A etica mística dos Novos Ateus

Após os atentados de inspiração religiosa cometidos no “11 de Setembro”, Sam Harris, Daniel Dennett, Richard Dawkins e Christopher Hitchens publicaram best-sellers em que condenam a crença religiosa como destrutiva à vida humana e desprovida de fundamentação na realidade. Sob a premissa de que a crença religiosa enquanto tal leva a atrocidades, os “Novos Ateus” – como esses quatro se tornaram conhecidos – acusam a religião de ser incorreta, emburrecedora, autoperpetuante e mortal. Como Sam Harris aponta: “Pelo fato de que cada nova geração de crianças aprende que as proposições religiosas não precisam ser justificadas da mesma maneira que as outras, a civilização ainda se encontra sitiada pelos exércitos da insensatez. Ainda hoje, nós nos assassinamos em razão de literatura antiga. Quem poderia imaginar que algo tão tragicamente inócuo seria possível”? [1]

O problema, dizem os Novos Ateus, não está meramente nos “exércitos da insensatez” – os militantes religiosos tais como os jihadistas islâmicos ou os extremistas religiosos. O maior problema, observa Harris, está no “conjunto mais amplo de estruturas culturais e intelectuais que criamos para a própria fé. Os religiosos moderados são, em grande parte, responsáveis pelos conflitos religiosos em nosso mundo, pois suas crenças fornecem o contexto em que a leitura literal das escrituras e a violência religiosa nunca podem ser adequadamente combatidas.”[2] Em outras palavras, os religiosos moderados acolhem e dão apoio moral aos religiosos militantes do mundo quando toleram as crenças que os motivam. Os Novos Ateus desejam que tais moderados despertem para o perigo inerente às suas religiões, que questionem suas crenças absolutas e que parem de apoiar a fé dos militantes ao conceder, nas palavras de Dawkins, respeito imerecido a ela.[3]

Em seu esforço para mudar a mente desses religiosos, os Novos Ateus enumeram os absurdos da doutrina religiosa, desde o nascimento de virgens, passando pela aliança com Deus até os haréns para os mártires; eles relembram as atrocidades produzidas pela crença religiosa, da Inquisição Espanhola à queima das “bruxas” de Salem, culminando no fatídico “11 de setembro”; e, por fim, clamam por um “futuro da razão” e pelo “fim da fé”.

Mas os Novos Ateus reconhecem que documentar as consequências históricas da crença religiosa é insuficiente para convencer as pessoas a abandonarem a religião. Muitas pessoas se agarram a ela porque a consideram a única fonte possível de uma moralidade objetiva. Elas acreditam, como expõe Dawkins, que “sem Deus não haveria padrão para decidir o que é bom”.[4] Em outras palavras, as pessoas aceitam a religião porque precisam de moralidade; porque precisam de princípios para guiar suas escolhas pessoais, suas relações sociais e suas instituições políticas e, explícita ou implicitamente, sabem disso. Até os religiosos serem convencidos de que existe uma fonte secular de moralidade objetiva, continuarão a se agarrar à religião por esse motivo se por nenhum outro. Como posto por Harris:

“O problema é que tão logo abandonamos nossa crença em um Deus criador das regras, a questão do por que uma determinada ação ser boa ou má torna-se matéria de debate. E uma afirmação como “assassinato é errado”, embora incontroversa na maioria dos círculos, nunca pareceu ancorada aos fatos deste mundo da mesma forma que as afirmações sobre planetas ou moléculas parecem ser. O problema, em termos filosóficos, tem sido o de caracterizar exatamente quais tipos de “fatos” podem ser apreendidos por nossas intuições morais – se, de fato, elas apreendem algo do tipo”.[5]

Deixando de lado por ora a noção de “intuições morais”, esta passagem aponta para uma verdade crucial: a fim de persuadir os religiosos a abandonarem suas crenças perigosas, deve-se fazer mais do que mostrar o que está errado com a religião – deve-se fornecer algo positivo para preencher o vazio moral. É preciso mostrar que (i) existe uma moralidade objetiva que se baseia, não na revelação ou na fé, mas em fatos observáveis e (ii) como a moralidade é derivada da razão a partir da evidência sensorial.

O que os Novos Ateus oferecem nesse aspecto? Que moralidade eles adotam, e como chegam aos seus princípios?

Analisemos primeiramente as ideias éticas de Christopher Hitchens.

