Há algo estranho na relação atual do Ocidente com a China. De um lado, vemos campos de concentração, expansionismo militar violento, e censura e perseguição política praticadas com uma competência poucas vezes vista na história da humanidade. De outro, o consenso de que todas as grandes economias ocidentais – em especial, o Brasil e os Estados Unidos – dependem da indústria e do investimento chineses para manter seus níveis atuais de produtividade.
Essa situação paradoxal não é nova, mas está se tornando cada vez mais extrema, e não há perspectivas de mudança. Antes restrita a atos sutis como a substituição, pela Marvel, de um monge tibetano por uma monja celta[1] em Doutor Estranho, a submissão de grandes empresas ocidentais aos caprichos do governo chinês tomou proporções quase surreais no último ano, após os protestos de Hong Kong. De um lado, a submissão passiva ilustrada pelos pedidos de desculpas da Dior por não incluir o Tibete em um mapa da China, e da NBA pela possibilidade de que um tuíte pessoal de um diretor em defesa da liberdade de expressão tivesse “ofendido o povo chinês”. De outro, a cumplicidade ativa da Blizzard, empresa de jogos que baniu um jogador profissional de Hong Kong por se posicionar politicamente contra o regime. Na melhor das hipóteses, a situação é curiosa; na pior, assustadora.
Afinal, qual é a origem do poder chinês sobre as empresas ocidentais? Quais são as consequências disso? O que esperar da China no futuro? Para responder a essas e outras perguntas, precisamos entender o que exatamente é a China – a sua história, os valores que balizam sua cultura, e o sistema político-econômico produzido por eles. Após elucidar o contexto chinês por meio de um resumo de sua história e dos princípios que balizam sua sociedade, falaremos do Ocidente, analisando como a natureza e as instituições das sociedades chinesa e americana se relacionam, bem como o histórico dessa relação. Trataremos da interação entre o sistema econômico ocidental – em especial, dos Estados Unidos – e o sistema econômico chinês, mostrando como o sucesso econômico da China não é uma mera consequência da sua grande população. Por fim, analisaremos as possíveis atitudes para com a China – o que está sendo feito pelos governantes no poder, o que é proposto pela oposição, e qual deveria ser o foco das discussões.
O que é a China?
É fácil acreditar que o totalitarismo chinês é fruto do sistema político comunista, afinal, há vasta informação sobre as atrocidades cometidas por regimes como a União Soviética e o Khmer Vermelho, e a relação negativa entre o Comunismo e os valores da liberdade. Como veremos, porém, essa crença está totalmente equivocada, e sua relação causal, invertida. A China sempre foi uma nação totalitária, em que o Estado está acima da lei, da família, do indivíduo, e de qualquer outra instituição, e é justamente por isso que o sistema comunista lá floresceu de forma tão avassaladora, enquanto já ruiu na maior parte do mundo.
Já no ano 1000 a.C., enquanto a Europa não passava de um amontoado de pequenas tribos e vilas primitivas, a sociedade chinesa se unificava[2] sob a dinastia Zhou, que instituiu a doutrina do mandato dos céus[3]. Na contramão do mundo ocidental, onde o poder político se baseava na tradição e em normas religiosas que limitavam o poder dos governantes, o mandato dos céus estabelecia que quem estava no poder tinha direito ao poder, não importando sua linhagem ou religião, até o momento em que fosse retirado do poder por outro grupo ou sofresse de crises internas. Por um lado, o mandato dos céus estabelecia a separação pioneira entre Estado e Igreja; por outro, lançava as bases de um sistema que rejeitava completamente a submissão do Estado à lei, e do poder político a qualquer forma de moral. Desde o ano 1000 a.C., na China, o poder se justifica pelo próprio poder.
