As influências conhecidas (e possíveis) de Satoshi Nakamoto – Parte 1 – moedas digitais emitidas por entidades privadas

Satoshi Nakamoto ainda é um personagem obscuro. Embora pouco se saiba sobre suas influências e motivações para criar o bitcoin, essa série de dois artigos busca explorar influências tecnológicas, filosóficas e econômicas conhecidas e possíveis em sua criação. A parte 1, que você está lendo agora, constrói uma linha do tempo das várias moedas digitais emitidas por entidades privadas antes do white paper sobre o Bitcoin em 2008 e seu lançamento oficial em 2009 – todas que, provavelmente, influenciaram Nakamoto de alguma forma (e algumas que, de fato, o influenciaram). A parte 2, em contraste, explorará as influências filosóficas e econômicas.

Note que esse artigo ignora a possibilidade de que duas influências de Nakamoto (Nick Szabo e Hal Finney) sejam os indivíduos por trás do pseudônimo Satoshi Nakamoto. Esse artigo não tenta repetir o esforço para descobrir a verdadeira identidade de Nakamoto.

Ecash:

Em 1983, o criptógrafo David Chaum publicou um artigo que detalhava como um sistema de moeda digital poderia funcionar usando assinaturas cegas para pagamentos irrastreáveis. Ele as descreveu como “um tipo fundamentalmente novo de criptografia”, propondo fazer pagamentos irrastreáveis ao impedir que intermediários tivessem acesso ao tempo ou valores da transação. Segundo ele, essas informações podiam “revelar muito sobre a localização, as relações e o estilo de vida” do indivíduo.

A ideia de Chaum por fim foi lançada em 1989 na forma de uma moeda eletrônica (chamada ‘ecash’) fornecida pela companhia DigiCash. Essa criptomoeda funcionava em um software que rodava no próprio computador do usuário (e, informalmente, era até utilizada por bancos tradicionais). Com ela, Chaum buscava concretizar o ideal de não rastreabilidade com que sonhava desde a década de 1980. No entanto, a Digicash faliu em 1998 e foi vendida. Chaum atribuiu o fracasso da companhia ao seu lançamento prematuro, antes do surgimento do comércio eletrônico.

No white paper do bitcoin, Nakamoto destacou que as assinaturas digitais (que David Chaum propôs anteriormente) “constituíam parte da solução”, mas propôs uma forma de realizar pagamentos entre pessoas (peer to peer), sem depender de intermediários confiáveis. No entanto, as “assinaturas digitais” de Nakamoto eram diferentes das “assinaturas cegas” de Chaum (que poderiam ser usadas para ocultar o tempo e os valores das transações). Na verdade, o bitcoin de Nakamoto seria apenas “pseudoanônimo”: o tempo e valores da transação ficariam visíveis para quem conhecesse o endereço da carteira através de um explorador blockchain como o blockchain.com[1]

E-gold:

Em 1996, uma companhia chamada Gold & Silver Reserve (G&SR) permitia que seus usuários criassem uma conta com uma moeda chamada ‘e-gold’, lastreada por ouro sob custódia da G&SR. Embora lastreada por um ativo tangível (uma vantagem potencial do e-gold em relação ao bitcoin, se ignorássemos o risco de contraparte), o modelo e-gold dependia de um intermediário (G&SR) – algo não requerido pelo bitcoin. Além disso, o modelo ‘e-gold’ nunca pretendeu alcançar a não rastreabilidade sonhada por Chaum, conforme afirmava o blog da companhia: “toda transação possui um registro permanente que inclui não apenas dados de identificação, mas também dados transacionais totalmente rastreáveis. Cada conta e suas transações são totalmente rastreáveis e identificáveis. A ‘e-gold’ não é, nunca foi, nem nunca será anônima.” No final, a G&SR enfrentou problemas com o governo federal dos Estados Unidos, que a acusou de ser usada para atividades ilegais por seus usuários. O juiz optou por uma sentença mais branda, argumentando que qualquer atividade ilegal tinha sido não intencional. Enquanto escrevo esse artigo, a companhia e seus proprietários parecem seguir com problemas judiciais.

PayPal:

Em 1999, o PayPal foi lançado pela Confinity. O PayPal começou com a ideia de transferir dinheiro eletronicamente usando um dispositivo chamado PalmPilot com tecnologia infravermelha. No final, o que vingou e garantiu seu sucesso foi a ideia de conseguir enviar dinheiro para um endereço de e-mail. É interessante notar que, nos primeiros dias do bitcoin, endereços de IP rodando full nodes estavam associados a endereços de carteiras: ou seja, os usuários podiam enviar bitcoins para endereços de IP. (Ou, de forma mais precisa, o software do usuário podia se comunicar com o endereço de IP da parte receptora, revelando o endereço da carteira para o qual o bitcoin seria enviado). Embora seja uma especulação, existe a possibilidade dessa funcionalidade do bitcoin possa ter sido inspirada pelo PayPal.

Embora o PayPal opere indiretamente com o sistema bancário tradicional (e, de fato, tenha se tornado um banco quando se fundiu ao X.com, o banco digital de Elon Musk), parece haver uma visão comum entre Peter Thiel (fundador do PayPal) e Satoshi Nakamoto. Thiel sempre declarou sua admiração pelo bitcoin.

“The God Protocols” e o ‘bit gold’ de Nick Szabo:

Em 1999, Nick Szabo publicou um artigo chamado “The God Protocols” que descrevia os problemas com o uso de intermediários tradicionais para realizar e registrar detalhes de transações. Ele propôs uma alternativa, que batizou de “protocolo matematicamente confiável”, que poderia ser usada para estabelecer confiança – mesmo com intermediários não confiáveis. Embora o conceito de “The God Protocols” não fosse uma moeda, poderia guiar o desenvolvimento de moedas. Szabo também menciona criar uma “planilha” global, o que, para quem conhece o ledger distribuído do bitcoin, soa muito familiar.