“Acreditamos que uma vida ética pode ser vivida sem religião”, diz Hitchens de si mesmo e de seus companheiros ateístas nas páginas iniciais de God Is Not Great [Deus não é grande]. [6] Embora Hitchens esforce-se pouco para mostrar em que tal vida ética implica, pois se concentra, principalmente, em demonstrar os absurdos presentes na crença religiosa e em argumentar a favor de uma compreensão secular e científica, ao invés de sobrenatural, do universo), ele apresenta sua visão ética em declarações perdidas em seus livros e palestras. Por exemplo, em uma passagem de God Is Not Great, Hitchens postula que os homens são naturalmente egoístas e opina que, talvez, seríamos “mamíferos melhores” se não o fôssemos.[7] Solicitado, durante o programa Good Morning America da ABC, a responder àqueles que lhe instavam a considerar o “bem” produzido pela religião, incluindo a promoção da “caridade” e da “abnegação”, Hitchens saudou como morais aqueles “que vivem suas vidas efetivamente para os outros” – insistindo que os ateus também podiam fazer isso[8]. Essas e outras declarações similares mostram que Hitchens equipara a moralidade ao altruísmo, a noção de que ser ético consiste em viver para os outros.

Como Hitchens “sabe” que essa ideia é verdadeira? Que fatos da realidade ele cita para corroborar a sua posição? “[A] consciência”, diz Hitchens, “é inata” e “[t]odo mundo, a não ser os psicopatas”, tem a “sensação” de que isso é verdade.[9] Essa “consciência inata” é o que torna assassinato e roubo “abomináveis aos seres humanos sem maiores explicações”; é o que concede às crianças um “senso inato de justiça”; e é o que informa a cada um de nós do nosso “dever para com os outros”.[10] Em suma, de acordo com Hitchens, essa “consciência inata” nos habilita a simplesmente sabermos o que é o certo e o errado – e o altruísmo é o certo.

Obviamente, a noção de “consciência inata” não é original em Hitchens; a história da filosofia está repleta de apelos a um “senso moral”, “intuição moral” ou “lei moral interior”. Mas, embora muitos tenham apelado a isso, ninguém jamais foi capaz de ignorar o fato de que é observadamente falso que os seres humanos possuem um senso inato de certo e errado: muitas pessoas – e não apenas os psicopatas – fazem escolhas terrivelmente ruins que arruínam as suas próprias vidas, além da vida dos outros: e, pior, nem todas elas sabem que suas ações são moralmente erradas. Pelo contrário, muitas dessas acreditam que suas ações são moralmente justificadas. Entre os inúmeros contraexemplos que poderiam ser citados contra a alegação da existência de uma “consciência inata” está o fato de que os sequestradores do “11 de setembro” consideravam suas ações assassinas sublimes – e não abomináveis. Faltou àqueles assassinos – e às milhões de pessoas no Oriente Médio que os apoiaram – uma consciência inata? Ou suas consciências inatas abrigavam conteúdos diferentes daquelas dos americanos que reagiram com horror aos atos dos terroristas?

Ironicamente, a alegação de conhecimento inato – a alegação de simplesmente saber algo – é precisamente o que Hitchens e os outros Novos Ateus condenam quando condenam a fé. Aceitar uma ideia por fé significa aceitá-la quando não há evidência para sustentá-la. Alegar conhecimento inato equivale à mesma coisa: alegar “saber” algo separado/independentemente da evidência.

A alegação de “conhecimento inato”, bem como a de “conhecimento através da fé” é uma forma de misticismo, a defesa de uma forma de conhecimento não racional e não sensorial.

O fato é que ideias morais não são inatas; como todas as ideias, elas são criadas, escolhidas, aprendidas – podendo ser desenvolvidas ou aceitas racionalmente (via observação e lógica) ou irracionalmente (via meios não racionais). Ideias morais podem estar fundamentadas nos fatos ou serem baseadas em sentimentos/emoções; podem ser válidas ou inválidas. A questão é: como sabemos se uma crença moral específica é válida ou inválida? Qual é o padrão de validade moral?

Ao insistir que ideias morais são inatas, Hitchens se esquiva da vital tarefa de identificar um padrão moral – e, assim, abdica da possibilidade de fundamentar suas diatribes antirreligiosas: como a crença religiosa pode estar errada se as “consciências inatas” de bilhões de pessoas lhes dizem que ela está correta?

Gostaria que esses fossem todos os erros de Hitchens.