Após 200 anos de estabilidade, em que o imperador Zhou minou progressivamente o poder de líderes locais ao estabelecer uma proto-burocracia móvel e sem laços de sangue no território que administrava, a dinastia entra em crise, passando por 500 anos de descentralização. A descentralização chinesa, porém, não foi estável como a norte-americana e, em menor escala, a europeia, envolvendo conflito militar constante entre centenas de pequenos estados, cujo anseio era retomar o estado de centralização totalitária previsto pela doutrina do mandato dos céus.
Esse período de guerras e descentralização, divido por historiadores entre o período da “Primavera e Outono” e o período dos “Estados em Guerra”, deu origem às grandes tradições filosóficas chinesas: Taoísmo, Confucionismo, Legalismo, e Mohismo. Com exceção do Taoísmo, que era essencialmente uma doutrina religiosa baseada em ideias sobrenaturais e que pouco influenciou a sociedade, todas as tradições filosóficas chinesas eram ideologias seculares e coletivistas, tal qual o Comunismo. Ao contrário da Europa e do Oriente Médio, onde a religião e as igrejas dominantes fatoravam na disputa política, Confucionismo, Legalismo e Mohismo eram essencialmente escolas de pensamento que tratavam de conceitos como “céu” como ideias metafísicas e princípios da natureza, e não entidades divinas reais, assemelhando-se mais à dialética histórica do que ao Deus cristão. O Estado era considerado não um resultado secundário da interação entre indivíduos, nem uma consequência dos desígnios divinos, mas sim uma necessidade metafísica em si mesmo[4].
As três escolas seculares de pensamento eram radicalmente coletivistas, considerando o indivíduo, não o ponto de partida da análise intelectual, que por sua vez dá origem a sistemas maiores, mas como uma parte incompleta de uma unidade fundamental maior, discordando apenas de qual seria essa unidade. Para o Confucionismo, o ponto de partida da análise filosófica era a família, da qual o indivíduo era apenas uma parte; para o Legalismo, era o governo central, do qual a família era apenas uma parte; o Mohismo, por outro lado, rejeitava a distinção família/governo, considerando-as facetas da sociedade. A ideia cristã de igualdade perante a Deus, bem como a noção grega de racionalidade individual, que deram origem ao individualismo moderno, sempre foram completamente estranhas à sociedade chinesa.
Após séculos de guerra, a China é novamente unificada pela breve dinastia Qin, que expande e profissionaliza a burocracia estatal, mas é tirada do poder pela dinastia Han depois de 20 anos. Adotando o Confucionismo como doutrina oficial do Estado, os Han assumem o poder em 202 a.C. e o mantém por quase 400 anos, utilizando essa base doutrinal para criar um sistema de concursos públicos, com a meta de substituir os laços familiares pela impessoalidade de uma burocracia central na definição de hierarquia social. Sem um conjunto de líderes locais (como seriam os senhores feudais), nem uma estrutura paralela de legitimidade (como seria a Igreja Católica), o governo central chinês se torna absoluto, e seu poder se expande nos séculos subsequentes.
Após a queda dos Han em 220 a.C, o poder político chinês não apenas se mantém centralizado, como se expande ainda mais com a implantação do do Juntian Zhidu (tradução livre, Sistema Igualitário de Terras) no período das Seis Dinastias, que extingue a hereditariedade da terra. Toda terra se torna propriedade exclusiva do governo chinês, o qual as divide em lotes, atribuindo temporariamente a posse e uso deles às famílias de uma região, subservientes à burocracia local. Quando o líder da família morre, a terra retorna ao governo chinês para ser novamente distribuída. Os burocratas locais, por sua vez, são rotineiramente transferidos para outras regiões, a fim de evitar o surgimento de líderes locais que possam desafiar a burocracia central.
