AYN RAND E ALTRUÍSMO (PARTE 4)

Smith discute a noção de autossacrifício de Ayn Rand e o papel crucial que esse dever teve em sua teoria do altruísmo.

Em Conservatism: An Obituary (um artigo baseado em uma palestra feita na Universidade de Princeton em 1960), Ayn Rand disse:

“O altruísmo diz que o homem não tem o direito de existir para si próprio, que o serviço aos outros é a única justificativa moral de sua existência, e que o autossacrifício é o seu maior dever, virtude e valor moral. Capitalismo e altruísmo são incompatíveis, são opostos filosóficos e não podem coexistir no mesmo homem e na mesma sociedade.”

Afirmações similares se repetem nos muitos escritos de Rand, e é impossível entender completamente o seu significado sem entender sua noção de autossacrifício. Em uma longa e detalhada carta a John Hospers (29 de abril de 1961), Rand escreveu:

“Admirei a sua ação porque foi generosa. Generosidade não é um sacrifício—é um presente ou favor maior do que o amigo envolvido poderia racionalmente esperar. Mas se a sua ação tivesse sido motivada por um dever altruístico, eu não a teria admirado nem aprovado.”

Qual foi o ato de generosidade que Ayn Rand aprovou? Infelizmente, o volume publicado de Letters of Ayn Rand contém apenas a resposta de Rand de sua correspondência com Hospers — situação essa que desagradou Hospers: “Ayn não apreendeu corretamente uma questão que eu havia abordado, e seu resumo do que eu disse não refletiu o que eu realmente disse.”

Apesar de conhecermos apenas um lado desse desacordo, a carta de Rand a Hospers fornece uma excelente janela para a visão dela sobre altruísmo e autossacrifício, e como esses conceitos diferem de generosidade e benevolência.

Parece que Hospers, na época professor de filosofia na USC, havia (como Rand informa) “passado duas noites inteiras datilografando a tese de um aluno” porque achou que o aluno tinha sido “vítima de uma injustiça”, e Hospers “queria que ele obtivesse seu diploma”. Rand cita Hospers como segue: “acredite, foi um sacrifício, e minhas aulas sofreram um pouco, e eu também (fiquei sonolento por dias)”. Depois que Rand aprovou a ajuda dada por Hospers, ele ficou curioso quanto as suas razões. Ela não se opunha ao autossacrifício, afinal?

Como indicado na passagem supracitada, Rand respondeu fazendo uma distinção entre sacrifício e generosidade. Rand atribuiu a assistência “extraordinariamente generosa” de Hospers ao fato de que ele valorizava seu aluno, quem tinha sido vítima de uma “injustiça” anterior, e queria ajudá-lo a obter seu diploma. Para Hospers, esses eram valores pessoais, coisas que ele valorizava mais do que o “desconforto” causado pela falta de sono. Sua ação não foi um “sacrifício”, porque ele não desistiu de um valor maior em prol de um valor menor. (Como Rand escreveu em outro lugar, o sacrifício “é a renúncia de um valor maior em prol de um valor menor ou de nenhum valor”).

Suponha, Rand continuou, que as duas noites não dormidas tivessem causado uma recaída [de uma doença perigosa], ou que seu ensino tivesse sofrido “consideravelmente”, em vez de “um pouco”, como resultado: tais cenários se qualificariam como sacrifícios autênticos, porque Hospers teria arriscado sua própria saúde e felicidade para o bem de uma pessoa que não era verdadeiramente próxima a ele, e isso Rand não teria aprovado.

De acordo com Rand, os valores menores aos quais renunciamos em nossos esforços para alcançarmos objetivos que valorizamos mais não se qualificam como sacrifícios. Apenas se renunciamos a esses valores por um senso de dever podemos, de fato, falar sobre autossacrifício. Esta é a forma em que Rand coloca a questão em A Revolta de Atlas:

“Se uma mãe compra comida para seu filho que tem fome em vez de um chapéu para si própria, isso não é sacrifício: ela dá mais valor ao filho do que ao chapéu; porém isso é um sacrifício para o tipo de mãe que dá mais valor ao chapéu, que preferia ver o próprio filho morrer de fome, e só lhe dá comida por obrigação. Se um homem morrer lutando por sua própria liberdade, isso não é sacrifício: ele não está disposto a viver como escravo; porém isso é um sacrifício para o tipo de homem que está disposto a viver como escravo. Se um homem se recusa a vender suas convicções, isso não é um sacrifício, a menos que ele seja o tipo de homem que não tem convicções."

O exemplo de Rand de um chapéu e uma criança com fome gerou uma boa dose de controvérsias vigorosas em vários fóruns de internet. (Eu sei disso porque participei de longos debates nos últimos doze anos). Segundo críticos desse exemplo, é impossível renunciar um valor maior por um valor menor, porque todas ações são necessariamente motivadas pelo que valorizamos mais em um determinado momento. Assim, a mãe que escolhe comprar comida para seu filho, em vez de adquirir um chapéu para si, supostamente demonstra, por sua ação, que ela valoriza a criança mais do que o chapéu— logo, é incorreto falar sobre ela sacrificar um valor maior por um valor menor. Tal coisa é literalmente impossível.

