Smith inicia essa série que trata da crítica de Ayn Rand ao altruísmo com uma discussão das ideias de Auguste Comte, o homem que cunhou a palavra “altruísmo”.
Em 4 de julho de 1943, Ayn Rand escreveu a John C. Gall, um advogado conservador e fã de A Nascente:
“Muitos republicanos têm medo de reconhecer que o altruísmo é a maldição do mundo, e que, enquanto continuarmos gritando “serviço” e “autossacrifício” mais alto do que o próprio New Deal, nunca teremos chance. Em qualquer debate com coletivistas, é sempre a aceitação de que o altruísmo é um ideal inquestionável que nos leva à derrota. Eu escrevi A nascente para mostrar, em termos humanos, o que esse ideal, de fato, significa e como devemos nos posicionar se quisermos vencer. Se lograrmos tornar a palavra “altruísmo” um termo vergonhoso, o que, com efeito, já o é, ao invés do rótulo automático de virtude que as pessoas pensam que é— tiraremos os Tooheys de Washington algum dia.”
Embora os Tooheys ainda dominem a política americana, e a maioria dos americanos não considere “altruísmo” um termo vergonhoso, muito menos como a maldição do mundo, Ayn Rand convenceu muitas pessoas a questionar a sabedoria convencional de que o autossacrifício é uma virtude, especialmente quando imposto pelo poder de coerção do governo.
“Altruísmo”, de acordo com Rand, significa “pôr os outros acima de si mesmo, ou os interesses deles acima dos seus”. Essa explicação é consistente com a definição comum de “altruísmo” dos dicionários, como “relação altruísta ou devoção ao bem-estar dos outros”. Contudo, Rand afastou-se radicalmente da sabedoria convencional ao apontar o altruísmo como uma doutrina perniciosa, incompatível com os direitos individuais e uma sociedade livre. “Altruísmo”, declarou ela, “é incompatível com a liberdade, o capitalismo e os direitos individuais”. Em um de seus artigos posteriores (The Ayn Rand Letter, Nov.-Dec. de 1975), Rand escreveu:
“Após muita reflexão, concluí que o mal básico por trás dos fenômenos mais horríveis é o altruísmo. Bem, eu avisei. Eu já venho avisando desde We The Living, que foi publicado em 1936. Aqueles que ainda fingem que podem salvar a liberdade e os direitos individuais sem desafiar o altruísmo, estão fora de meu poder de persuasão (e, suspeito, fora de qualquer persuasão, ou seja, fora do campo das ideias).”
Segundo Rand, o altruísmo é a base moral do coletivismo e do estatismo; de fato, ela frequentemente se referia à ética, crença ou código “altruísta-coletivista” ou “altruísta-estatista”. Além disso, ela explorou a psicologia do altruísmo em detalhe tanto em seus escritos de ficção quanto de não ficção. Tais esforços proveram muito material para os críticos de Rand, alguns dos quais têm ridicularizado seus ataques ao altruísmo como delírios de uma egoísta fanática.
Explorarei vários aspectos da crítica de Rand ao altruísmo nas partes posteriores dessa série. No restante deste ensaio, desejo discutir alguns aspectos históricos da teoria do altruísmo, conforme apresentada por Augusto Comte (1798-1857), filósofo e sociologista francês.
Em seu livro For the New Intellectual, Rand notou corretamente que a palavra “altruísmo” foi cunhada por Auguste Comte, quem chamou sua filosofia geral de “Positivismo”, porque ter sido supostamente fundamentada no conhecimento positivo da ciência empírica, e não nas afirmações inverificáveis da religião e da filosofia.
O quanto Rand leu diretamente dos trabalhos de Comte? Eu não tenho a resposta, mas duas longas citações do livro Catecismo Positivista de Comte apareceram no “Horror File” da edição de agosto de 1971 do The Objectivist. (Esses trechos podem ter sido divulgados por Leonard Peikoff, amigo de Rand. O primeiro livro de Peikoff, The Ominous Parallels, discutiu Comte em mais detalhe do que Rand jamais o fez, e trechos de seu livro foram publicados em The Objectivist naquela época).
