Smith discute uma das maiores objeções de Rand tanto ao altruísmo quanto à concepção tradicional de egoísmo.
Em meu primeiro ensaio, resumi algumas das principais ideias de Auguste Comte, quem criou a palavra “altruísmo” e defendeu a subordinação dos indivíduos à humanidade (“o Grande Ser”) como o ideal moral definitivo. Além disso, caracterizei a concepção de Rand do altruísmo como uma “imagem negativa” da de Comte.
O contraste entre Comte e Rand não poderia ser maior. Segundo Comte, por exemplo, a “humanidade é divisível primeiramente em Estados, então, em famílias, mas nunca em indivíduos”; e a “natureza emocional” do homem deveria ser “soberana” frente à sua razão. Diferenças fundamentais similares aparecem aos montes nos escritos de Comte e Rand—como vemos na afirmação de Comte de que a riqueza deveria ser mantida “sob controle” para o bem da humanidade, e que os “chefes industriais” deveriam ser vistos como os “representantes da Humanidade”, cujo propósito final é servir à humanidade como um todo, em vez de seus próprios interesses.
Embora duvide que Rand tenha lido Comte em detalhe, algumas de suas afirmações parecem ser respostas diretas às alegações dele. Considere essa passagem do discurso de Roark em A nascente:
“A civilização é o progresso em direção a uma sociedade de privacidade. A existência inteira de um selvagem é pública, governada pelas leis de sua tribo. A civilização é o processo de libertar os homens uns dos outros.”
Em contraste, Comte demandava a “constante subordinação da vida privada à vida pública”. De fato, uma importante função do “sacerdócio” dos cientistas sociais de Comte (apoiado pelo Estado, é claro) era investigar cada aspecto da vida privada dos indivíduos, expondo à condenação pública quaisquer manifestações de egoísmo. Como o principal dever moral de cada pessoa é servir aos interesses do Grande Ser da humanidade, qualquer traço de egoísmo deve ser erradicado. E isso, de acordo com Comte, exige que nos livremos da noção individualista de que as pessoas deveriam ter uma esfera privada de ação onde possam agir sem considerar o bem da humanidade. Em última análise, a privacidade é um refúgio para o egoísmo.
Comte, assim como Rand, via o altruísmo e o egoísmo como polos opostos. E concordavam em uma característica fundamental do altruísmo, a saber, que ela exige o autossacrifício como dever moral. Portanto, ambos entendiam que o altruísmo e a benevolência não são a mesma coisa. Comte (conforme ensaio anterior) reconheceu astutamente que ações benevolentes são compatíveis com o egoísmo. O altruísmo é um dever incondicional que deve ser observado em todos os casos, independentemente de nos sentirmos ou não benevolentes com relação aos outros em casos particulares.
A mera benevolência não é o bastante, segundo com Comte, porque a benevolência nos permite escolher quando ajudar os outros, e tais escolhas frequentemente irão depender de considerações egoístas. O altruísmo exige que subordinemos nosso autointeresse ao interesse dos outros, independentemente de como nos sentimos com respeito a eles e seus valores pessoais. Essas considerações pessoais não são permitidas na teoria do altruísmo de Comte.
Rand foi mais além, argumentando que a benevolência é de fato incompatível com o altruísmo. Conforme escreveu em “The Man-Haters” (uma coluna publicada no jornal Los Angeles Times em 1962):
“Muitas pessoas acreditam que altruísmo significa bondade, benevolência ou respeito pelos direitos dos outros. Todavia, significa justamente o oposto: ele ensina o autossacrifício, assim como o sacrifício dos outros, a qualquer “necessidade pública” não específica; considera o homem um animal sacrificial.”
A visão de Rand sobre benevolência (e assuntos correlatos, como caridade) vem sido persistente e notoriamente deturpada por seus críticos, logo, precisamos explorar sua posição, a qual está repleta de implicações políticas, em maior detalhe.
Os argumentos de Rand sobre a incompatibilidade do altruísmo e da benevolência estão enraizados em sua concepção de egoísmo, então, não há como entender o primeiro sem antes entendermos o último. Essa é uma tarefa intimidante, algo que não posso cobrir em detalhes nesta série. A teoria de Rand sobre o egoísmo, assim como a sua teoria sobre o altruísmo, é complexa e cheia de nuances.
Como exemplo do que quero dizer, considere o que Rand escreveu em uma carta (de 5 de Março de 1961) ao filósofo John Hospers. Após observar que o egoísmo é o “tema base” de A nascente e A revolta de Atlas, Rand continua:
“Os conceitos tradicionais de um “egoísta” são representados em A nascente por Peter Keating e Ellsworth Toohey. (Keating é o irracional, parasita, aproveitador de momento—Toohey é o “planejador maquiavélico” que deseja o poder). A diferença entre esses dois tipos e Roark é muito clara. O tema de A nascente é: demonstrar de que formas fundamentais Roark é um egoísta, enquanto Keating e Toohey são, na verdade, altruístas — e por que os conceitos tradicionais de egoísmo estão destruindo o mundo.”
