Fundamentos de uma sociedade livre

(Baseado na palestra do psicólogo Nathaniel Branden no Instituto Cato em 2/12/1995)

Alguns anos atrás fui palestrante convidado a uma conferência de CEOs em Acapulco, México, logo antes do colapso da URSS. Outro palestrante convidado foi Gennady Gerasimov, porta-voz de Gorbachev no Ocidente. Resolvi ouvir sua palestra, e ela iniciou com uma piada: “a URSS invadiu e conquistou todos os países do planeta, com exceção da Nova Zelândia. A URSS não invadiu a Nova Zelândia. Por quê? Para sabermos o preço dos bens e serviços no mercado.” A audiência gostou da piada, e eu também.

Voltei 40 anos no tempo, quando Ayn Rand me apresentou os trabalhos de Ludwig von Mises, o primeiro economista que mostrou a impossibilidade do cálculo econômico no socialismo e porque isso levaria ao colapso do sistema socialista. Lembrei-me, também, de meus anos na Universidade de Califórnia em Los Angeles, quando tentei explicar o argumento de Mises e como fui ridicularizado em diversas ocasiões. Um professor, favorável ao estatismo, me disse: “sua dificuldade consiste no seu preconceito contra as ditaduras”.

Quarenta anos depois, um representante da URSS reconhece a verdade da observação de Mises numa piada, e o assunto é tratado como evidente.

O mundo mudou. E, de certa forma, a batalha entre capitalismo e socialismo parece ter terminado. Poucas pessoas levam o socialismo a sério como sistema político-econômico viável de organização social. Contudo, a batalha pelo capitalismo laissez-faire está longe de ter acabado. É como se os inimigos do capitalismo, em geral, e dos negócios, em particular, fossem um dragão de mil cabeças. Quando uma é cortada aparecem mais 100, com nomes e disfarces diferentes.

Atualmente, são diversos think tanks como CATO, ARI, Atlas Network e outros pelo mundo afora, mostrando com clareza que nenhum sistema social pode competir em termos de produtividade e padrão de vida com o capitalismo de livre-mercado. Além disso, muitas pesquisas mostram que a maioria dos projetos governamentais que busca resolver os problemas sociais não só fracassa, como também piora as condições que pretendia melhorar.  

É preciso estar dominado pela inconsistência filosófica para manter a convicção de que os problemas sociais podem ser resolvidos através de ações do governo. Ao mesmo tempo, como defensor da visão liberal, muitas vezes me perguntei o porquê de a batalha em favor de uma sociedade livre ser tão longa e dura, e o porquê sempre aparecem novos inimigos quando um é derrotado.

Quais são os requisitos de uma sociedade livre?

Certamente, mais do que Friedrich Hayek pensava quando disse que a educação econômica seria suficiente para fazer o mundo apreciar o mercado livre. Minha própria convicção é que precisamos de uma educação filosófica, moral e psicológica; e que nenhuma sociedade livre pode perdurar sem uma filosofia apropriada, suportada pela cultura predominante. Uma sociedade livre requer um sistema de valores, uma forma para analisar as relações pessoais, bem como a relação do indivíduo com o Estado, de modo a termos algum tipo de consenso.

Descreverei um evento que teve um impacto profundo em mim. Há, aproximadamente, 18 meses recebi um telefonema de uma candidata a um PhD em psicologia. Ela soube que eu estaria presente numa conferência na Carolina do Sul à qual ela estaria assistindo, e gostaria de obter meu apoio para discutir sua tese de doutorado, talvez, tornando-me seu orientador. Ela disse que admirava meu trabalho. Quando começamos a discutir quando e onde nos encontraríamos, ela disse que era cega. Fiquei atordoado: como uma mulher cega poderia conhecer tão bem meu trabalho? Ela riu quando fiz essa pergunta, disse que esperasse um minuto, e a próxima coisa que ouvi foi uma voz metálica lendo o meu livro Os Seis Pilares da Autoestima. Era um computador especial que lê, explicou; primeiro faz a leitura das páginas do livro, e depois traduz os sinais em palavras faladas.