Com a exceção de breves períodos transitórios[5] de instabilidade e descentralização política, entre a queda de uma dinastia e a ascensão de outra, a China se mantém uma burocracia centralizada e totalitária até os dias atuais. A partir da queda da dinastia Tang, no século X, o Juntian Zhidu é abandonado, e líderes locais ganham mais força. No entanto, a dependência da sociedade chinesa em relação a um governo centralizado continua tão forte que, até mesmo conquistadores estrangeiros como os mongóis no século XIII e os manchus no século XVII, precisaram abandonar suas formas tradicionais de governo e grandes partes de sua cultura para se manter no poder. A burocracia chinesa era tão complexa, e a sociedade chinesa tão dependente dela, que seus conquistadores tiveram que se tornar burocratas para garantir a conquista.
Os conquistadores Manchus, que se tornaram a dinastia Qing, dominaram a China até o início do século XX, quando os conflitos com o Reino Unido e o Japão desestabilizam o imperador, que, enquanto isso, estava tentando abolir grande parte da burocracia e adotar um regime político mais personalista. Como era de se esperar, o imperador é deposto, dando início a um período de instabilidade e descentralização, marcado pela guerra entre líderes locais, o Kuomintang de Chiang Kai-Shek (1887 – 1975), o Partido Comunista Chinês (PCC) de Mao Tsé-Tung (1893 – 1976), e os invasores japoneses. No início da década de 1950, o Japão havia sido derrotado na II Guerra Mundial, os líderes locais haviam sido subjugados, e a disputa entre o Kuomintang e o PCC, apesar de não terminar completamente, resulta na expulsão do primeiro para Taiwan, e na conquista do mandato dos céus pelos comunistas.
O comunismo chinês é decididamente diferente do comunismo soviético. Enquanto os soviéticos seguem à risca a teoria de Karl Marx (1818 – 1883), forçando uma industrialização para transformar o campesinato russo no proletariado revolucionário (considerado necessário ao socialismo), o comunismo chinês é basicamente uma evolução do sistema chinês clássico, que mantém uma classe camponesa[6]. O comunismo chinês, extremamente heterodoxo do ponto de vista da teoria marxista, busca retomar radicalmente dois princípios clássicos da política chinesa: o mandato dos céus se funde à teoria marxista para prover a justificativa ideal para um Estado extremamente totalitário (até para os padrões chineses); o Juntian Zhidu é readotado de forma ainda mais radical, com coletivização de terras e execução sumária de agricultores durante o “Grande Salto Adiante” – que resultou em 45 milhões de mortes – e instituição do Laogai, sistema de escravidão de “dissidentes políticos” que dura até os dias de hoje[7].
São justamente esses princípios hegemônicos na sociedade chinesa, que precedem a ideologia comunista em milênios, que tornam a China incompatível com a sociedade ocidental. Como veremos, é exatamente a adoção parcial desses mesmos valores pelos governos ocidentais que os tornam vulneráveis à intervenção chinesa.
O sintoma chinês da doença ocidental
A natureza hedionda do Estado chinês é óbvia não apenas para quem adota os valores objetivistas, mas para qualquer um que adote um código moral minimamente respeitável. A escravidão e o extermínio de dissidentes políticos, a supressão da liberdade de expressão e o expansionismo militar são condenáveis por qualquer código moral digno de respeito. No entanto, esses problemas, apesar de merecedores de repúdio, são problemas da China, afetando apenas populações sob domínio do Estado chinês. O problema explicitado neste artigo porém, é o crescimento perigoso da influência chinesa nas sociedades ocidentais – em especial, nos Estados Unidos, líder político e econômico do Ocidente.
Eventos recentes mostram como o mercado chinês, estritamente controlado pelo governo chinês, tornou-se fundamental para as economias ocidentais. Buscando um aliado contra a Rússia soviética, sucessivos presidentes norte-americanos buscaram se aproximar da China: Nixon, em 1972, buscando regularizar a situação diplomática entre as duas nações; Reagan, em 1982, com o mesmo propósito – ambos oferecendo, inclusive, um embargo econômico a Taiwan em troca da abertura gradual da China às exportações americanas. Em 2000, Bill Clinton assina o Ato das Relações China-EUA de 2000, normalizando o comércio entre as duas nações, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, proíbe a China de vender produtos nos Estados Unidos a um preço muito abaixo dos preços oferecidos pelos produtores locais.
