com muitas dores” (ITm 6:10). “E lhes digo ainda: é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus”. (Mt 19:24). E assim por diante.

Um exemplo particularmente esclarecedor de oposição bíblica aos direitos de propriedade é a história de Ananias e Safira, a qual centra no fato de que temos um dever divinamente ordenado de dispor toda a propriedade à serviço do “bem comum”. Na história, o casal inaceitavelmente egoísta tenta manter parte de seus próprios ganhos em vez de partilhá-los totalmente com sua comunidade. O resultado? Deus executa o casal. Sua vontade divina era “repartia-se a cada um, segundo a necessidade que cada um tinha (At 4:35).” Se isso lhe soa familiar, é porque Karl Marx disse essencialmente a mesma coisa: “de cada um, de acordo com sua capacidade, a cada um, de acordo com sua necessidade”. Ananias e Safira violaram a vontade de Deus ao tentar manter parte de sua propriedade, e Deus os castigou.

Ao longo do tempo, líderes religiosos admitiram o claro significado de tais passagens: Deus proíbe as pessoas de manter e usar, de forma egoísta, o produto de seu esforço; Ele requer que todo mundo sirva ao bem comum; Ele, de fato, exige o socialismo. Como o teólogo Nels Ferre explica, de acordo com a Bíblia, “toda a propriedade é Divina, para o bem comum. Ela pertence, portanto, acima de tudo, a Deus e, então, igualmente à sociedade e ao indivíduo. Quando o indivíduo tem o que a sociedade precisa, e pode usá-lo lucrativamente, não é seu, mas pertence à sociedade, por direito divino”[1]. São Tomás de Aquino escreve “o homem não deveria tratar as coisas como exclusivamente suas, mas usá-las para o bem de todos, estando sempre pronto a partilhá-las com os necessitados[2]”. E o teólogo Charles Lincoln Taylor Jr. explica: “os códigos bíblicos da lei proíbem o egoísmo” e i) recomendam “condenação irrestrita do uso da propriedade para vantagem própria”, ii) exigem “serviço e sacrifício” à comunidade; e afirmam que iii) “nenhum homem deve arrogar-se para si aquilo que deveria contribuir para a honra e o bem-estar de seu vizinho.”[3]

O que tudo isso diz sobre o capitalismo – o sistema social que reconhece, defende e protege os direitos de propriedade? Qual é a relação entre capitalismo e religião? O teólogo Emil Brunner tal fato de forma simples:

O capitalismo é uma grande perversão da ordem divina da criação, e devemos explicitar seu caráter economicamente destrutivo mesmo que […] todos os especialistas afirmem o contrário. Um sistema econômico que contradiz a ordem divina de tal forma deve-se provar a ruína das pessoas; esse é um fato que não pode ser desmentido. Aqui estamos lidando não com questões técnicas, mas com a questão ética fundamental: podemos aceitar um sistema que, em sua própria base, opõe-se à moralidade? Ou, expressando doutra forma: temos algum direito a permitir que especialistas nos convençam de que o capitalismo é o único sistema – cujo caráter imoral já conhecemos – em posição de oferecer à humanidade a satisfação de todas as nossas necessidades diárias?[4]

Independentemente de qualquer outra coisa dita na Bíblia, ela é clara nesse sentido: a busca, a manutenção e o uso egoístas da riqueza são contrários à vontade de Deus e, portanto, imorais. Consequentemente, qualquer sistema social que legalize e promova tal comportamento “imoral” (como o capitalismo claramente o faz) é visto por religiosos sérios não só como imoral, mas também impraticável – não importando a evidência histórica ou a análise de especialistas em contrário. O capitalismo não pode ajudar as pessoas a satisfazerem suas necessidades básicas, a lógica religiosa diz, porque o sistema contradiz a ordem divina da criação. Fatos empíricos e os escritos de von Mises não podem anular a Bíblia, e as palavras de Deus.

É claro, nem todo mundo leva a religião tão a sério quanto papas e outros religiosos profissionais. A maioria das pessoas religiosas tenta encontrar um meio-termo entre a demanda de comportamento altruísta das Escrituras e os requerimentos fáticos da vida humana. E a maioria dos religiosos que tenta defender o capitalismo o faz – ou reconhecendo a natureza egoísta do sistema e aceitando a necessidade de comprometer sua moral religiosa – ou ofuscando a natureza egoísta do sistema e buscando fazê-lo parecer não egoísta.

O primeiro grupo, representado nos argumentos de muitos conservadores, é sucintamente resumido por Michael Novak:

Embora reconheça que nenhum sistema de economia política possa escapar da devastação do pecado humano, o [capitalismo] busca estabelecer um sistema que torna as tendências pecaminosas o mais produtivas possível. Embora [o capitalismo] se baseie em algo menos que a perfeita virtude – o autointeresse egoísta – ele tenta extrair do autointeresse o seu maior potencial criativo. É um sistema designado para pecadores, na esperança de alcançar o maior bem moral que indivíduos e comunidades podem gerar sob uma condição de ampla liberdade[5].