Parece improvável que Rand tenha lido os escritos detalhados e cansativos de Comte sobre sua sociedade altruísta ideal—como os quatro espessos volumes que abrangem o Sistema de Política Positiva. Mesmo assim, a análise de Rand sobre o altruísmo – incluindo suas afirmações sobre as implicações morais, sociais e políticas dele – é uma imagem negativa da defesa de Comte ao altruísmo. Assim, por mais que seus críticos repudiem os ataques de Rand ao altruísmo como injustificados, a análise de Rand sobre o altruísmo, conforme discutido e defendido pelo homem que originou o termo e o defendeu em mais detalhe do que qualquer outro filósofo, foi notavelmente correto.
Embora Comte fosse um agnóstico que repudiava todas religiões baseadas em um ser sobrenatural, ele desenvolveu sua própria “Religião da Humanidade” em rico detalhe—uma religião secular que T.H. Huxley caracterizou como “catolicismo menos cristianismo”. Com seus próprios santos, padres, rituais, catequese, templos e orações, a Religião da Humanidade de Comte foi concebida para promover o altruísmo, ou seja, persuadir pessoas a priorizar os interesses da humanidade como um todo, e não os seus próprios interesses egoístas. Por exemplo, na religião de Comte o propósito das orações (que deveriam ser feitas várias vezes ao dia) era evocar sentimentos altruístas e, assim, habituar as pessoas a servirem aos outros.
De acordo com Comte, “apenas o altruísta pode alcançar a vida em seu sentido mais profundo e verdadeiro”. Os “seres degradados” que desejam buscar a felicidade de qualquer forma “ficariam tentados a abandonar seu egoísmo brutal se realmente provassem apenas uma vez… os prazeres da devoção. Só então eles entenderiam que viver para os outros gera os únicos meios para desenvolver livremente a existência completa do homem”.
O altruísmo de Comte foi muito além da crença moral tradicional que devemos exercitar a benevolência e a caridade para com os outros seres humanos. Para Comte, o altruísmo era o dever absoluto dos homens de subordinar todos os interesses pessoais (menos alimentação e outras necessidades rudimentares para a sobrevivência física) aos interesses dos outros, e finalmente à “humanidade” como um todo. Nas palavras de Comte:
“O homem… como indivíduo não existe, exceto na mente muito abstrata dos metafísicos modernos. A existência, em seu sentido verdadeiro, só pode ser predicado da Humanidade.”
Considere a reação de Comte à Regra de Ouro (trate as pessoas como gostaria de ser tratado), a qual muitos filósofos haviam citado como exemplo do princípio da justiça. Isso não é o suficiente como guia para a interação social, argumentou Comte, porque introduz “um cálculo puramente pessoal” e é, portanto, inerentemente egoísta. Até mesmo o que Comte chamou de “a grande fórmula católica: ame o próximo como a ti mesmo” é “maculada pelo egoísmo” e é, portanto, inadequada. Deve-se amar o “próximo” mais do que a si mesmo.
Apenas a doutrina do altruísmo de Comte, segundo a qual devemos “viver para os outros” exclusivamente – novamente, com a “única limitação” de atividades básicas de sustento à vida, afinal, apenas os vivos podem viver para os outros – pode ser “a fórmula definitiva da moralidade humana”. “Viva para os outros” é o “lema” dos seres humanos em seu estágio de desenvolvimento moral mais elevado. É por isso que Comte condenou o suicídio; matar a si próprio, digamos, para escapar da dor intolerável, é um ato egoísta que elimina o serviço potencial para a humanidade: “Pois, nossa vida é menos do que até nossa sorte ou qualquer dos talentos à nossa disposição arbitrária, já que é mais valiosa para a Humanidade, da qual a recebemos.” Afinal, não pode haver autossacrifício sem alguém para se sacrificar!