Pensei nos cientistas que identificaram as leis da natureza envolvidas naquela dinâmica. Pensei nos inventores que converteram essas leis em tecnologia. Pensei nos empresários que organizaram os fatores de produção para fabricar tal máquina, disponibilizando-a no mercado. Pela sabedoria convencional, nenhum deles pode ser considerado “filantropo”. Porém, se a melhoria das condições da existência humana e a diminuição do sofrimento são desejáveis, que ato de “compaixão” poderia rivalizar com o que foi feito por ela – não fruto da piedade ou bondade – mas por pessoas apaixonadas pelo sucesso, e recompensadas por ele?

Não ouvimos o termo “compassivo” aplicado a empresários, muito menos ainda quando se trata de seu trabalho habitual (que não tem nada de “filantrópico”). Contudo, em termos de resultados, de empregos, de vidas felizes, de cidades construídas, de melhoria do padrão de vida, de eliminação da pobreza, etc., um punhado de capitalistas fez infinitamente mais para o gênero humano do que todos os políticos assistencialistas, acadêmicos, assistentes sociais e religiosos que marcham sob a bandeira da “compaixão” (e, frequentemente, olham com desprezo para os engajados no “comércio”).

O falecido Warren Brookes, no livro The Economy in Mind, contou uma história pertinente: [Ernst] Mahler foi um gênio empresarial cujas idéias inovadoras e liderança, em menos de 20 anos, transformaram uma pequena empresa fabricante de papel e gráfica (Kimberly Clark) em uma das maiores corporações de papel do mundo, empregando mais de 100.000 pessoas e com um público consumidor de mais de dois bilhões de pessoas. É claro que Mahler ficou muito rico. Porém, sua fortuna pessoal é insignificante quando comparada à prosperidade permanente que gerou, não só para sua empresa, mas para milhares de pessoas que trabalham nas indústrias que seu espírito empreendedor gerou.  

Posso apostar que você nunca tinha ouvido falar dele até agora. Esse é o fato, mesmo que sua contribuição tenha melhorado permanentemente a vida de milhões de pessoas, e superado de longe em termos de compaixão a maior parte de nossos políticos e personalidades de Hollywood que visitam eventualmente o continente africano.  

A moral da história é que um número relativamente pequeno de criadores chamados capitalistas fizeram contribuições incalculáveis para o bem-estar humano, todavia, não são lembrados por ninguém quando se pensa em “moralidade”. Eles não são termos da equação moral.  Nossa cultura ensina que moralidade é sinônimo de abnegação e compaixão, e a vida alheia como padrão de valor. Não associamos moralidade com ambição, realização, inovação e, muito menos, com obtenção de lucro. Mas, se o bem-estar humano for o padrão pelo qual devemos julgar, quaisquer que sejam os méritos da compaixão, eles não se comparam com as contribuições para o bem-estar feitas pela motivação da realização pessoal.

Um dos grandes problemas do ser humano, e a dificuldade básica para construir uma sociedade livre, é o descompasso entre os valores que, de fato, geram o bem-estar, e as coisas que são consideradas nobres, morais ou admiráveis. A calamidade de nosso tempo – e de todos os tempos – é a falta completa de congruência entre os valores que servem à vida e os valores que somos ensinados a valorizar. Enquanto não houver harmonia, a batalha pela liberdade nunca poderá ser ganha de forma decisiva.

Necessidades espirituais

As pessoas não têm apenas necessidades materiais; elas têm necessidades psicológicas e espirituais. E são as necessidades espirituais que terão a última palavra. Enquanto a visão liberal não for compreendida como indagação espiritual e não apenas econômica, continuaremos enfrentando o tipo de armadilhas e adversários que enfrentamos hoje.

Por isso estou fortemente interessado em compreender o que é preciso para criar e manter uma sociedade livre. Uma sociedade livre não pode florescer em uma cultura invadida pelo irracionalismo. A filosofia de século XX testemunhou uma rebelião mundial contra os valores da razão, objetividade, ciência, verdade e lógica: sob os nomes de pós-modernismo, pós-estruturalismo, desconstrutivismo, e muitos outros.