As consequências são imediatamente visíveis. Com a admissão da China na Organização Mundial do Comércio, o mercado chinês , além de ter se tornado o maior importador de produtos brasileiros – em especial, soja, carne e ferro – com quase o dobro da importação dos EUA, em segundo lugar. Recentemente, Mark Kern, ativista defensor da propriedade intelectual e um dos maiores designers de videogames da atualidade, , a grande custo pessoal, falar sobre como o subsídio chinês à indústria de entretenimento tornou o mercado ocidental subserviente às decisões do governo chinês. Ainda em 2018, o mercado chinês superou o total somado de EUA e Canadá na compra de filmes americanos. Mas, se a economia chinesa tem como diferencial a mão de obra barata e a venda de commodities, como explicar esse poderio econômico? A explicação é a grande quantidade de consumidores, independentemente de seu poder de compra?
A resposta está na natureza dos sistemas econômicos chinês e ocidental – em especial, de seu sistema monetário e suas regulamentações econômicas. Como tratamos mais a fundo em um texto anterior, há uma diferença essencial entre o sistema monetário metalista, no qual a moeda é uma commodity que funciona como reserva de valor do indivíduo, independente de quaisquer autoridades políticas, e o sistema monetário chartalista, em que a moeda é um instrumento de contabilidade e política pública do Estado. O sistema chinês é, essencial e abertamente, chartalista – a moeda é um documento emitido pelo Estado, que define o seu valor de forma arbitrária. As grandes potências ocidentais – em especial, o Reino Unido e os Estados Unidos – foram tradicionalmente metalistas ao longo de sua história, mas passaram a adotar um chartalismo apologético e parcial a partir do início do século passado.
Em seu Anatomy of Compromise (A Anatomia da Concessão), Ayn Rand explica como “Em qualquer conflito entre dois homens (ou dois grupos) que compartilham dos mesmos princípios básicos, o mais consistente é que vence”. O sucesso econômico chinês em sua relação com o Ocidente deriva do fato de que adotamos os mesmos princípios na constituição de nosso sistema econômico, mas enquanto a China adota os adota abertamente, nós o fazemos de forma recalcitrante. Enquanto o mundo ocidental tenta balancear a liberdade e a servidão, através de altos impostos, excessivas regulamentações, controles parciais à liberdade de expressão, e um sistema monetário fraudulento, mas que visa manter a dívida pública e a inflação sob controle, a China adota a servidão por completo, se utilizando de trabalho escravo, cerceando por completo a dissidência política, e controlando por completo os preços e a emissão de moeda.
Em uma sociedade com sistema monetário livre, no qual a moeda é uma commodity que tem seu valor estabelecido pelo mercado, o valor de uma moeda fiat[8] como a chinesa seria intimamente ligada à informação disponível sobre o mercado chinês, e cada tentativa por parte do governo de expandir a base monetária teria como consequência a corrosão de seu valor e um declínio abrupto nas relações de crédito entre o país livre e a China. A lógica é relativamente simples: se o valor da moeda é definido pelas trocas voluntárias entre indivíduos que possuem uma commodity e o poder de compra esperado da moeda chinesa, a emissão indiscriminada de moeda pela China seria rapidamente percebida pelo mercado como uma fonte de insegurança e instabilidade, fazendo com que o valor da moeda caísse e o risco do crédito aumentasse. A competição entre uma moeda honesta e um instrumento legal de um país corrupto é impossível.
