As influências conhecidas (e possíveis) de Satoshi Nakamoto – Parte 2 – origens filosóficas e econômicas

Neste artigo, exploramos as influências econômicas e filosóficas conhecidas (e possíveis) de Satoshi Nakamoto: o pseudônimo do obscuro fundador do bitcoin. Essa é a Parte II de um artigo sobre as influências de Satoshi Nakamoto. Leia aqui a Parte 1, que explora as influências tecnológicas de Nakamoto.

As influências de Satoshi Nakamoto – em suas próprias palavras:

Dois meses antes do lançamento oficial do bitcoin, Nakamoto compartilhou em uma lista de e-mails que a criptomoeda que ele estava prestes a lançar seria “muito popular entre os libertários.”[1]

Em janeiro de 2009, Nakamoto lançou a versão 0.1 do bitcoin, contendo uma mensagem criptografada no seu chamado “bloco gênesis”.

The Times, 3 de janeiro de 2009. Chanceler prestes a lançar o segundo resgate dos bancos.”[2]

O texto se refere a um artigo no The Times – um jornal no Reino Unido.[3] O conteúdo do artigo nos dá uma pista sobre o que motivou Nakamoto a criar o bitcoin: certamente, um forte desprezo por resgates, mas também, talvez, pelos bancos centrais, pela moeda governamental de curso forçado e pelos empréstimos do sistema de reserva fracionária[4]. Lembre que o bitcoin foi lançado no início da crise financeira global, quando o governo dos Estados Unidos já tinha injetado bilhões em impostos em bancos falidos e fabricantes de automóveis (socializando as perdas). Um mês depois do lançamento do bitcoin, Nakamoto divulgou a nova criptomoeda em um fórum da Internet, destacando por que discordava do sistema monetário tradicional:

O problema tradicional da moeda convencional é toda a confiança necessária para fazê-la funcionar. Devemos confiar que o banco central não desvalorizará a moeda, mas a história das moedas governamentais é repleta de quebras dessa confiança. Devemos confiar que os bancos manterão nosso dinheiro, transferindo-o eletronicamente, porém eles o emprestam gerando bolhas de crédito, mantendo uma pequena fração dele como reserva. Devemos confiar a nossa privacidade a eles, confiar que não permitirão que ladrões de identidade roubem nossas contas. Seus grandes custos de operação inviabilizam micropagamentos.

Ayn Rand

Em 1992, Timothy May, um criptoanarquista e membro-fundador do movimento ciberpunk (ao qual a existência do bitcoin pode ser atribuída), publicou um artigo chamado “Libertaria in Cyberspace”. Nele, ele argumentava que o ciberespaço seria um local mais adequado para uma sociedade libertária que qualquer lugar físico pois, para “fechar” o ciberespaço, era necessário proibir a comunicação de computador a computador.

Em uma lista de e-mail do ciberpunk no início dos anos 1990, May escreveu que:

“Ayn Rand foi uma das principais motivadoras da criptoanarquia. O que ela queria criar com tecnologia material (espelhos no Vale de Galt) é mais fácil criar com tecnologia matemática.”

Em 2015, Nick Szabo palestrou [5] em uma conferência em Londres, citando Ayn Rand e FA Hayek como as inspirações dos primeiros ciberpunks. Szabo referenciou o Vale de Galt – um lugar imaginário do romance ficcional de Rand, A revolta de Atlas, em que “você poderia formar sua própria comunidade independente, declarando sua independência de instituições corruptas.” Szabo argumentou que o objetivo de May com a encriptação era criar um “Vale de Galt no ciberespaço” – um lugar com moeda privada e formas não violentas de proteger a propriedade e garantir contratos.

David Friedman

Em 1973, foi publicada a primeira edição do livro The Machinery of Freedom de David Friedman (hoje está na 3ª edição). O livro explicava como uma sociedade anarcocapitalista poderia funcionar, com base em sistemas legais de várias sociedades em diferentes épocas da história, além de articular como as tecnologias poderiam substituir várias funções do governo no futuro. Esse livro também influenciou o movimento criptoanarquista em diversas ocasiões nas listas de e-mail dos ciberpunks que May administrava.

