Howard Roark Chora?

É um pecado perguntar isso. É um pecado pedir a um texto que seja mais do que ele
mesmo. É um pecado pensar num herói e tentar imaginá-lo em seu pior momento, no seu
momento mais vulnerável, mais doloroso, mais privado. É um pecado perguntar se o
homem ideal chora.
Como o homem que um dia se tornaria Prometeu, estou aqui diante de um papel em
branco, em um escuro tão somente meu. E, diferente deste, não preciso descobrir a palavra
“eu”. A verdade é que eu choro. É por isso que o ato de chorar importa tanto.
A discussão das lágrimas masculinas já foi decidida há tempos. O que um dia foi um ato de
vergonha, hoje é um ato de libertação. A sentença já foi rogada, e os homens já podem
chorar.
E os melhores homens, choram mais ou menos? Quando pode chorar o homem? Quando
bem entender? O público responde:
‘Quando as lágrimas aparecerem, solte-as com força, sem arrependimentos ‘
Mesmo se escavássemos todas as tumbas de nossos ancestrais, enquanto estes
estivessem lá se revirando, seríamos incapazes de resolver o mistério das lágrimas.
Faço-lhes outra pergunta, dizer que o homem pode chorar, significa dizer que ele deve
chorar ?
A ideia de engolir o choro, de impedir a descarga dos canais lacrimais, sempre me
incomodou. Hoje, todavia, não se pede para engolir o choro, mas engolir o riso. Não ria
disso, não brinque com aquilo, não faça essa piada; enquanto o sofrimento em público é
permitido, a diversão em público é sumariamente censurada.
Parece existir emoção correta. Jeito certo de rir e chorar. Mas não só isso: parece que todos
nós já sabemos qual delas é correta. A forma de rir e chorar, eidos, o momento oportuno de
rir e chorar, kairós, a substância do rir e chorar, ousia, todas as categorias aristotélicas,
descobertas e aplicadas. O ‘logos’ final, a palavra final já foi dada. A razão já foi construída,
o juízo proferido, e agora cabe a nós carregar a sentença e esperar pela auto execução.
Para entender a situação, precisamos entrar na velha sentença de Hume, de ser a razão
mera escrava das emoções. Ou devemos inverter o processo, entrar na dialética da
liberdade de Hegel, e mostrar que, na verdade, o sonho do oprimido é se tornar opressor, e
fazer das emoções escravas da razão.
Sejamos Racionais, e não emocionais. Iluministas e antirromânticos, expulsemos
coletivamente as emoções de tudo aquilo que é público. As decisões têm de ser tomadas
de maneira puramente racional, sacralizemos um Kant pré-crítico, ou pior, sacralizemos
Kant.
No entanto, Rand, sua inimiga, também apela à racionalidade. O tempo todo, o racional é
virtude e o irracional, o pior dos vícios. É o uso da mente para lidar com os problemas, é a
vida refletida, pensada, lançada ao futuro que é nosso alvo. E os condenados pela visão
dela são justamente os incapazes de questionar e, é claro, de responder. ‘Por que sim” é a
resposta padrão, do vilão padrão, dos livros não tão padrão desta autora nada comum.
A racionalidade de Ayn Rand, porém, não é tão seca e tosca. Existe uma diferença grave
entre o Herói Objetivista e o Herói Estoico. O objetivista não seria um Jedi, um Spock, muito
menos um Sith ou um Klingon. Com certeza, o objetivista seria muito mais uma Ashoka e
um Kirk. O caminho parece o do meio, mas, no final, é apenas a justa medida. Uma
negação positiva dos dois opostos, que, no final, são apenas a mesma coisa. Pura e
simples arbitrariedade.
Não precisamos optar por um ou pelo outro. Os Revolucionários de 76 eram grandes
leitores da poesia Britânica. Não haveria Jefferson sem Tennyson. Os inventores da
filosofia, os gregos, eram amantes de todo tipo de arte. Não haveria Platão sem Homero.
Até os maiores negadores do mundo emocional fazem isso como grandes apreciadores do
poder deste mundo, e apenas aqueles que não se propõem a viver no nosso são capazes
de fazê-lo completamente. Mais ainda, aqueles que o fazem são incapazes de
compreender o que estão fazendo.