Essa objeção ignora a ênfase de Rand em agir por senso de dever, o que ela considerava essencial para o altruísmo. Rand enfatizou diversas vezes essa característica de atos altruístas, inclusive em sua carta a John Hospers:

“Se, de fato, a sua ação tivesse sido um dever moral, o estudante teria um direito à ela; ele teria o direito de exigi-la de você, de lhe condenar moralmente caso você se recusasse a fazê-la, e de não lhe dever nenhum apreço, nenhuma gratidão caso a fizesse. Dever a uma das partes implica direito à outra; assim (segundo o altruísmo) você deve seus serviços ao aluno, mas ele não lhe deve nada em troca – afinal, apenas recebeu seu direito legítimo. Uma situação moral ou um relacionamento humano desse tipo não lhe causaria náuseas? A mim, sim. Ainda assim, tal situação exibiria o altruísmo puro, aplicado consistentemente. (Observe que esse é o procedimento usado na política, em grande escala: os homens são taxados para sustentar os necessitados, e ainda assim os necessitados não lhes devem nada em troca, nem mesmo gratidão ou respeito—nada além de insultos, denúncias e mais exigências).”

Rand obviamente entendia que ações são motivadas por julgamentos de valor—de fato, ela enfatizou esse fato diversas vezes—e que ações em particular são motivadas pelo que mais valorizamos num determinado momento. Mas esse significado psicológico (ou subjetivo) de “valor” não foi o que ela tinha em mente em suas muitas discussões sobre altruísmo e autossacrifício. Conforme Nathaniel Branden explicou em seu artigo Isn’t Everyone Selfish? (1962; republicado em A Virtude do Egoísmo):

“É uma banalidade psicológica—uma tautologia—que todo comportamento proposital é motivado. Mas igualar “comportamento motivado” a “comportamento egoísta” é deixar em branco a distinção entre um fato elementar da psicologia humana e o fenômeno da escolha ética. É evadir do problema central da ética, que é: pelo que o homem deve ser motivado?”

Branden ilustrou seu ponto de vista com o seguinte exemplo: suponha que um garoto escolha uma carreira usando “padrões racionais”, mas sua mãe não aprova sua decisão e o pressiona a buscar uma carreira com mais prestígio social. O garoto aceita o desejo da mãe por acreditar ter um “dever moral” [como filho] de priorizar a felicidade de sua mãe em detrimento da sua. Nesse caso, segundo Branden, seria “absurdo” dizer que nenhum autossacrifício aconteceu só porque o garoto valoriza subjetivamente a felicidade da mãe mais do que a dele. Dizer que o garoto agiu partindo de seu mais alto valor psicológico é verdadeiro, mas trivial. Essa observação banal não nos diz nada sobre o julgamento de valor particular que motivou a decisão do garoto.

Resumindo, é a natureza específica de um julgamento de valor que determinará se uma ação é de autointeresse ou de autossacrifício. De acordo com Rand, renunciar a certos valores em busca de outros valores é um aspecto inerente da ação propositada e não se qualifica como autossacrifício.

O conceito de dever é a linha que corre por todas as discussões de Rand sobre autossacrifício e altruísmo. O dever (o qual Rand, às vezes, distinguiu de obrigação moral) prevalece sobre considerações pessoais. O dever exige que sacrifiquemos nossa própria felicidade para o bem de outras pessoas ou para algum objetivo abstrato—como o bem comum, a sociedade, ou o estado. Essa é a noção de altruísmo contra a qual Rand lutou tão veementemente.

Rand reconheceu a possibilidade de defender o autossacrifício como um dever voluntário, isto é, sem que eles fossem impostos por leis coercivas. Mas ela era muito cética, no mínimo, quanto ao fato de que a distinção entre deveres voluntários e coercivos poderia ser mantida por algum período de tempo. O sistema político de uma sociedade, ela acreditava, refletirá as crenças morais predominantes daquela sociedade. Logo, para pregar o dever do autossacrifício, mesmo se tal dever é visto como voluntário, significa estabelecer a fundação moral para o coletivismo.

Conforme Rand indicou em uma das passagens supracitadas de sua carta a John Hospers, deveres normalmente vinculam direitos correspondentes, então, argumentar que temos um dever moral de sacrificar nossos próprios interesses em nome dos interesses das outras pessoas significa sustentar implicitamente que os outros têm um direito a tais sacrifícios. E a partir dessa posição, basta um pequeno e virtualmente inevitável passo para exigir que um governo faça cumprir esses “direitos”.

Assim, segundo Rand, o coletivismo político emerge da doutrina moral do altruísmo.

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Publicado originalmente em Cato Institute.

Traduzido por Felipe André.

Revisado por Matheus Pacini.

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