Mas além do livro influente de Friedman sobre anarcocapitalismo, ele já escrevia sobre moedas digitais anônimas desde 1996 (13 anos antes do lançamento do Bitcoin) e dedicou um capítulo ao tema em seu livro Future Imperfect, publicado em 2008.

E, por fim, em resposta a um e-mail que lhe enviei, Friedman mencionou que foi provavelmente responsável por influenciar seu pai, Milton Friedman, (o economista Prêmio Nobel), que descreveu em uma entrevista em 1990 como o “ecash” poderia funcionar na internet.”[6]

Carl Menger

Em 2002, Nick Szabo, com quem Nakamoto tinha contato, publicou um artigo chamado “Shelling Out: The Origins of Money”. Esse artigo faz referência a Carl Menger, o fundador da Escola Austríaca, e expande a explicação de Menger sobre como a moeda pode surgir de um sistema de escambo, sem precisar da sanção do Estado. É certamente plausível que Nakamoto tenha conhecido a teoria de Menger sobre a origem do dinheiro – através da obra de Szabo – ou antes.

Ludwig von Mises:

Mises escreveu muito sobre a importância de uma moeda estável e argumentou em The Theory of Money and Credit que “a excelência do padrão-ouro é vista no fato de que determina o poder de compra da unidade monetária independentemente das políticas de governos e partidos políticos.”[7]

Contudo, em um sistema bancário livre (sem a presença de um banco central), Mises acreditava que os graus de reserva fracionária “na prática, estariam próximos de uma moeda 100% lastreada em ouro ou prata.”[8] Em seu livro Ação humana, Mises declarou que um “cartel de bancos comerciais” não poderia manter um conluio “em prol de uma expansão ilimitada de sua emissão de moeda fiduciária”, devido à reputação negativa que desmotivaria os bancos individuais desse cartel a conspirar. E, no que tange à ação do banco central, Mises argumentou que “os governos interferiam precisamente porque sabiam que o sistema bancário livre limita a expansão do crédito”.[9] Sob um sistema com banco central, em contraste, ele acreditava que os bancos centrais criavam um ambiente perverso em que os bancos comerciais seriam irresponsáveis com seus graus de reservas fracionárias.

Contudo, é importante destacar que, apesar da restrição histórica exercida pelos bancos comercias sob um sistema bancário livre (na ausência de bancos centrais), Mises acreditava que mesmo uma pequena quantidade de empréstimo via reserva fracionária desencadearia uma série de eventos que levariam aos ciclos econômicos. Ele escreveu:

A noção de uma expansão creditícia “normal” é absurda. A emissão de moeda fiduciária adicional, qualquer que seja a quantidade, provoca sempre mudanças na estrutura de preços cuja descrição é o objeto de estudo da teoria do ciclo econômico. É claro que se a quantidade adicional não é grande, também não o serão os seus inevitáveis efeitos.[10]

Não encontrei evidência direta de que Nakamoto conhecia a obra de Mises antes de lançar o bitcoin (embora eu acredite que sim), mas, pelo menos, na metade de 2010 (um ano e meio depois do lançamento do bitcoin), Nakamoto participou de um fórum discutindo o teorema da regressão de Mises.