Desde a criação do Federal Reserve, o banco central dos EUA, e a abolição da moeda commodity, de cujas consequências tratamos mais a fundo nesse texto, o nosso sistema monetário segue a mesma lógica do sistema chinês: o indivíduo não tem mais o poder de estocar valor de forma independente do governo, que é responsável por definir o valor do dinheiro. Todavia, os valores ocidentais de liberdade e propriedade impedem, ainda que de forma imperfeita, que o governo emita moeda indiscriminadamente, sob pena de crises econômicas gravíssimas que resultam no abandono da moeda, em prol do uso de commodities, pela população[9]. O governo chinês, por outro lado, não tem problemas em exterminar quaisquer indivíduos que ousem rejeitar o uso da sua moeda no valor estabelecido pelo governo. Ao invés de uma moeda que flutua em relação ao dólar de acordo com forças de mercado, o governo chinês estabelece arbitrariamente uma paridade em relação ao dólar, que varia de acordo com os desígnios do próprio governo.
Além da questão monetária, que por si só já seria suficiente para levar ao estado atual, há também a relação de ambas as sociedades com a regulamentação econômica – em especial, no mercado de trabalho. Da praxeologia austríaca às análises de incentivos da escola de Chicago, a teoria econômica é bastante unânime no seu veredicto de que a produtividade de indivíduos livres é incomparavelmente maior que a produtividade de servos e escravos. Como os autores da Escola Austríaca demonstram magistralmente, porém, regulamentações sempre diminuem a produtividade e aumentam os custos da produção dos bens em um mercado.
O Brasil sempre foi uma economia estritamente regulada, e jamais seria capaz de competir com a China, mas após mais de um século de aumento das regulamentações, os produtores americanos se tornaram progressivamente menos capazes de competir com os chineses. A produtividade extrema resultante da liberdade americana vem sendo gradualmente erodida pela criação de órgãos reguladores, instituição de subsídios, e regulação trabalhista cada vez mais invasiva.
Por um lado, a “meia liberdade” da economia americana – a mais produtiva do mundo ocidental – já não é mais capaz de competir com os baixos custos da escravidão chinesa, e com as concessões econômicas que podem ser compradas de seu governo por empresas de grande porte. Por outro lado, o sistema monetário do mundo ocidental, baseado na dívida irredimível dos bancos centrais, esconde a insustentabilidade dos subsídios ilimitados por parte da China, que pode imprimir dinheiro de forma irrestrita, e torna a competição impossível. Mas uma vez que o problema tenha sido devidamente identificado, como podemos soluciona-lo?
O que é e o que deveria ser feito
O problema é claro: a adoção inconsistente dos mesmos princípios abjetos que a China adota de forma consistente – o coletivismo, o totalitarismo e o nacionalismo – que faz com que joguemos o mesmo jogo, mas de forma menos competente. Só existem duas possíveis soluções. Ou passamos a adotar de forma ainda mais consistente esses princípios, ou os rejeitamos por completo. Tanto a “direita” quanto a “esquerda”[10] política parecem, infelizmente, propor uma maior consistência no abandono da liberdade e da propriedade, ao invés da rejeição do coletivismo e do totalitarismo.
Com a perda do poder político no último ciclo eleitoral, tanto nos EUA como em boa parte da América Latina, as soluções da esquerda vem na forma de propostas, tanto de acadêmicos quanto de políticos. A mais consistente e inovadora dessas soluções, que é um bom exemplo da natureza das propostas da esquerda em geral, é a Teoria Monetária Moderna (da qual tratamos em um texto anterior). A teoria consiste em propor a adoção do mesmo sistema monetário da China, ou seja, um chartalismo completo e consistente, no qual o Estado tem total controle sobre a economia, tanto ao controlar o valor da moeda quanto ao ter fundos infinitos para subsidiar quaisquer setor considerado importante.
Os problemas com as soluções da esquerda são dois. O primeiro é o fato de que, se adotarmos os mesmos princípios que a China, nos tornaremos uma sociedade tão má quanto a chinesa. A economia não pode ser pensada como algo separado da sociedade como um todo, e como Gianluca Lorenzon demonstra competentemente em seu livro Ciclos Fatais, o controle do Estado sobre a economia leva, necessariamente, ao desenvolvimento de um regime político cada vez mais autoritário – e se nos tornarmos uma sociedade totalitária, pouco importa se falamos Português, Inglês ou Mandarim. O segundo problema é que, mesmo assumindo que seja possível se tornar autoritário apenas no campo econômico, continuaremos jogando o mesmo jogo dos chineses, com a diferença de sermos um novo jogador, enquanto a China tem milênios de experiência.
