Embora a maioria das pessoas não tenha uma filosofia formada e consciente, todos nós temos uma série de valores e julgamentos filosóficos de maneira subconsciente, que formam aquilo que Ayn Rand chamava de “Senso de Vida”.
Essa é uma ferramenta valiosa que ela criou e que pegarei emprestada aqui para explicar melhor por que as pessoas têm preferências tão diferentes no campo da arte.
O senso de vida é a soma dos valores fundamentais de um homem, que resulta em uma forma particular de encarar o mundo. É uma avaliação subconsciente que fazemos do ser humano e da existência e que estabelece a natureza de nossas reações emocionais e a “lente” pela qual enxergamos o mundo. Nosso senso de vida não vem primeiramente de nossas convicções explícitas, intelectuais; é algo formado subconscientemente, baseado em experiências e julgamentos que acumulamos desde a infância, e que pode estar ou não em harmonia com nossas opiniões conscientes.
Mesmo sem entender nada de filosofia, ao longo da vida um homem tem que fazer escolhas, formar uma opinião a respeito de si e do mundo ao seu redor, e, dependendo de suas conclusões, chegará a um sentimento generalizado em relação à existência — uma emoção básica que estará por baixo de todas as suas experiências.
Por que é importante entender o significado de senso de vida? Pois ele é a principal ferramenta de avaliação das pessoas nas questões cotidianas. É com base nele que escolhemos os nossos amigos, nossos pares românticos, nossas músicas e filmes favoritos. Nós nos sentimos atraídos por coisas que estão em harmonia com ele, e repelidos pelas que não estão.
Na medida em que uma pessoa tem controle sobre sua mente, seu senso de vida pode ser moldado por ela própria ao longo de sua formação, chegando à vida adulta em harmonia com suas convicções conscientes. Mas, na maior parte dos casos, ele é formado por influências aleatórias, osmose cultural, é cheio de contradições e conflita com suas ideias explícitas. De qualquer forma, ninguém pode evitar formá-lo.
Alguns exemplos de perguntas filosóficas que são essenciais na formação de um senso de vida:
— O universo é um lugar governado por leis naturais, estável, lógico, ou é um caos incompreensível para o homem?
— Nossa mente é capaz de compreender a realidade, ou a razão é impotente?
— O homem tem livre-arbítrio, ou suas escolhas e seu caráter são determinados por outros fatores (cultura, genética, classe social, instintos)?
— O homem é capaz de atingir sucesso, felicidade, ou a vida é feita de dor e tragédia?
— O homem é essencialmente bom, admirável, ou ele é mau e desprezível por natureza?
— As pessoas podem conviver em plena harmonia, ou seus interesses estão necessariamente em conflito?
— Buscar a felicidade é importante, ou evitar a dor é o que realmente importa?
— Um homem deve buscar seus objetivos pessoais e ser feliz, ou deve se sacrificar pelo bem dos outros?
— O homem deve ter ambição, autoestima, sonhar alto, ou não deve se sobressair?
Respostas diferentes às perguntas acima resultarão em pessoas com sensos de vida diferentes e irão interferir diretamente em todas as suas escolhas, preferências — incluindo suas preferências artísticas. É importante lembrar que, de um extremo a outro, existem posicionamentos intermediários entre todas essas respostas. Por exemplo, uma pessoa pode sentir que: 1) A felicidade é o estado natural do homem e que conflitos são a exceção; 2) Que a vida é feita de conflitos, mas que eles podem ser superados com grande esforço; 3) Que conflitos não são totalmente superáveis e que a felicidade só pode ser atingida na moderação; 4) Que a vida é trágica por natureza e a felicidade é uma utopia.
Nosso senso de vida classifica as coisas de acordo com as emoções que elas evocam. No livro The Romantic Manifesto, Rand cita uma série de exemplos concretos e imagina quais emoções esses exemplos iriam provocar em pessoas com diferentes sensos de vida. Por exemplo: “uma nova descoberta, triunfo, um homem heroico, o horizonte de Nova York, cores puras, música extasiante”, ou “as pessoas da casa ao lado, uma rotina familiar, um homem humilde, um vilarejo antigo, uma paisagem nebulosa, cores turvas, música folk”. Para uma pessoa com uma visão mais positiva da vida e do ser humano, os exemplos do primeiro grupo devem provocar admiração, exaltação, um senso de desafio. Já os exemplos do segundo grupo devem provocar tédio, desinteresse ou repulsa. Já para uma pessoa com uma visão de mundo mais negativa, as emoções sentidas com os exemplos do primeiro grupo devem ser de medo, culpa, ressentimento. As emoções sentidas com os exemplos do segundo devem ser de alívio, conforto; a segurança de viver em um universo não muito exigente.