De acordo com Comte, o amor, e não o desejo de ganho pessoal, deveria ser “a única fonte de cooperação voluntária”. Essa máxima ilustra a crença de Comte de que “a lei fundamental” da sociedade deveria ser a “constante supremacia do sentimento (emoção) sobre o pensamento (razão) e a ação”. Humanos são motivados por seus desejos, e apenas uma sociedade cujos membros são verdadeira e unicamente motivados pelo sentimento altruísta do amor podem esperar atingir a “unidade” de que uma boa sociedade necessita. Em essência, portanto, o “problema que o homem precisa resolver [é] a subordinação [do] egoísmo para o altruísmo”.
O serviço altruísta à humanidade, a qual Comte frequentemente chamava de “o Grande Ser”, é nosso maior dever e a fonte definitiva de nossa felicidade. A “gratificação mais elevada” que podemos atingir—nosso “bem soberano” – advém de nosso “ministério para o Grande Ser”. O “reino da Humanidade é um reino de amor”.
Ao afirmar que a felicidade é consequência do exercício de nossos sentimentos altruístas, Comte pode ser acusado de introduzir um elemento egoísta em seu esquema altruísta. E ele esclarece a questão: embora o altruísmo seja a única fonte possível da verdadeira felicidade, a felicidade pode ou não resultar de atos altruístas. Em nenhum caso, todavia, a felicidade pessoal deveria ser a razão, o motivo para atos altruístas. Se “obtemos” felicidade ou não através do serviço à humanidade é irrelevante. Comportarmo-nos altruisticamente porque queremos ser felizes é manchar o altruísmo com um motivo egoísta; é degradar nosso dever de servir à humanidade ao nível de um desejo egoísta para felicidade pessoal.
Comte entendeu que a sua teoria do altruísmo era incompatível com qualquer noção de direitos e individualismo, ambos os quais ele frequentemente associava com tendências “anárquicas” a desobedecer autoridades. Nossas obrigações para com os outros – passadas, presentes, e futuras – são tão amplas que jamais poderemos cumpri-las totalmente, logo, nunca teremos tempo para exercer nossos próprios direitos.
“O Positivismo não admite nada além dos deveres de todos para todos, pois seu persistente ponto de vista social não pode tolerar a noção de direitos, baseada no individualismo. Os seres humanos nascem carregados com obrigações de todos os tipos para com nossos antecessores, nossos sucessores e nossos contemporâneos. Essas só crescem ou se acumulam antes que possamos prestar qualquer serviço. Sobre qual fundamento humano poderia, então, apoiar-se a ideia de direito, posto que implica alguma eficiência anterior? Qualquer que seja nosso esforço, a vida mais bem-empregada nunca nos permitirá retribuir nem uma ínfima parte do que recebemos. E, ainda assim, seria apenas após uma retribuição completa que estaríamos justamente autorizados a pedir reciprocidade pelos novos serviços. Todos os direitos humanos são tão absurdos quanto são imorais.”
Os detalhes da sociedade altruísta ideal de Comte – como um governo controlado por industrialistas, com três banqueiros à sua frente, e um “sacerdócio” científico de sociologistas (Comte cunhou também a palavra “sociologia”), que zela pelas necessidades intelectuais e emocionais da sociedade – são dignos de um excêntrico de primeira. Mesmo muitos admiradores de Comte, como J.S. Mill, não tinham estômago para esse aspecto de suas ideias, preferindo elogiar Comte por seus escritos sobre filosofia e história da ciência (e progresso intelectual, em geral).
Não obstante, Comte insistiu que sua teoria do altruísmo era o coroamento de suas teorias sociológicas, e que a aplicação moral delas na sociedade (a qual ele apelidou de “sociocracia”) tinha precedência sobre o mero conhecimento. Tendo passado por dois estágios – o material e o intelectual – a humanidade havia atingido o terceiro e último estágio do desenvolvimento social – o estágio moral, em que o altruísmo iria e deveria triunfar sobre os impulsos anárquicos do egoísmo individualista. Apenas assim, com os humanos aprendendo a subordinar seus impulsos e desejos egoístas às necessidades do Grande Ser, surgiria uma ordem social duradoura e equitativa.
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Publicado originalmente em Cato Institute.
Revisado por Matheus Pacini.
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