Não me faltaram exemplos na minha vida de pessoas com ótimas capacidades e
repertórios teóricos que se viam completamente inoperantes quando se depararam com
problemas da própria vida. Este tipo de conselho, quando pedido por uma pura e simples
ignorância sobre as próprias motivações, ignorância sobre a própria vida interna, é o tipo do
conselho que Roark fala que nunca deveria ser pedido.
E essa honestidade, essa transparência do mundo interno ao mundo consciente e,
portanto, coerência de ação com o mundo externo, esta é a meta. Não um conflito, uma
harmonia, não uma cisão, uma tenra complementaridade.
Quando o mundo consciente falhar, apele para seus valores, quando seus valores
estiverem obscuros, busque-os com a luz da sua mente, mas, principalmente, tente
encontrar ambos, nos mesmos objetos, nos mesmos objetivos da própria ação.
Não sei se Rand perguntou coisas mais complexas sobre este tema. Se ela se deparou
com os diversos autores que acreditam numa educação emocional, em um entendimento
de que, ao longo da vida, somos capazes de adequar, redimensionar, retrabalhar
profundamente nossos valores e, por conseguinte, posicionar deliberadamente nossas
emoções. Uma vez que é quase que uma constante existir nos personagens que sofrem
profundas mudanças emocionais, como os produtores que se tornam grevistas em A revolta
de Atlas, um incômodo emocional, uma noção grave da própria incompreensão ou
incongruência. Mas em A nascente isto me parece um pouco mais inconclusivo.
A tese mais corrente, mais presente e aceita sobre o próprio personagem principal, Howard
Roark, é de que nele não há mudança profunda, entre a primeira página, com seu riso, e a
página final, com sua presença na construção do maior dos prédios. Eu discordo.
Existe diferença, muita diferença entre os dois Howards. Ele não muda de ‘tipo’ de pessoa,
não é um costume na literatura da Rand, pegarmos um vilão e torná-lo herói por meio do
enredo. Apesar disso ser um pouco questionável quando nós tratamos de sua literatura
inicial.
Porém há uma diferença entre esses dois momentos na vida do grande arquiteto, e diria
que poderia ser marcada pela capacidade de chorar.
A principal transformação que ocorre entre os dois Howards, é uma e simples. O primeiro
Howard amava apenas a arquitetura. O segundo também ama Dominique.
E porque ama Dominique, Howard ama Mike, ama Mallory e ama profundamente Wynand.
E se eu fosse chutar, a única forma de vermos Roark chorar seria da mesma maneira que
vimos Rand chorar, quando da perda de um valor insubstituível, alguém que ela amava.
Claro que Roark perde alguém nesse livro. Ele perde talvez aquele que é seu primeiro
amigo, e mais importante professor, Henry Cameron. E não, ele não chora; talvez tenha um
motivo profundo para isso: as últimas e poderosas palavras de Cameron para Howard
foram de certeza.
‘Tudo Valeu a pena’, disse Cameron. Chorar ao ouvir isso não seria digno de um herói.
Howard, todavia, no final do livro, quase perde o amor de sua vida. Apesar dele sofrer
muito, como é descrito claramente, ele também não chorou. Não porque a perspectiva de
perdê-la fosse suportável, mas porque justamente o ato de arriscar a própria vida era o ato
de se entregar completamente à ele. Chorar ao ver isso não seria digno de um herói.
A vida, no entanto, é limitada. É este limite que confere a ela significado irredutível e, se por
um motivo de azar, no futuro, Dominique fosse primeiro que Howard, ou até Mallory, Heller
e Mike. Ficar impassível ao perder algo profundamente valoroso, em qualquer idade, por
qualquer motivo, não seria digno de um herói.
Se a Alissa, mais conhecida por Ayn Rand, chorou ao perder Frank. Roark seria capaz de
chorar.
Se veríamos essas lágrimas, se elas seriam despejadas em público ou num momento de
solidão, como aquele primeiro riso,caros amigos, não sei. Mas, escorreriam lágrimas, e
mesmo diante da maior das tristezas, seria lindo.

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