Como consequência de sua visão observadamente falsa de que a moralidade é inata, Hitchens avaliza a ideia de que o homem é mentalmente e, portanto, moralmente acometido de irracionalidade inata. Como ele aponta:

“Atrocidades religiosas ocorrem não porque somos maus, mas porque é um fato que a espécie humana é, por sua natureza, apenas parcialmente racional. A evolução preferiu que nossos lóbulos pré-frontais fossem muito pequenos, que nossas glândulas suprarrenais fossem muito grandes, e que nossos órgãos reprodutores fossem aparentemente projetados de modo confuso; uma receita que, sozinha ou combinada, pode levar a alguns transtornos e infelicidade”.[11]

E mais: Hitchens alega que o homem tem um “impulso religioso” ou “tendência ao culto” e que a fé religiosa existe e é inerradicável porque “ainda somos criaturas em evolução”. [12]

Essas crenças são, no mínimo, curiosas, vindo de um intelectual que busca mudar mentes com respeito à moralidade. Se as ideias éticas do homem fossem inatas, se a sua biologia o predispusesse à irracionalidade, se ele não tivesse escolha quanto a fazer o mal, então, todo campo da moralidade – o qual pressupõe que o homem realmente escolhe suas ações (tem livre-arbítrio) – não seria apenas inútil: seria impossível. Se o homem não pudesse escolher suas ações, então, ele não poderia ter um guia para escolher suas ações.

Embora Hitchens seja fluente em apontar os absurdos da religião, ele não apenas falha espetacularmente quando se trata de fornecer uma alternativa secular válida ao guiamento moral fornecido pela religião, como também endossa essencialmente a mesma ética praticada pelos religiosos (altruísmo), chegando a ela essencialmente pelo mesmo método (misticismo). Se isso é o melhor que os Novos Ateus têm a oferecer em seus esforços para afastar as pessoas da religião, não deveria lhes causar surpresa a total desconsideração dos religiosos para com suas tentativas.

À primeira vista, Sam Harris parece comprometido a descobrir um padrão moral secular válido: ele demonstra pouca consideração por pontos de vista seculares que carecem desse padrão. Harris caracteriza a estupidez do relativismo moral da seguinte forma: “Uma pessoa jamais está realmente certa daquilo em que acredita; ela só pode apontar para um grupo de pessoas que acreditam na mesma coisa. Um atentado suicida não é intrinsicamente errado, em sentido absoluto; ele apenas parece errado pela perspectiva bizantina da cultura Ocidental”. Harris também condena o pragmatismo pela falta de um padrão moral, notando que, desde o ponto de vista pragmático, “a noção de que nossas crenças podem ‘corresponder à realidade’ é absurda. Crenças são apenas ferramentas para criarmos o nosso caminho no mundo”. E Harris fala abertamente sobre a futilidade de apoiar qualquer uma dessas visões:

“Perder a convicção de que você pode realmente estar certo – sobre alguma coisa – parece uma receita para o caos do Fim dos Dias imaginado por Yeats: quando ‘os melhores não têm convicção, enquanto os piores estarão tomados pela certeza”. Eu acredito que relativismo e pragmatismo já fizeram sua parte para turvar o nosso pensamento numa miríade de assuntos, muitos dos quais têm uma relevância real para a sobrevivência da civilização”.[13]

Esquivando-se do relativismo e do pragmatismo, Harris subscreve ao “realismo ético”, a visão de que:

“[N]ossas afirmações a respeito do mundo serão ‘verdadeiras’ ou ‘falsas’ não meramente em virtude de como elas funcionam no entrelaço das nossas outras crenças, ou com referência a qualquer critério vinculado à cultura, mas pelo fato de que a realidade simplesmente é de uma certa maneira, independentemente dos nossos pensamentos… Ser um realista ético é acreditar que na Ética, assim como na Física, há verdades esperando para serem descobertas – e podemos estar certos ou errados em nossas crenças sobre elas”.[14]

Tais passagens das obras de Harris faz-nos ter esperança de que ele irá identificar e defender uma alternativa fundamentada na realidade, em oposição à ética da religião e ao relativismo. No entanto, Infelizmente, Harris, assim como Hitchens, “fundamenta” sua ética no conhecimento inato, o qual ele rotula de “intuição”.[15]

De acordo com Harris, há um ponto em que “não podemos mais subdividir nosso conhecimento de uma coisa”, quando devemos ancorar nossas ideias éticas e gerais à realidade por meio de “saltos irredutíveis” via “intuição”, caracterizada por ele como o “mais básico constituinte da nossa faculdade de compreensão”.[16]

Por que um “realista ético”, que afirma acreditar que verdades éticas estão esperando para serem descobertas na realidade, insiste que a ética deve ser fundamentada “intuitivamente”, via “saltos irredutíveis”, em vez de racionalmente, via observações diretas da realidade? A resposta é que Harris, a despeito da seu louvor a uma ética que pode ser descoberta, subscreve a visão neokantiana de que nossas percepções sensoriais são “estruturadas, editadas ou amplificadas pelo próprio sistema nervoso” de forma que “[n]enhum ser humano jamais experimentou um mundo objetivo, ou mesmo um mundo sequer.”[17]