Não é acidente que a maioria das pessoas que participa desses ataques também sejam estatistas. Na verdade, não conheço nenhum deles que não o seja. Não é possível ter uma sociedade não coercitiva sem um instrumento comum a todos, a saber, a persuasão racional. Sem razão, só nos resta a coerção. Do ponto de vista filosófico, no liberalismo deve haver respeito pelos valores ocidentais de razão, objetividade, verdade e lógica, os quais tornam possível o discurso civilizado, a argumentação, o diálogo, o confronto de ideias e à resolução de diferenças.

Autorresponsabilidade

Outro grande valor que outrora foi central na tradição americana, e que agora quase desapareceu (e que é muito querido para mim), é a prática da autorresponsabilidade. Começamos como um país colonizado em que nada estava determinado e, virtualmente, tudo teve que ser criado. Começamos como um país individualista em que, para ter segurança, as pessoas se ajudavam entre si, mas cada qual assumia a responsabilidade por sua própria existência. Ajudar as pessoas tinha como objetivo torná-las, novamente, donas de si mesmas. A premissa básica era que o caminho normal de crescimento passava da dependência na infância para independência na idade adulta.

Essa visão desapareceu, talvez, não de nossa cultura, mas de seus porta-vozes intelectuais. Ouvimos falar de histórias cada vez mais insanas do que acontece quando não se exige responsabilidade pela conduta individual. Por exemplo: você já ouviu falar do agente do FBI que foi descoberto desviando dinheiro para jogar no casino? Por causa disso, foi despedido. Não obstante, pasmem, ele processou o FBI por discriminação, pois estaria doente, viciado em jogos.  O chocante desse caso é que o juiz aceitou tal argumento, e ele foi reincorporado ao serviço. Em algum outro momento da história foi tão fácil evitar a responsabilidade?

Como psicólogo, trabalho com diversos tipos de pessoas, e estou sempre atento ao fato de que nada é mais importante para o crescimento saudável que a percepção de responsabilidade por nossa própria vida e bem-estar, nossas escolhas e comportamento. Culpar os outros e manter a dependência são caminhos que levam a um beco sem saída; não servem a nós nem aos outros.

Não é possível construir uma sociedade, uma organização, um casamento, uma amizade, uma vida que funcione, sem autorresponsabilidade. Se ela não for um valor central da cultura, uma sociedade liberal não tem como funcionar.

O mundo está mudando. Imagine se um palestrante estivesse falando para uma platéia de mulheres e dissesse: “Senhoras, a essência da moralidade consiste em perceber que vocês estão aqui para servir. Suas necessidades não são importantes. Só pense nas necessidades de quem você serve, nada é mais belo que a abnegação”. Bem, no mundo moderno, tal palestrante seria vaiado e expulso a chutes do auditório. Agora, pensemos um pouco: o que teria acontecido se o orador tivesse feito um discurso similar a uma plateia mista? Qual a diferença? O que muda se houver homens no auditório? 

Precisamos repensar nossos fundamentos éticos.

Animosidade contra os negócios

Em praticamente todas as principais civilizações que existiram, houve muita animosidade contra comerciantes e homens de negócios. Foi assim na Grécia Antiga e no Oriente, por exemplo. Comerciantes, banqueiros ou comerciantes sempre foram os vilões favoritos. Mas, se entendermos que o homem de negócios é a pessoa que instrumenta o conhecimento e as novas descobertas, transformando-as em meios de sobrevivência e bem-estar, então ser antiempresarial tem um profundo significado antivida.

Isso não significa idealizar a atividade, tampouco negar que eles, às vezes, se dediquem ao antiético. Contudo, precisamos desafiar a ideia de que existe algo intrinsecamente errado em seguir o seu autointeresse. Precisamos lutar contra a ideia de que o lucro é algo sujo. Precisamos reconhecer que o grande milagre dos Estados Unidos, a grande inovação do sistema político americano consistiu em ser o primeiro país na história do mundo que reconheceu politicamente o direito à procura do próprio interesse como direito soberano e inalienável – condição básica do ser humano. O resultado foi à liberação da energia humana para servir à vida.