A direita, por outro lado, vem ganhando poder político, e podemos julgar, não apenas as suas ideias e teorias, mas as suas ações. Na contramão da esquerda, que quer se aproximar da China, a resposta da direita, exemplificada por Donald Trump, tem sido erguer um muro econômico através da famosa “guerra tarifária”. Uma guerra tarifária consiste em impor custos – seja através de impostos, cotas ou regulações – à importação de produtos chineses, impedindo assim que estes compitam com os produtos nacionais.
Assim como com as propostas da esquerda, os problemas da guerra tarifária são dois. O primeiro é que impedir a importação de produtos chineses, além de violar a liberdade econômica do indivíduo, é acabar justamente com o lado bom da relação com a China. Impedir a compra de produtos chineses justamente porque eles são baratos é diminuir ainda mais a produtividade das economias ocidentais, e ignorar a mão de obra barata chinesa é ignorar o problema das nossas excessivas regulamentações trabalhistas. O segundo é que barreiras tarifárias não impedem que o investimento chinês entre no país, e a dependência das empresas ocidentais desse investimento é justamente um dos pilares da sua submissão ao governo da China.
A única solução possível é cortar o mal pela raiz. Se o problema vem da adoção dos princípios de coletivismo e autoritarismo, a solução começa pelo abandono completo desses princípios, e uma retomada dos princípios de liberdade e propriedade. Isso significa, no âmbito econômico, desregulamentar a economia, não de forma apologética e pontual, mas de forma radical, ainda que gradual, explicitando que a razão pela qual a economia não deve ser regulada é moral, e não apenas pragmática. Em termos de sistema monetário, é necessário parar de discutir medidas paliativas como a independência do banco central e a reforma da previdência, e passar a discutir um retorno ao padrão-ouro, à cunhagem livre, e à flutuação do valor da moeda segundo as pressões de mercado[11]
No âmbito político e cultural, é necessário que paremos de tratar a China como uma nação “diferente”, com uma cultura distinta e um modelo político que “não podemos compreender por completo”. É necessário exercer pressão para que as nossas empresas e figuras públicas tratem a China pelo que ela é: um estado escravocrata e assassino. Precisamos ganhar a guerra cultural, e isso só é possível se explicitarmos precisamente os nossos valores, e os valores de nossos adversários, sem nos abster de julgamentos morais nem das consequências desses julgamentos morais: boicotes na compra de produtos, exclusão de órgãos e eventos internacionais, e até mesmo o conflito militar, quando absolutamente necessário.
Nesse momento, o leitor pode estar pensando: “tudo isso é lindo no papel, mas essas medidas radicais jamais serão postas em prática”. É verdade, mudanças radicais na forma pela qual uma sociedade se organiza não são impossíveis, mas são muito difíceis de se alcançar. O cerne da questão, porém, não é o quão difícil será nos tornarmos uma sociedade livre, mas qual a alternativa caso não o fizermos. A alternativa é uma só: abandonar por completo a nossa moral, e aprender Mandarim.
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Revisado por Matheus Pacini.
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[1] Aqueles que assistiram Doutor Estranho provavelmente se recordam do Ancião, personagem interpretada por Tilda Swinton, uma monja celta que assume o papel de mestre do protagonista. O que nem todos sabem é que, nos quadrinhos que servem de base para o filme, o Ancião na verdade é um monge tibetano. A alteração foi feita por medo de que a menção ao Tibete causasse a proibição do filme na China.
[2] O sistema político da dinastia Zhou se assemelhava ao sistema feudal europeu, na medida em que líderes locais relativamente independentes juravam lealdade e submissão ao rei. Para padrões atuais, esse é um sistema relativamente descentralizado mas, em comparação com as outras sociedades da época, que se organizavam em bandos ou tribos, o feudalismo Zhou era de um centralismo jamais visto.