Embora exista uma longa tradição filosófica que nega a validade dos sentidos, e que tal ceticismo permaneça em moda até hoje, a validade dos sentidos é autoevidente: dependemos dos nossos sentidos o dia todo, todos os dias, a fim de averiguar os fatos da realidade. Se os nossos sentidos fossem inválidos, não teríamos meios pelos quais determinar se é seguro atravessar a rua, se a nossa comida está cozida o suficiente ou se o telefone está tocando. Se os nossos sentidos fossem inválidos, não teríamos meios de identificar quaisquer fatos e não poderíamos funcionar ou viver.

O fato é que o “mais básico constituinte da nossa faculdade de compreensão” não é a “intuição”, mas a percepção sensorial – o contato básico de nossa mente com a realidade. E aqueles que tentam negar a validade dos sentidos precisam recorrer a essa mesma validade no processo de refutação. Por exemplo, para imprimir a sua rejeição dos sentidos, um autor cético deve recorrer ao seu sentido do tato para transmitir seus pensamentos através do seu teclado; ele deve recorrer à sua visão para ver o seu monitor e confirmar que as teclas que ele apertou formaram corretamente as palavras e frases pretendidas; ele deve contar com a visão do editor que lerá o seu manuscrito e contar com o seu próprio sentido da audição para atender às ligações telefônicas do editor; ele deve contar com a percepção sensorial de milhares de pessoas envolvidas na impressão, no marketing e na distribuição do seu tratado; e deve contar com a visão dos seus leitores para que eles obtenham o conhecimento da sua espantosa afirmação de que “nenhum ser humano jamais experimentou um mundo objetivo, ou mesmo um mundo sequer”.[18]

Por mais que esteja na moda negar a validade dos sentidos, fazê-lo não faz sentido, e nem é uma estratégia adequada para persuadir as pessoas, como Harris espera, de que as verdades éticas, assim como as verdades físicas, estão “esperando para serem descobertas“.

Ao negar a possibilidade de conhecermos a realidade, não surpreende que Harris ou Hitchens ceda à visão do “simplesmente saber” da ética. Ao contrário de Hitchens, todavia, Harris especifica um padrão moral.

Segundo ele, nossas “intuições” nos dizem que o padrão do bem é a “felicidade” e que o padrão do mal é o “sofrimento”. Isso significa que devemos promover a nossa própria vida buscando a felicidade e evitando o sofrimento? Não, diz Harris, tais buscas e prevenções não se qualificam como morais; um ato “torna-se assunto da ética somente quando a felicidade de outras pessoas também está em jogo” – no ponto onde temos “responsabilidades éticas” para com elas.[19] Isso significa que devemos recompensar aqueles que trazem valor para as nossas vidas? Não, diz Harris: “tratar os outros de forma ética” é deixar de lado os próprios interesses egoístas e “agir por preocupação com a felicidade e o sofrimento deles. É tratá-los, tal como Kant observou, como fins em si mesmos e não como meios para outros fins.”[20]

No relato de Harris, somos moralmente obrigados a promover a felicidade e a reduzir o sofrimento dos outros, seja qual for a consequência disso para a nossa própria vida.

“[É] uma coisa achar “errado” que pessoas estejam passando fome em outras partes do mundo; outra coisa é achar isso tão intolerável quanto seria se essas fossem nossas amigas. Não pode haver, de fato, justificativa ética para nós, afortunados, continuarmos com nossas vidas enquanto outras pessoas passam fome… Pode ser que uma visão clara do assunto leve-nos a trabalhar incansavelmente para aliviar a fome de todo e qualquer estranho como se fosse a nossa própria. Desta forma, como alguém poderia ir ao cinema e permanecer ético? Não poderia. Isso seria simplesmente tirar férias da própria ética”.[21]

Tal qual Hitchens, Harris defende o altruísmo, a noção de que ser moral consiste em viver para o bem dos outros, ou, mais precisamente, servir aos outros de maneira autossacrificial. E embora Harris reconheça que “há milhões de pessoas cuja fé as move a realizar atos extraordinários de autossacrifício em benefício dos outros”, ele afirma que “há razões muito melhores para o autossacrifício do que aquelas que a religião oferece”. [22]