Não podemos falar de política ou economia no vazio. Temos que nos perguntar: em que se apoiam nossas convicções políticas? Qual é a visão implícita de natureza humana que dá origem a essas convicções. Por qual moralidade os seres humanos deveriam se relacionar entre si? Qual é nossa visão da relação entre indivíduo e Estado? O que é bom para nós, e por quê?   

Qualquer retrato abrangente de uma sociedade ideal deve começar pela identificação desses princípios, e a partir disto desenvolver o caso liberal. Temos uma alma faminta, uma fome espiritual, queremos sentir e acreditar que a vida tem significado. É por isto que precisamos entender do que estamos falando, muito mais do que simples transações de mercado. Estamos falando da propriedade de um indivíduo sobre sua própria vida. A batalha pela propriedade de nós mesmos é uma batalha sagrada, uma batalha espiritual, e envolve muito mais do que considerações econômicas.

Sem a dimensão moral e espiritual podemos ganhar o debate prático no curto prazo, mas os estatistas sempre reivindicarão a superioridade moral (apesar do mal que resulta de seus programas e do contínuo fracasso em alcançar seus alegados objetivos).

Não imagino qualquer batalha de maior valor no mundo de hoje que a batalha por uma sociedade verdadeiramente livre. Precisamos refletir sobre todos os aspectos que precisam ser defendidos, discutidos, explicados, encorajados e suportados; e, com base em nossos próprios interesses e áreas de competência, escolhamos a área em que podemos fazer a maior contribuição.

Marx, Freud, e a liberdade

Minha visão é que os aspectos filosóficos e morais e, sobretudo, os aspectos psicológicos, são a base de tudo. Darei um exemplo final do aspecto psicológico: quando as pessoas pensam na desintegração e deterioração de uma sociedade semi-livre como a nossa, atribuem corretamente a Marx uma influência muito negativa no processo.  É menos provável que reconheçam a relevância de um homem de minha própria profissão, Sigmund Freud.  

O quê Freud poderia ter a ver com o Estado beneficente? Minha resposta é: muito. Foram Freud e seus seguidores os responsáveis pela introdução da doutrina do determinismo psicológico, de acordo com a qual todos nós somos manipulados por forças sobre as quais não temos controle, que a liberdade é uma ilusão e que, no final das contas, não somos responsáveis por nada. Se fizermos qualquer coisa boa, não merecemos nenhum crédito. Se fizermos qualquer coisa ruim, não merecemos nenhuma reprimenda. Estamos desamparados, sujeitos a forças superiores, sejam nossos instintos, nosso ambiente ou forças sobrenaturais.

Freud, qualquer que fossem suas intenções, é o pai da escola “não tenho nada a ver com isso” (talvez parte do crédito deve que ser atribuído ao Behaviorismo, a outra escola principal de psicologia nos Estados Unidos, que propõe sua própria versão igualmente inflexível de determinismo). O resultado inevitável da aceitação do determinismo, da convicção de que ninguém é responsável por qualquer coisa, é o tipo de lamentação, troca de acusações e abdicação de responsabilidade que assistimos com frequência hoje. Qualquer defensor da liberdade ou da civilização tem que desafiar a doutrina do determinismo psicológico, e tem que ter capacidade para discutir racionalmente e de forma persuasiva o princípio do livre-arbítrio e da liberdade psicológica, que são o suporte da doutrina da auto-responsabilidade.  

Meu livro Taking Responsability mostra a relação entre o livre arbítrio e responsabilidade pessoal, como também explora o significado e aplicações da autorresponsabilidade, desde o mais íntimo e pessoal até o social e político.

Há muito ainda a ser feito: prover a base filosófica que possibilite o entendimento de que a batalha pela sociedade livre não é apenas uma batalha pelos mercados.

Na verdade, trata-se da batalha pela propriedade da própria vida.

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Traduzido por Luis Gutierrez.

Revisado por Matheus Pacini

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