[3] O mandato dos céus é uma crença semelhante ao “Direito Divino dos Reis” da Europa, na medida em que o poder do governante é percebido como fruto de princípios metafísicos. Entretanto, enquanto o direito divino dos reis vê o governante como alguém escolhido por Deus, que deve respeitar as leis divinas e não deve ter o seu poder questionado, o Mandato dos Céus enxerga a soberania como uma lei natural, o soberano como livre para fazer o que bem entender, desde que mantenha a prosperidade da nação, e a revolução política como um sinal de que o governante perdeu o seu mandato.
[4] As cinco entidades cosmológicas do Confucionismo, por exemplo, eram não só o Céu, a Terra, os Ancestrais e os Mestres (os mais velhos da família), mas também o Soberano. A existência de um governo central é elevada, na filosofia chinesa, ao mesmo patamar da existência dos princípios naturais da terra e dos céus.
[5] O maior desses períodos transitórios é conhecido como o a época das Cinco Dinastias e Dez Reinos, que durou apenas cerca de 50 anos.
[6] Em seus livros Sobre a Prática e Sobre a Contradição, Mao estabelece a sua própria interpretação da dialética histórica marxista, argumentando que a ausência de um proletariado na China não era um empecilho à revolução socialista, como acreditavam os marxistas ortodoxos. Enquanto Marx acreditava que apenas as desigualdades, a organização e a ideologia advindas da estrutura produtiva capitalista industrial poderiam gerar uma classe social com o potencial revolucionário, Mao defendia que o campesinato também poderia, se educado e instigado, ser convertido em uma classe revolucionária. Essa crença é possivelmente o pilar central do Maoísmo.
[7] A Laogai Research Foundation estima que entre 500.000 e 2 milhões de escravos são mantidos em mais de 1000 campos de trabalho forçado na China. Esses números são referentes apenas ao maior dos sistemas atuais de escravidão na china, e não inclui as diversas outras atrocidades do governo chinês, como os campos de reeducação para muçulmanos, a escravidão de dissidentes no Tibete, e o sistema de coleção de órgãos no sistema prisional comum.
[8] A Escola Austríaca de Economia tradicionalmente divide as moedas em três tipos. A moeda commodity é a moeda cujo valor tem sua origem no valor de mercado da commodity da qual a moeda é feita. A moeda fiduciária é aquela cujo valor tem sua origem em alguma forma de dívida, seja do governo ou de uma instituição privada. A moeda fiat, ou token, é aquela criada artificialmente por um governo, cujo valor advém da lei.
[9] Aqueles que buscam um exemplo desse abandono, precisam apenas olhar para as crises econômicas do Brasil nas década de 80 e 90, onde a instabilidade do dinheiro levou ao estoque em massa de bens. Em sua Theory of Interest and Prices in Paper Currency, Keith Weiner explora, de forma simples e competente, a forma pela qual a sociedade utiliza commodities para abandonar um sistema monetário em crise.
[10] “Esquerda” e “direita” não são critérios válidos para identificar e separar movimentos políticos. Os termos tem diversas definições distintas e contraditórias, e acabam por agrupar ideias fundamentalmente diferentes, como a defesa da liberdade econômica e a defesa da tradição cristã, ou a defesa da liberdade sexual e a oposição ao sistema capitalista. No contexto desse artigo, ambos os termos são utilizados em sua forma pejorativa, com “esquerda” se referindo àqueles que adotam o subjetivismo, o coletivismo e o relativismo moral, e “direita” àqueles que adotam o intrinscismo, o sobrenaturalismo e o nacionalismo.
[11] Antal Fekete, fundador da Nova Escola Austríaca de Economia, tem uma série de palestras magistrais sobre como mudar, de forma segura e eficiente, do nosso sistema de moeda fiduciária para um sistema metalista.
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