A melhor “razão” para o autossacrifício, diz Harris, é que “o sentimento de amor social é uma das nossas maiores fontes de felicidade; e o amor implica que nos preocupemos com a felicidade dos outros”. Isso, ele afirma, “sugere uma clara ligação entre a ética [pelo que Harris quer dizer altruísmo] e emoções humanas positivas. O fato de querermos que as pessoas que amamos sejam felizes, e que assim nós sejamos felizes em retorno, é uma observação empírica”.[23]

A felicidade que Harris recomenda não é a felicidade que vem da conquista de valores do nosso próprio interesse e que promovem a nossa própria vida. Pelo contrário, é uma “felicidade superior”, que supostamente viria do sacrifício dos nossos próprios interesses em benefício dos interesses dos outros.[24]

E se uma pessoa, ao se autossacrificar para os outros, não consegue alcançar essa “felicidade superior”? Harris diz que ela deve retificar a situação meditando e se libertando da “ilusão do ego” que é a “amarra na qual todos [os seus] estados de sofrimento e insatisfação estão presos”.[25] E se essa pessoa ainda não conseguir compreender intuitivamente a essência sacrificial da ética? Então, diz Harris, ela pode ser excluída da “participação de qualquer discussão séria” sobre moralidade.[26]

Longe de demonstrar como as verdades éticas podem ser descobertas em referência aos fatos da realidade, Harris separa a investigação moral da realidade ao negar a validade dos sentidos, abraça o autossacrifício como a essência da moralidade, “fundamenta” esse princípio na “intuição” e, logo depois, tenta intimidar quem contesta a validade desse código ou método. Além disso, assim como Hitchens, Harris afirma que o homem é corrompido por intuições imorais que “se escondem dentro de toda mente humana” e que o predispõem à crença religiosa.[27] E, para não deixar aberta a possibilidade de que o homem pode agir contrariamente às suas intuições e predisposições, Harris nega a existência do livre-arbítrio.[28] É válido reiterar que, sem a capacidade de escolher, a moralidade não tem sentido, e livros como os de Harris são um exercício de futilidade. Novamente, se isso é o melhor que os Novos Ateus têm a oferecer no campo da moralidade, eles não devem ficar surpresos quando seus best-sellers não conseguem mudar muitas mentes.

Assim como Hitchens e Harris, tanto Daniel Dennett quanto Richard Dawkins acreditam que ser moral consiste em servir aos outros em autossacrifício. Dennett considera morais aqueles que estão “tornando o mundo melhor pelos seus esforços, inspirados pela convicção de que suas vidas não são para eles próprios desfrutarem da forma que escolherem” e dispostos a deixar suas “próprias preocupações mundanas encolherem-se ao seu tamanho adequado” (ênfase de Dennett) porque essas “não têm grande importância no grande esquema das coisas”.[29] Ele considera imorais aqueles que são “autoabsorvidos”, “autocentrados” e que “se indispõem ao sacrifício e às boas obras” em que deveriam se engajar.[30] Similarmente, Dawkins considera morais aqueles que são “altruístas”, e imorais aqueles que são “egoístas”. [31]

Dawkins, assim como Hitchens e Harris, afirma que o homem possui ideias morais inatas, mas ele propõe uma base evolucionária para elas, dizendo que “em tempos ancestrais quando vivíamos em grupos pequenos e estáveis como babuínos”, a seleção natural “programou impulsos altruístas em nossos cérebros”, os quais ele caracteriza como “erros darwinistas: erros abençoados e preciosos”.[32] Dawkins também sustenta que os seres humanos são predispostos à crença religiosa – mas, novamente, ele defende uma explicação evolucionária para a ideia e, no processo, faz referência a uma teoria de Dennett de que a nossa tendência irracional para a religião é “um subproduto de um mecanismo particular de irracionalidade embutido no cérebro: nossa tendência, que presumivelmente tem vantagens genéticas, de se apaixonar”.[33]

Claro, as mesmas objeções às posições de Hitchens e Harris sobre esses questões aplicam-se às de Dennett e Dawkins: se as visões de “certo” e “errado” do homem provêm de ideias inatas (geneticamente arraigadas ou não) ou se o homem é biologicamente predisposto à irracionalidade, então a moralidade, o reino dos valores escolhidos, simplesmente não se aplica ao homem. De acordo com Dennett e Dawkins, entretanto, a ética não é derivada meramente de ideias inatas; o consenso social também desempenha um papel.