FA Hayek

Como citado anteriormente, Szabo identificou Hayek (junto com Rand) como uma das inspirações do movimento criptoanarquista. Temas comuns na obra de Hayek – como os conceitos de ordem espontânea social emergente e de processo decisório decentralizado – são fundamentais para entender o pensamento e o bitcoin de Nakamoto.[11]

A obra de Hayek mais relevante para a arquitetura bitcoin foi seu livro Denationalisation of Money. Ele argumentou que a noção de que a sanção do Estado era necessária para o funcionamento da moeda não passava de uma “superstição”, e que a moeda – como a lei, a linguagem e a moral – era uma instituição “não planejada”, que emergia espontaneamente “por um processo de evolução social”. De forma ainda mais forte, argumentou que a moeda de curso legal “é simplesmente um dispositivo legal para forçar as pessoas a aceitarem, em cumprimento de um contrato, algo que não desejavam quando o celebraram. Torna-se, então, em algumas circunstâncias, um fator que aumenta a incerteza das negociações”.[12]

Murray Rothbard:

Rothbard via os bancos de forma mais tradicional: como armazéns que guardavam ouro e prata para clientes, emitindo recibos de papel em troca de metais preciosos. Nesse sistema bancário tradicional, os indivíduos consideravam vantajoso trocar os recibos de papel por bens e serviços no mercado, afinal, não precisavam carregar metais preciosos por aí. A visão de Rothbard do sistema bancário tradicional como um armazém difere do sistema bancário livre com reserva fracionária (incluindo alguns austríacos), pois acreditava que a prática de emitir mais recibos de papel do que havia em ouro sob custódia fosse “fraude direta” e “falsificação”[13] – mesmo quando os bancos podem ser honestos com os consumidores sobre a prática e sobre o nível exato de reserva fracionária.

Não se sabe se, como Rothbard, Nakamoto considerava o sistema bancário com reserva fracionária (sem banco central e com bancos honestos com seus consumidores) como uma “fraude total”. Não importa: Rothbard foi um defensor influente e inflexível do livre mercado e da estabilidade da moeda, particularmente do padrão-ouro. Sem dúvida, foi um dos oponentes mais ferrenhos do banco central. Rothbard, junto com David Friedman, foram um dos principais teóricos do anarcocapitalismo (novamente, relevante para o movimento criptoanarquista).[14]

1871 – Carl Menger publica a versão em alemão de Principles of Economics, que descreve como a moeda deve ter surgido espontaneamente como um fenômeno de mercado em vez de um decreto de um líder político.

1912 – Ludwig von Mises publica a versão em alemão de The Theory of Money and Credit, uma das obras fundamentais da Escola Austríaca de Economia.

1957 – Ayn Rand publica A revolta de Atlas, o romance que posteriormente inspirou Timothy May a imaginar um “Vale do Galt no ciberespaço”.

1973 – David Friedman publica The Machinery of Freedom, que lançou as bases para uma sociedade anarcocapitalista.

1976 – F. A. Hayek argumenta em prol de moedas privadas em A desestatização do dinheiro.

1962 – Murray Rothbard publica seu tratado econômico, Man, Economy and State, que argumenta contra o banco central e o sistema bancário de reserva fracionária – algo que ele acreditava ser uma fraude.

Notas sobre as (prováveis) influências austríacas sobre Nakamoto:

Como Menger, Mises, Hayek e Rothbard eram economistas da EA, vale a pena mencionar que um relatório de 2012 sobre moedas virtuais pelo Banco Central Europeu (BCE) argumentou que “as bases teóricas do bitcoin podem ser encontradas na EA e sua crítica ao sistema atual de moeda fiduciária e às intervenções do governo e suas agências, que, em sua visão, geram ciclos econômicos e inflação massiva.”[15] O relatório também argumentou que os membros da comunidade bitcoin são “inspirados pelo antigo padrão-ouro”. O próprio Nakamoto tinha feito a conexão, argumentando no white paper do bitcoin que os mineradores da rede recebiam uma “adição estável de uma quantidade constante de novas moedas análoga aos mineradores de ouro gastando recursos para adicionar ouro à circulação.” A recompensa “estável” e “constante” (mesmo que decrescente) por garimpar blocos sugere que Nakamoto compreendia a inflação, estava ciente da habilidade histórica do ouro de manter um valor relativamente estável ao longo do tempo, e que a emissão decrescente e a oferta monetária fixa do bitcoin poderiam – de alguma forma – refletir uma versão digital do que o ouro tinha historicamente sido capaz de alcançar.