O senso de vida de uma pessoa é algo que percebemos quase instantaneamente quando entramos em contato com ela, pois envolve tudo a seu respeito: cada pensamento, emoção, gesto, postura, tom de voz, expressão facial, maneira de se vestir etc. Em uma obra de arte, o senso de vida de um artista se expressa através de seu conteúdo e de seu estilo (o que ele decide retratar, e a maneira como ele o retrata). Esses dois aspectos — conteúdo e estilo — podem estar em harmonia ou conflito um com o outro, assim como os valores conscientes e subconscientes de uma pessoa podem estar em harmonia ou conflito.
O conteúdo reflete os valores mais conscientes do artista. Que tipo de mensagem a obra transmite? Que tipo de eventos e pessoas o artista decide retratar? Heróis buscando objetivos nobres? Pessoas comuns sem grandes virtudes? Ou pessoas decadentes e imorais? Essas pessoas são retratadas positivamente (sendo eficazes, vitoriosas) ou negativamente (sendo ineficazes, derrotadas)? Um herói retratado positivamente indica um artista com um senso de vida benevolente. Um personagem imoral retratado negativamente também pode indicar um senso de vida benevolente, como já foi dito antes. Porém, um herói retratado negativamente ou um personagem imoral retratado com simpatia já sinalizam um senso de vida malevolente.
O estilo reflete os valores mais subconscientes (e geralmente mais reveladores e verdadeiros) da obra. Por exemplo: o artista comunica suas ideias de maneira clara, precisa, compreensível? Ou de maneira nebulosa, turva, caótica? A história é dramática, excitante, estruturada? Tem uma direção clara, propósito, clímax? Ou ela é monótona, os eventos são episódicos e não caminham para nenhuma resolução? O artista retrata pessoas admiráveis, atraentes? Ou coloca figuras comuns na tela?
Sensos de vida são formados pela combinação de inúmeras percepções a respeito da vida, e podem ser extremamente diversificados. Ainda assim, é possível classificar, grosso modo, sensos de vida como mais malevolentes e mais benevolentes. Um Senso de Vida malevolente é dominado pelas respostas negativas às questões filosóficas mais fundamentais: a vida é trágica, o universo é caótico, a razão é impotente, o homem é desprezível e está condenado ao sofrimento, nossos interesses estão em conflito etc. Um Senso de Vida benevolente é dominado pelas respostas positivas: a vida é essencialmente boa, o universo é compreensível, o homem é admirável e capaz de atingir seus objetivos, seus interesses não precisam estar em conflito. Como já deve estar claro a esta altura, o Idealismo é essencialmente baseado em um Senso de Vida benevolente.
Qualificar o senso de vida não é suficiente para dizer se uma obra de arte é boa ou ruim, mas ao mesmo tempo não há como chegar a critérios estéticos absolutos que não estejam ligados a um Senso de Vida, a certos pré-julgamentos filosóficos. Por exemplo: mesmo méritos como “clareza” ou “coerência”, que parecem qualidades estéticas inquestionáveis, desejáveis em qualquer obra, na verdade já são expressão de um Senso de Vida benevolente: refletem alguém que acredita que o universo é inteligível, que a razão é eficaz, que uma comunicação objetiva entre artista e espectador é possível, que mostrar algo harmonioso e agradável ao espectador é algo desejável. Seria impossível um artista com um Senso de Vida totalmente malevolente, tanto em conteúdo quanto em estilo, realizar uma grande obra de arte, pois se ele realmente acreditasse que o homem é desprezível (o que incluiria ele próprio e também os espectadores), incapaz de atingir seus objetivos, que a comunicação é uma ilusão, ele não teria nem a motivação nem a capacidade para realizar uma obra de arte de valor. Portanto, apenas na medida em que um artista possui um Senso de Vida benevolente, mesmo que de forma inconsciente, é que ele consegue realizar algo de qualidade e valor estético.
Embora o senso de vida seja um elemento crucial, outros elementos podem contribuir para determinar as preferências artísticas de uma pessoa — questões como temperamento, contexto cultural. Por exemplo: duas pessoas podem ter Sensos de Vida parecidos, mas operarem intelectualmente em níveis diferentes. Uma pode ter uma capacidade de abstração maior do que a outra, uma inteligência maior do que a outra, uma capacidade maior de atenção, e isso a atrairá a obras mais complexas, que estejam mais em harmonia com seu tipo de funcionamento mental.
POR QUE NÃO GOSTO DE GAME OF THRONES?