Dennett diz que “nenhuma investigação factual” poderia responder “questões sobre valores finais” e que “nós não podemos fazer mais do que sentar e raciocinar juntos, um processo político de persuasão e educação mútuas que podemos tentar conduzir em boa fé”.[34] Em outras palavras, pelo fato de que não podemos derivar princípios morais dos fatos (a velha “dicotomia ser-dever ser”),[35] devemos examinar as visões éticas existentes e aceitar aquelas que são mais populares. Embora Dawkins concorde que a ética deve estar enraizada no consenso moral, ele diz que podemos dispensar o longo diálogo ético proposto por Dennett – porque esse consenso já existe.

Citando alguns dos horrores encontrados no Antigo e no Novo Testamento, Dawkins observa que hoje “nós não derivamos, como questão de fato, nossa moral das escrituras. Ou, se fazemos isso, selecionamos e escolhemos entre as escrituras as partes agradáveis ??e rejeitamos as desagradáveis.”[36] Ele nota que, se derivássemos nossa moral das escrituras, “nós guardaríamos o sábado e pensaríamos que é correto e justo executar alguém que não escolheu fazer o mesmo. Nós apedrejaríamos até a morte uma recém-noivada que não pudesse provar que era virgem, caso o seu marido se pronunciasse estar insatisfeito com ela. Nós executaríamos filhos desobedientes”.[37] Ao selecionarmos e escolhermos, diz ele, “devemos ter algum critério independente para decidir quais são as partes morais: um critério que, de onde quer que venha, não poderia vir da própria escritura e presumivelmente estaria disponível a todos nós, religiosos ou não”.[38]

O “critério independente” pelo qual Dawkins condena a história do dilúvio bíblico como maligna e pelo qual ele elogia Jesus como “sem dúvidas um dos grandes inovadores éticos da história”[39] é o que ele chama de “Zeitgeist moral”.

“[H]á um consenso sobre o que realmente fazemos quando consideramos o que é certo e o que é errado: um consenso que surpreendentemente prevalece de forma geral… Com notáveis ??exceções, tal como o Talibã afegão e o equivalente cristão americano, a maioria das pessoas segue o mesmo consenso amplo e liberal de princípios éticos. A maioria de nós não causa sofrimento desnecessário; acreditamos na liberdade de expressão e a protegemos mesmo se discordarmos com o que está sendo dito; pagamos nossos impostos; não traímos, não matamos, não cometemos incesto, não fazemos coisas com os outros que não gostaríamos que fizessem conosco”.[40]

Um atributo importante do “consenso misterioso” de Dawkins é que ele evolui com o tempo. Esse “Zeitgeist moral” mutável, então, explicaria por que as pessoas civilizadas hoje olham com horror para os numerosos exemplos de heróis bíblicos cometendo ou tolerando estupro e assassinato em massa, enquanto os autores da Bíblia – com suas mentalidades éticas antiquadas – não pensaram duas vezes em retratar tais eventos reais ou imaginários como magníficos.

Para ilustrar essa moralidade em evolução, Dawkins aponta para vários exemplos dos últimos duzentos anos. Por exemplo, enquanto há apenas algumas décadas era incontroverso no Ocidente sustentar que negros eram intelectualmente inferiores aos brancos e que as mulheres eram intelectualmente inferiores aos homens, tais visões parecem chocantes hoje. Atitudes em relação a baixas civis durante a guerra também mudaram; Dawkins aponta que “Donald Rumsfeld, que parece tão insensível e odioso nos dias de hoje, teria soado como alguém de coração mole se dissesse as mesmas coisas durante a Segunda Guerra Mundial”.[41]

Mas a teoria do Zeitgeist moral de Dawkins claramente não resolve o problema de como validar ideias morais por referência à realidade; ela apenas trata a opinião coletiva como se fosse um fato objetivo. Um consenso moral em mutação existe, e a maioria das pessoas absorve suas visões morais de forma acrítica por meio de osmose social, mas disso não segue que o consenso está correto ou que as pessoas devem adquirir suas visões morais dessa maneira. Embora Dawkins reconheça que podemos e devemos julgar o conteúdo da Bíblia por referência a um padrão moral independente, ele falha em reconhecer que podemos e devemos julgar o consenso social por referência a esse mesmo padrão.

Qualquer tentativa de fundamentar a moralidade no consenso social – seja a variedade “nós, democraticamente, concordamos com isso” de Dennett ou a variedade “misteriosamente mutável” de Dawkins – é irremediavelmente não objetiva. Ou o consenso está sempre certo, ou ele pode estar errado. Se estiver sempre certo, então, a moralidade é subjetiva, sendo igual à opinião popular, seja ela qual for naquele momento. Se assim for, não há princípios morais objetivos, apenas convenções sociais em constante mudança. Se assim for, os Novos Ateus não têm nenhuma razão em condenar a religiosidade desumana da Idade Média, pois seus crimes eram morais pelos padrões do “Zeitgeist” da época. Se o consenso pode estar errado, no entanto, deve haver um padrão objetivo em referência ao qual ele pode ser avaliado.

