“Cântico” e a importância do ego

Em meio a um contexto de disseminação dos conceitos do coletivismo, devido, principalmente, à conjuntura alemã nazista, a autora Ayn Rand, de origem judaico-russa, escreveu o romance Cântico para retratar de forma simples uma crítica ao momento histórico, econômico e social, somado a uma reflexão filosófica bastante complexa, o eu.

O livro apresenta conceitos linguísticos e narrativos não convencionais, uma vez que tira o leitor da zona de conforto ao eliminar o pronome “Eu” no enredo. Dado que todas as noções de individualidade foram completamente suprimidas na obra, os personagens desconhecem pronomes pessoais singulares, todos se tratam entre si na primeira e terceira pessoa do plural. O conceito de coletivo e a predominância desse modo de pensar e agir é tão eminente em Cântico que a abolição da expressão verbal do “Eu” gera uma interpretação dolorosa de que o coletivismo, além de instaurando no Estado, já estava no espírito/alma dos indivíduos que viviam naquele contexto. Como exemplo, na obra, o Palácio do Conselho Mundial que regia a sociedade tinha um lema de que tudo existente no mundo é um “Grandioso Nós”.

O principal personagem tem o nome de Igualdade 7-2521, assim como todos os outros personagens que são nomeados com um substantivo seguido por números, diferenciando os indivíduos muito provavelmente por sua “ordem de chegada” ao mundo ou por sua função (similar aos campos de concentração). Este jovem ingênuo e, ao mesmo tempo, curioso para descobrir a origem de tudo, foi designado pelo Estado para ser “Varredor de rua”, profissão esta determinada pelos membros do Conselho de Vocações. Portanto, o destino dos trabalhadores ficava submetido às necessidades do todo, ou seja, onde o indivíduo se encaixa melhor em prol ao coletivo. Logo no início da obra, observamos, de forma clara, o cerceamento da liberdade pelas autoridades, o que levaria ao controle completo destes sobre os indivíduos: isso evitaria rebeliões, confrontos, brigas pelo poder, entre outras desavenças.

Mesmo respeitando as regras e as imposições do Estado, Igualdade 7-2521  também se sentia culpado por ser observador, pensar fora da caixa, ter curiosidade pelo  desconhecido, por ter sentimentos do eu superior, do ego. A inquietação do personagem fica mais evidente quando este encontra um esconderijo com seus amigos de trabalho. Nesse lugar, ele pode pensar sobre os diversos aspectos da existência, explorar a natureza, sentir emoções que jamais seriam permitidas no mundo da obra. O pensamento e as descobertas eram crimes severos, uma vez que poderiam levar à dissonância do “pensamento único”, do modelo centralizado. Em Cântico, a coletividade aparenta ser harmônica e ideal para um homem prosperar, mas na realidade, não passa de uma sociedade estagnada.

Além dos pecados do conhecimento/exploração, o relacionamento romântico é mais um dos pontos proibidos. Em um de seus dias de trabalho, o herói cruza com uma camponesa e se apaixona por ela (a Excelente, assim denominada pelo personagem). Ele não entende o que está sentindo, deixando que suas emoções se sobressaiam, o que dá início a uma transformação interna. Em uma análise mais profunda, percebemos que, após o encontro dos dois amantes, a coragem e a busca pela vontade de viver são claramente trazidas à tona, momento em que o indivíduo age de acordo com suas vontades, explorando os mais diversos sentimentos que a liberdade pode proporcionar.

Certo dia, Igualdade 7 -2521 perde a hora em seu esconderijo e, quando volta para sua atividade, é pego pelos guardas da cidade. Este é punido e torturado para que revelasse o lugar onde estava, mas ele resiste e foge de sua prisão. Ao fugir, o personagem vai para “Floresta Desconhecida” que, como próprio nome diz, era um local pouco ou nada explorado, no qual não se tinham conhecimento sobre o que ali havia. Ao chegar neste lugar desconhecido, o herói teve seu primeiro contato mais profundo com sua individualidade e, assim, iniciou um processo de autoconhecimento. Como exemplo: poder abrir os olhos pela manhã e levantar quando se sentir confortável, caçar o próprio alimento, ter seus próprios pensamentos e explorar em todos os âmbitos o seu eu. Neste interim, sua amada, Excelente, impactada também pela coragem que o sentimento de amor lhe propôs, vai em busca de Igualdade 7-2521 na Floresta Desconhecida. Ambos chegam à conclusão de que deveriam permanecer juntos. Assim, partem para lugares não explorados, sem rumo ou sabedoria do que iriam encontrar, para iniciar uma nova vida e fazer inúmeras descobertas pelo caminho que os fariam aprender, conhecer e entender o significado da palavra “Eu” e tudo aquilo que era atribuído à palavra no seu sentido mais subjetivo.

Cântico trata de questões relacionadas à não identidade, à não verbalização das emoções, ao não entendimento do conceito real de liberdade e dos indivíduos como seres únicos. O livro vai até as últimas consequências, a leitura gera interpretação do ambiente hostil que Hitler queria instalar, devido ao contexto histórico, onde a estatização de todas as empresas seria solução para o Estado (deixando claro conceito de Estado máximo). Podemos observar muita semelhança no contexto atual como o que acontece na Venezuela e Cuba, por exemplo, na qual os líderes de Estado, independentemente do regime político, instauram regras e leis de forma autoritária gerando consequências graves aos cidadãos. Não somente no âmbito econômico e social, mas também no aspecto intelectual/ moral: este talvez o mais relevante dos motivos, já que destrói valores, força interna, autoconhecimento, autenticidade, ou seja, algumas das características mais marcantes daqueles que são livres.

Ayn Rand, em suma, expõe em seu romance o poder do individualismo, enquanto critica o coletivismo, mostrando a sua consequência lógica. Ela deixa evidente sua visão de mundo através da trama com as descobertas individuais dos personagens, reforçando a importância do livre-arbítrio, dos avanços que a ciência, artes, filosofia e todas outras esferas de conhecimento obtêm com a individualidade, além de a capacidade de pensar por si só e criticar métodos e conceitos praticados. Isto pode ser bem definido por sua corrente filosófica, o Objetivismo que afirma que o homem possui contato com a realidade por meio dos sentidos, e que o a humanidade pode atingir a própria felicidade ou interesse racional por meio da razão e da liberdade.

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Revisado por Matheus Pacini.

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