Referências:

  1. HAYEK, F. A. (1990). Denationalisation of Money: The Argument Refined, Westminster, The Institute of Economic Affairs.
  2.  MISES, L. VON (2007). Human Action: A Treatise on Economics, 4th rev. ed., Irvington-on-Hudson, Foundation for Economic Education.
  3. MISES, L. VON (1971). The Theory of Money and Credit, Irvington-on-Hudson, Foundation for Economic Education.
  4. ROTHBARD, M. N. (2009). Man, Economy, and State, 2nd ed., Auburn, Ludwig von Mises Institute.
  5. ROTHBARD, M. N. (2008). The Mystery of Banking, 2nd ed., Auburn, Ludwig von Mises Institute.

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Publicado originalmente em Dasset.

Revisado por Matheus Pacini.

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[1] Embora a filosofia do libertarianismo seja multifacetada, há temas comuns: liberdades individuais, proteção dos direitos de propriedade e mercados livres (incluindo a livre circulação de bens e pessoas). Para realizá-los, alguns libertários defendem um governo que serve o único propósito de proteger a vida, a liberdade, a propriedade (na perspectiva de Locke) e a busca da felicidade (na perspectiva de Jefferson). No entanto, outros libertários destacam que um governo não pode proteger direitos (através de um monopólio sobre o uso da força e tributação confiscatória) sem necessariamente violar os direitos supracitados e, assim, uma sociedade verdadeiramente livre seria aquela em que a proteção dos direitos poderia ser provida por indivíduos (ou companhias) no mercado. Para entender como a proteção dos direitos poderia ocorrer na ausência do governo, veja o livro de David Friedman, The Machinery of Freedom.

[2] Uma mensagem similar foi inserida no último bloco antes da última redução de recompensa por bloco (halving), que diz: “New York Times. 9 de abril de 2020. Com uma injeção de US$ 2,3 trilhões, o plano do FED supera muito o resgate de 2008.”

[3] O artigo pode ser lido aqui e aqui.

[4] Discutiremos depois a visão misesiana de que o sistema bancário de reserva fracionária, na ausência de um banco central, foi historicamente equilibrado em termos de expansão creditícia.

[5] Note que é bem plausível que Nakamoto tenha lido o ensaio “Shelling Out: The Origins of Money”, de Nick Szabo, que descreve a moeda utilizada pelos nativos americanos nos Estados Unidos antes da chegada dos colonizadores no Novo Mundo. Szabo argumenta contra a noção de que o dinheiro precisa ser sancionado por um Estado-nação. A obra de Szabo sobre as origens do dinheiro se sobrepõe à obra de Carl Menger, que cobri noutro texto.

[6] “Ecash” se refere aqui às moedas eletrônicas em geral, não à moeda digital que usava o nome Ecash, que discutimos na Parte 1 dessa série de artigos.

[7] Mises (1971), p. 416.

[8] Rothbard (2008), p. 278.

[9] Mises (2007), p. 447.

[10] Mises (2007), p. 442.

[11] Veja, por exemplo, o influente artigo “The Use of Knowledge in Society” de Hayek.

[12] Hayek (1990), pp. 37-40.

[13] Rothbard (2009), pp. 801-803.

[14] No entanto, note que Murray Rothbard não foi mencionado na lista de e-mails de Timothy May como David Friedman e Ayn Rand foram.

[15] Note que o relatório do BCE incorretamente considerou todos os economistas austríacos como necessariamente contrários ao sistema bancário de reserva fracionária. Isso não é verdade. É verdade que existe um paradigma contra a reserva fracionária na EA, principalmente da ala rothbardiana. Contudo, existe também um paradigma de sistema bancário livre, que defende permitir que os bancos façam empréstimos com reserva fracionária em um ambiente competitivo, sem a existência de um banco central. Dessa linha, podemos citar Lawrence White, George Selgin e Steven Horwitz.

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