Apesar de todo o barulho, os Novos Ateus fracassam na identificação de tal padrão. Enquanto rebaixam a fé, não conseguem mostrar que a moralidade pode ser baseada na razão e, portanto, fundamentada na realidade. Eles não conseguem oferecer nada essencialmente diferente dos próprios religiosos que condenam: em vez disso, juntam-se a eles na crença de que o conhecimento moral pode ser obtido apenas por meios não racionais.

Por que esses supostos homens da razão se unem aos homens da fé, apelando ao misticismo como base da moralidade? A razão é simples: a moralidade que eles buscam defender, o altruísmo, não pode ser fundamentada na razão ou na realidade. Não há fatos que dão margem ao princípio de que uma pessoa deve se sacrificar em benefício das outras. Aqueles que sustentam que ser moral consiste em ser altruísta não têm alternativa a não ser fundamentar essa crença em alguma forma de misticismo – seja nas “ideias inatas”, na “intuição”, num “consenso misterioso” ou na fé religiosa. Os Novos Ateus podem ter omitido Deus de sua ética, mas sua ética permanece essencialmente a mesma das religiões que eles condenam: um chamado místico ao autossacrifício.

No mundo predominantemente religioso de hoje, é preciso ter coragem para criticar a fé e contestar a existência de Deus – e Hitchens, Harris, Dennett e Dawkins merecem crédito por isso. Não obstante, é preciso ainda mais coragem para desafiar a crença ainda mais difundida de que ser moral consiste no autossacrifício do serviço aos outros. Se os Novos Ateus falam sério sobre convencer as pessoas a abandonar a religião e a adotar uma visão de mundo secular racional, eles devem encontrar coragem para seguir a razão aonde quer que ela leve – mesmo se ela os leve, como de fato os levará, a contestar a validade do altruísmo.

Felizmente para aqueles que têm a coragem de seguir a razão e contestar a validade do altruísmo, Ayn Rand já descobriu, demonstrou e codificou uma moralidade baseada e derivada dos requerimentos demonstráveis ??da vida, da felicidade e da coexistência humana: o egoísmo racional. Ao começar pela pergunta “por que o homem precisa da ética/moral?”, ela descobriu que o homem, como um ser que deve fazer escolhas, precisa da moral como um guia para as ações que promovem a sua vida. Ela descobriu que a vida do homem é o padrão de valor moral – o que significa que as ações que progridem a vida do homem são morais, enquanto as que destroem a vida do homem são imorais.

Ao contrário da religião e do altruísmo secular, o egoísmo racional não implica nem permite qualquer demanda sobre a vida dos outros homens. Ele defende que cada homem deve agir de acordo com os seus próprios maiores interesses e que cada homem é o beneficiário adequado do seu próprio pensamento e da sua própria ação. E como o egoísmo reconhece que é certo para um homem pensar e agir em seu próprio interesse, ele também reconhece que é errado que os outros violem esse direito através da força física ou da fraude. O egoísmo racional não apenas serve como guia das ações de um indivíduo, mas também como base para uma sociedade civilizada que protege os direitos individuais.

Está além do objetivo deste artigo elaborar a ética do egoísmo racional. Mas aqueles que veem a necessidade gritante de uma moralidade racional (ou seja, não mística), servidora da vida (isto é, não sacrificial) – uma moralidade para viver e alcançar a felicidade na Terra – irão encontrá-la elaborada na obra de Ayn Rand.[42]

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Alan Germani é um dos editores de The Objective Standard

* The End of Faith: Religion, Terror, and the Future of Reason (2004) e Letter to a Christian Nation (2006) de Sam Harris, Breaking the Spell: Religion as a Natural Phenomenon (2006) de Daniel C. Dennett, The God Delusion (2006) de Richard Dawkins e God Is Not Great: How Religion Poisons Everything(2007) de Cristopher Hitchens.

Agradecimentos: Gostaria de agradecer a Craig Biddle por fornecer críticas valiosas e ideias que contribuíram muito para a melhoria deste artigo. Também gostaria de agradecer a Gena Gorlin por várias sugestões excelentes e a Greg Perkins por seus comentários atenciosos.

Notas finais

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Publicado originalmente em The Objective Standard.

Traduzido por Breno Barreto.

Revisado por Matheus Pacini.