Como destaquei em Capitalism and the Moral High Ground, essa estratégia equivale à afirmação de que “ao liberar os pecadores para perseguirem seu autointeresse racional, o capitalismo extrai o potencial criativo dessas almas depravadas e, portanto, alcança o bem moral”. Noto, ainda, que “aceitar a imoralidade de um sistema social é aceitar o argumento em prol de sua existência.”

A outra estratégia – o esforço para ofuscar o egoísmo do capitalismo, fazendo-o parecer não egoísta – pode ser visto nos argumentos de muitos conservadores e, também, alguns libertários. Walter Williams, por exemplo, em um vídeo recente Capitalismo é moral, aplica todos os tipos de acrobacias linguísticas para afirmar que o capitalismo não trata, de fato, de “egoísmo” ou “fome de dinheiro”, mas sim de incentivar as pessoas a “servir ao próximo”. (Há muito de bom no vídeo de Williams, assim como em seu trabalho como um todo. Minha objeção aqui é à sua negação do fato visível de que o capitalismo é um sistema de, e para a ação autointeressada).

Um esforço particularmente direto para acobertar a natureza egoísta do capitalismo pode ser visto nessa famosa passagem de Ralph Barton Perry, a qual Rush Limbaugh cita em seu programa de rádio:

A ideia fundamental do capitalismo moderno não é que o direito do indivíduo a possuir e desfrutar do que recebeu, mas a tese de que o exercício desse direito resulta no bem geral. Essa justificação é necessária se a instituição da propriedade privada pretende se defender contra a acusação de egoísmo[6].”

Essa estratégia – negar que o capitalismo é “egoísta” e insistir que ele trata do “bem geral” ou do “bem comum” ou qualquer coisa tipo – é pior do que inútil, porque faz que a aplica parecer estar fingindo que fatos não são fatos (o que, de fato, eles estão fazendo).

Como Ayn Rand demonstrou em seus vários livros, ensaios e cartas, “a ideia de que o capitalismo possa ser moralmente justificado em uma premissa coletivista e defendido em com base no “bem geral” é “fútil e ridícula”. O esforço, escreve Rand, equivale a isso:

 “Queridos socialistas, nosso objetivo, igual que o vosso, é o bem-estar dos pobres, maior riqueza geral, e um padrão de vida melhor para todos – então, por favor, deixem os capitalistas produzirem, pois o sistema capitalista alcançará todos esses objetivos para vocês. É, de fato, o único sistema que pode alcançá-los”.

A última frase da citação é verdadeira, e tem sido provada e demonstrada na história, e mesmo assim, não tem e não converterá mais pessoas ao sistema capitalista, pois o argumento acima é autocontraditório: não é o propósito do sistema capitalista focar no bem-estar dos pobres; não é o propósito do empresário capitalista maximizar benefícios sociais; um industrialista não opera uma fábrica com o propósito de oferecer empregos aos seus trabalhadores. O sistema capitalista não poderia funcionar nessa premissa.

Os benefícios econômicos que toda a sociedade, incluindo os pobres, recebem do capitalismo advêm estritamente como consequência secundária, (que é a única forma pela qual qualquer resultados social pode advir), e não como objetivo primário. O objetivo primário que faz o sistema funcionar é o motivo pessoal, particular e individual do lucro. Quando esse motivo é declarado imoral, todo o sistema torna-se imoral, e o motor do sistema pára de funcionar.

É inútil mentir sobre o motivo real e próprio do capitalista. A hipocrisia que acompanha tal “mentira” é tão óbvia que fez mais para destruir o capitalismo que qualquer teoria marxista. Ela destruiu todo o respeito pelo capitalismo. Em poucas palavras, ela faz o capitalismo parecer totalmente falso…

Não subestime o senso comum do “homem comum”, e não o culpe pela ignorância … ele não pode resolver a contradição filosófica existente na defesa do capitalismo via argumento do “bem comum” – mas ele sabe, no fundo, que esse argumento é falso.[7]

O capitalismo é o sistema social de autointeressse, e a única forma de defendê-lo no plano moral é abraçar e defender a moralidade da qual ele depende logicamente: a moralidade do autointeresse.

O papa Francisco está certo numa coisa: a religião e o capitalismo são totalmente opostos: temos de escolher: fé, altruísmo e estatismo versus razão, egoísmo e capitalismo.

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Tradução e revisão por Matheus Pacini.

Publicado originalmente na The Objective Standard

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[1] FERRE, Nels, Christianity and Society. New York: Harper & Row, 1970. p. 226.

[2] AQUINAS, Saint Thomas. Summa Theologica. Allen, TX: Christian Classics, 1989. p. 391.

[3] TAYLOR JR, Charles Lincoln. “Old Testament Foundations,” in Christianity and Property. Philadelphia: Westminster Press, 1947. p. 22–23, 30.

[4] BRUNNER, Emil, The Divine Imperative: A Study In Christian Ethics. Trad. Olive Wyon. Philadelphia: The Westminster Press, 1947. p. 426.

[5] NOVAK, Michael, “From the Spirit of Democratic Capitalism,” in Essential Neoconservative Reader. Reading, MA: Addison-Wesley, 1996. p. 127.

[6] PERRY, Ralph Barton. Puritanism and Democracy. New York: The Vanguard Press, 1944. p 310–311.

[7] RAND, Ayn. Letters of Ayn Rand. New York: Dutton, 1995. p. 259–60.

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