Em fevereiro de 2009 (um mês após o lançamento do bitcoin), Nakamoto introduziu a moeda em um fórum on-line. Em vez de usar o “protocolo matematicamente confiável” de Szabo, Nakamoto adotou a “prova criptográfica”. Em vez de usar a “‘planilha global’ de Szabo que cobre toda a internet”, Nakamoto se referiu ao bitcoin como “totalmente descentralizado, sem servidor central ou intermediários confiáveis.”

Em 2005, Szabo publicou um texto em que descreveu uma criptomoeda ideal, chamada ‘bit gold’, que operava com um protocolo “prova de trabalho” (PoW, em inglês). O ‘bit gold’ de Szabo foi considerado um “precursor direto da arquitetura Bitcoin” e, segundo o próprio Szabo, era uma variação da “prova de trabalho reusável” (RPoW, em inglês) de Hal Finney, um protótipo de moeda digital.

Prova de trabalho reusável (RPoW):

Em 2004, o criptógrafo Hal Finney fez um convite aos assinantes de uma lista de e-mail a testar sua “prova de trabalho reusável” (RPoW, em inglês), um protótipo de moeda digital. A prova de trabalho (que o bitcoin também usa) é um protocolo usado para impedir certos tipos de comportamento indesejável (tais como ataques de negação de serviço (DoS) ou envio de spams) ao exigir que um computador requerente demonstre que um “trabalho” foi feito – usando poder computacional. Isso ocorre, por exemplo, no processo de “mineração” dos bitcoins. Como o próprio Nakamoto explicou no white paper do bitcoin em 2008: “A rede registra a data e hora das transações através de um sistema de carimbo de tempo, transformando-as em uma cadeia contínua de prova de trabalho baseada em um hash, formando um registro que não pode ser modificado sem que toda a prova de trabalho seja refeita.”

Note que Hal Finney foi o primeiro receptor de uma transação bitcoin – 10 bitcoins do próprio Nakamoto.

Dólares e euros da Liberty Reserve:

Em 2006, surge outro modelo de moeda digital centralizada – dessa vez, na Costa Rica. O serviço permitia aos usuários comprar Liberty Reserve Dollars (LRD) ou Liberty Reserve Euros (LRE) com dólares americanos ou euros. O serviço permitia que os usuários se registrassem apenas com seu nome, e-mail e data de nascimento. A Liberty Reserve lucrava ao cobrar uma pequena taxa por transação. A companhia ficou aberta até 2013, quando se tornou alvo dos procuradores dos Estados Unidos, que usaram o Ato Patriota para acusar a companhia, seu proprietário e funcionários pelo crime de lavagem de dinheiro.

QQ Coin:

Em 2005, a Tencent (desenvolvedora do WeChat em China) lançou a QQ Coin, permitindo aos usuários adquirir jogos e outros serviços on-line. As QQ Coins eram compradas a uma taxa indexada à moeda chinesa yuan. Contudo, a QQ Coin passou a ser usada na transferência de valores entre pessoas. Isso chamou a atenção do People’s Bank of China (o banco central da China), que afirmou que a moeda poderia ser “usada para lavagem de dinheiro e outros crimes”. Mesmo assim, ela segue no mercado.

Obviamente, o modelo QQ Coin é centralizado – muito diferente do modelo descentralizado do bitcoin. Não se sabe se a QQ Coin influenciou Nakamoto de alguma forma, mas vale a pena incluí-la aqui pois serviu como uma prova de conceito de uma moeda privada, antes do lançamento do bitcoin em janeiro de 2009.

Resumo:

Pelo histórico detalhado acima, sabemos que Nakamoto foi influenciado de alguma forma (mesmo que indiretamente) por David Chaum (assinaturas digitais, ênfase na privacidade), embora o bitcoin seja uma moeda P2P e não depende de intermediários e bancos tradicionais como o ‘ecash’ de Chaum. O ‘e-gold’ pode não ter sido uma grande influência; na verdade, ele era lastreado no ouro e usava um intermediário confiável; o valor do bitcoin não deriva do “lastro” em ativos tangíveis. A ideia do PayPal de enviar dinheiro para um endereço de e-mail pode ter inspirado a funcionalidade (agora extinta) de enviar dinheiro para um endereço IP (que, por vezes, estava vinculado a um endereço de carteira). Os “God Protocols” de Szabo podem ter inspirado a ideia de ledger distribuído de Nakamoto. E, por fim, o “bit gold” de Szabo e a prova de trabalho reusável (RPoW) provavelmente influenciaram a forma como Nakamoto construiu a funcionalidade de prova de trabalho (PoW) do bitcoin. Liberty Reserve e QQ Coin – se é que influenciaram Nakamoto de alguma forma – provavelmente lhe recordaram que uma moeda centralizada, emitida privadamente, pode ser fechada caso as autoridades governamentais decidam fazê-lo (embora a QQ Coin da Tencent tenha sobrevivido a aceitar os controles do governo chinês).

Esse artigo é a Parte 1 da série. Leia a parte 2, As influências conhecidas (e possíveis) de Satoshi Nakamoto – origens econômicas e filosóficas, clicando aqui.

[1] Embora Chaum possa ter inspirado o Bitcoin de alguma forma, Chaum ainda argumenta que um sistema de pagamentos com verdadeira privacidade só seria alcançado “desvinculando o endereço da rede física do pagador da transação, e da desvinculação das transações de outras transações.”

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Publicado originalmente em Dasset.

Revisado por Matheus Pacini.

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