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[1]  Sam Harris, The End of Faith: Religion, Terror, and the Future of Reason [A Morte da Fé: Religião, Terror e o Futuro da Razão] (Nova York: W. W. Norton & Company, Inc., 2004), p. 73

[2]  Idem, p. 45

[3]  Richard Dawkins, The God Delusion [Deus: Um Delírio] (Nova York: Houghton Mifflin Company, 2006), p. 20

[4]  Idem, p. 231, ênfase removida.

[5]  Harris, The End of Faith, p. 170

[6]  Christopher Hitchens, God Is Not Great: How Religion Poisons Everything [Deus Não é Grande: Como a Religião Envenena Tudo] (Nova York: Twelve, 2007), p. 6.

[7]  Idem, p. 214.

[8]  “Going Godless: Atheists Rise,” Good Morning America, November 14, 2007, http://abcnews.go.com/Video/playerIndex?id=3671279.

[9]  Hitchens, God Is Not Great, p. 256.

[10]  Idem, pp. 53, 213.

[11]  Idem, p. 8.

[12]  Idem, pp. 247, 12.

[13]  Harris, The End of Faith, pp. 178, 180.

[14]  Idem, pp. 180–1.

[15]  Citando macacos e chimpanzés que demonstram preocupação por outros da sua espécie, Harris afirma que é um “fato” que “nossas intuições éticas têm raízes na biologia” (Harris, The End of Faith, p. 172, e Harris, Letter to a Christian Nation [Carta Para Uma Nação Cristã] [Nova York: Vintage Books, 2008 (originalmente publicado em 2006)], pp. 21-22). Harris identifica uma semelhança entre o comportamento de alguns humanos e o comportamento de alguns animais; isso não é o mesmo que demonstrar que a existência de macacos simpáticos prova que há uma base biológica para ideias éticas “intuitivas”. Como Harris não gasta seu tempo provando esse “fato” ao fundamentar sua ética, os leitores não devem gastar seu tempo o considerando.

[16]  Harris, The End of Faith, p. 183.

[17]  Idem, p. 41.

[18]  Para uma discussão detalhada da validade dos sentidos, Leonard Peikoff, Objectivism: The Philosophy of Ayn Rand [Objetivismo: A Filosofia de Ayn Rand] (Nova York: Meridian, 1993), pp. 39-48.

[19]  Harris, The End of Faith, pp. 272, 170–1.

[20]  Idem, p. 186, ênfase adicionada.

[21]  Idem, p. 286.

[22]  Idem, p. 78.

[23]  Idem, p. 187.

[24]  Idem, pp. 283–4.

[25]  Idem, pp. 215, 218.

[26]  Idem, p. 187.

[27]  Idem, p. 226.

[28]  Idem, p. 173.

[29]  Daniel C. Dennett, Breaking the Spell: Religion as a Natural Phenomenon [Quebrando o Feitiço: A Religião Como Um Fenômeno Natural] (New York: Penguin Books, 2006), pp. 55, 303.

[30]  Idem, pp. 55, 305–6.

[31]  Dawkins, The God Delusion, pp. 219, 227.

[32]  Idem, p. 221.

[33]  Idem, pp. 172–90, 184.

[34]  Dennett, Breaking the Spell, p. 14.

[35]  Para mais informações sobre esse “problema”, Craig Biddle, Loving Life: The Morality of Self-Interest and the Facts that Support It [Amando a Vida: A Moralidade do Autointeresse e os Fatos que a Comprovam] (Richmond: Glen Allen Press, 2002), pp. 33–41.

[36]  Dawkins, The God Delusion, p. 243.

[37]  Idem, pp. 249–50.

[38]  Idem, p. 243.

[39]  Idem, p. 250. Para saber mais sobre a afinidade de Dawkins com o filho de Deus, consulte o artigo “Atheists for Jesus” [Ateus a Favor de Jesus] http://richarddawkins.net/article,20,Atheists-for-Jesus,Richard-Dawkins.

[40]  Idem, pp. 262–3.

[41]  Idem, pp. 265–8.

[42]  Aos interessados ??em estudar a ética de Ayn Rand, recomendo como excelentes pontos de partida seus ensaios “The Objectivist Ethics” [“A Ética Objetivista”] em The Virtue of Selfishness [A Virtude do Egoísmo] (New York: Signet, 1964) e “Causality Versus Duty” [“Causalidade vs Dever”] em Philosophy: Who Needs It [Filosofia: quem Precisa Dela] (New York: Signet, 1982); e Loving Life: The Morality of Self-Interest and the Facts that Support It [Amando a Vida: A Moralidade do Autointeresse e os Fatos que a Comprovam] de Craig Biddle. 

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