Do meu ponto de vista, Game of Thrones tem uma visão de mundo conflituosa baseada na ideia de escassez, de que vivemos em um universo de poucos recursos e, portanto, que a vida é uma grande batalha entre os homens para ver quem terá o controle sobre eles. É uma ideia bastante defendida tanto pela esquerda quanto pela direita no mundo da política, mas enquanto a esquerda foca no que deve ser feito em relação aos fracos nesse contexto — em como eles tirarão os recursos dos fortes para garantir um mínimo necessário aos fracos —, aqueles que acreditam ser os fortes (como os personagens de Game of Thrones), já estão mais focados no ato de obter esses recursos e em como mandarão nos fracos quando forem vitoriosos (são pessoas em geral bastante interessadas em táticas de guerra, estratégias etc.). No fim das contas, os dois lados têm a mesma visão conflituosa e pessimista de mundo, segundo a qual apenas alguns podem ter sucesso, e por isso os outros deverão ser inevitavelmente sacrificados no processo.
Outra coisa que rejeito aqui é a visão relativista de virtude que costuma acompanhar esse tipo de mentalidade: ser poderoso e vitorioso nesse contexto está totalmente relacionado a superar os outros, derrotar adversários. Essas pessoas são incapazes de pensar em autoestima e virtude de forma objetiva, independente, com base em sua capacidade de lidar com a realidade, ser eficaz, produtivo, atingindo a felicidade pessoal. É apenas a derrota do outro que prova sua virtude — a capacidade de dominar, de superar, de ser relativamente melhor no campo de batalha (arrogância e agressividade acabam sendo traços de caráter atraentes para quem pensa assim).
É uma mentalidade que reflete um desejo do imerecido, o desejo de obter valores à custa dos outros, contra a vontade dos outros. Enquanto os fracos (dentro dessa perspectiva) buscam o imerecido motivados por ideias altruístas, dizendo que devem ter aquilo que desejam justamente por serem fracos e incapazes e, que sem o sacrifício dos fortes, eles não teriam chance — ou seja, os fortes devem dar a eles o que eles querem, mesmo que não queiram fazer isso, pois é uma necessidade —, os fortes já querem que os fracos deem a eles o que querem por terem poder. Como são fortes, ricos, têm as melhores táticas, as armas mais potentes, os maiores exércitos, e os fracos dependem deles para sobreviver, então esses devem fazer o que aqueles querem, devem obedecê-los, servi-los, amá-los, respeitá-los, mesmo que não queiram fazer isso.
É a ética da mãe vs. a ética do pai numa dinâmica familiar arcaica: a mãe quer que o filho faça o que ela quer por um senso de culpa, de dever, porque ela é frágil, desamparada, e que ele o faça mesmo contra sua vontade. Enquanto o pai quer que o filho faça o que ele quer por obediência, medo, “respeito”, também contra sua vontade.
No final das contas, o maior medo dessas pessoas é o de descobrir o que os outros de fato gostariam de fazer se tivessem opção — medo de lidar com pessoas em plena liberdade, agindo voluntariamente, baseadas em seus reais valores e desejos, pessoas que estão buscando felicidade e não apenas a mera sobrevivência física. Isso ocorre, porque sentem no fundo que se todos fossem independentes, livres, e pudessem escolher com quem compartilhar suas riquezas (materiais ou espirituais), elas não teriam a menor chance de obtê-las. Então, sentem-se atraídas por essa visão problemática de mundo segundo a qual os sacrifícios são necessários, as pessoas são dependentes umas das outras e os recursos são escassos: é a única forma de elas sentirem que terão algum poder, que serão vitoriosas, que terão aquilo que elas querem das outras pessoas, pois as vontades reais dos outros não representarão mais uma ameaça, não farão mais parte da equação.
Apenas como exemplo de como essa visão de mundo é transmitida pela série, observe como é natural no universo de Game of Thrones vermos mulheres que demonstram desprezo por certos homens, não parecem sentir um desejo real, mas ainda assim acabam transando com eles (só no 1º episódio da 8ª Temporada já me lembro da cena em que Euron consegue persuadir Cersei a fazer sexo com ele, e uma outra cena em que Bronn está na cama com três mulheres ao mesmo tempo, aparentemente prostitutas). Essas são cenas comuns — personagens que são desprezados no fundo, mas que mesmo assim conseguem fazer os outros agirem da forma como desejam, pois, eles têm o poder, e neste universo de conflitos e sacrifícios, as pessoas não têm alternativa a não ser servi-los.
Não quero dizer que todo mundo que gosta da série o faz por esse motivo, ou por compartilhar desses valores, nem estou dizendo que a série é ruim artisticamente só por ter essa característica, mas é por essa lente que Game of Thrones me faz enxergar o mundo toda vez que paro para assistir a um episódio, essa visão da realidade em que o poder acaba sendo o valor mais importante e desejado — poder sobre os outros, poder de coerção —, e esse é o principal motivo para eu não me sentir atraído por ela.