Até mesmo fãs de longa data de Ayn Rand podem se surpreender ao saber que ela teve a intenção de tornar os personagens Keating e Toohey representantes dos conceitos tradicionais de egoísmo. Além disso, o que devemos concluir da afirmação de Rand de que o conceito tradicional de egoísmo é o responsável pela destruição do mundo, sendo que ela tipicamente colocava a culpa no altruísmo?
Críticos simplistas de Rand – e são inúmeros – provavelmente responderiam minha pergunta acusando Ayn Rand de inconsistência. É claro, esses são os mesmos críticos que não levam Rand a sério como filósofa e, portanto, recusam-se a investir o tempo e o esforço necessários para entender sua teoria do egoísmo, e como essa está intrinsecamente ligada à sua condenação tanto do altruísmo quanto do “conceito tradicional” de egoísmo. Boa parte da minha série sobre “Ayn Rand e Altruísmo” será dedicada à essa questão.
Começaremos nossa revisão da teoria do egoísmo de Rand com um pouco de trivia. Na introdução da edição de 25 anos de A nascente (1968), Rand, após dizer que desejava manter o texto sem alterações, chamou atenção para “um pequeno erro”.
“O erro é semântico: o uso da palavra “egotista” no discurso de Roark no tribunal, quando na verdade a palavra deveria ser “egoísta”. O erro foi causado por minha confiança em um dicionário que deu definições tão enganosas dessas duas palavras que fez “egotista” parecer mais próxima do significado que eu buscava (Dicionário Webster de uso diário, 1933).”
Embora a palavra “egotista” tenha permanecido nas edições posteriores de A nascente, mudanças já haviam sido feitas, sete anos antes, na reedição do discurso de Roark em For the New Intellectual (1961). Ali, em duas ocasiões, “egotista” foi silenciosamente alterado para “egoísta”; e em outro trecho (“The Nature of the Second-Hander”), “egotismo” foi alterado para “egoísmo”.
A razão para a insatisfação posterior de Rand com “egotista” deve ser aparente. (Sua aplicação anterior errada do termo sugere que ela ainda não havia dominado algumas nuances da língua inglesa). Quando chamamos alguém de egotista, normalmente queremos dizer que ele é vaidoso e prepotente, com um exagerado senso de sua própria importância. Isso não descreve Howard Roark e outros protagonistas da ficção de Rand. Pelo contrário, é precisamente o oposto dos traços de caráter que Rand desejava transmitir.
Na introdução de A virtude do egoísmo, Rand afirmou que o altruísmo confunde duas questões distintas, mais precisamente: “O que são valores?” e “Quem deveria ser o beneficiário dos valores?” Ela continuou:
“O altruísmo declara que qualquer ação tomada para o benefício dos outros é boa, e qualquer ação tomada em benefício próprio é má. Portanto, o beneficiário de uma ação é o único critério de valor moral…”
Rand rejeitou esse “critério de moralidade do beneficiário”. O beneficiário pretendido em uma ação não é “um critério de valor moral”, tampouco “uma primária moral”. Como Rand explicou na carta a John Hospers em 29 de abril de 1961:
“A visão ‘tradicional’ de egoísmo supõe que o padrão de valor pelo qual a pessoa julga o valor de uma ação não é um princípio, nem uma premissa específica, nem um conceito definido de “bom”, nem qualquer consideração objetiva, mas apenas o beneficiário de uma ação. Ela supõe que o beneficiário é uma primária ética e um padrão de valor moral: se uma ação, independentemente de sua natureza, tem a intenção de servir ou beneficiar aos outros—você é um altruísta (e, tradicionalmente, bom). Isso leva a todas as contradições perversas que discuto no discurso de Galt.”
Rand condenou a visão tradicional de egoísmo como “infundada, indevida e injustificável” porque foca unicamente na motivação, enquanto ignora questões mais fundamentais, como a natureza dos valores e por que o homem precisa de um código de valores em primeiro lugar.
“Certamente sustento que um egoísta é um homem que age para seu próprio interesse e que o homem deve agir em seu próprio interesse. Mas o conceito de “interesse próprio” (autointeresse) identifica apenas a motivação da pessoa, não a natureza dos valores que a pessoa deve escolher. A questão é, portanto, qual a natureza do interesse próprio (autointeresse) do homem?”
Portanto, entendemos por que Rand via o altruísmo e o conceito tradicional de egoísmo como dois lados da mesma moeda. Ambos tratam o beneficiário de uma ação como o padrão de valor moral, e isso está errado. Na abordagem de Rand ao egoísmo, o desejo de avançar o próprio interesse não torna uma ação moralmente boa, tampouco o desejo de ajudar os outros torna uma ação moralmente má. Essas são considerações secundárias que podem ser vistas de forma clara apenas depois que os verdadeiros problemas fundamentais da teoria ética tiverem sido respondidos.
Peter Keating era um egoísta tradicional, afinal, buscava avançar sua carreira por quaisquer meios necessários, e Ellsworth Toohey era um egoísta tradicional, afinal, buscava poder sobre os outros. Mas nenhum deles, como veremos, era um egoísta no sentido que Rand deu ao termo.
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Publicado originalmente em Cato Institute.
Traduzido por Felipe André.
Revisado por Matheus Pacini.
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