Viver com princípios claros traz felicidade?

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“3. Na sociedade de “Cântico”, as pessoas são ensinadas a viver de acordo com certos princípios relacionados ao que é bom e ruim, certo e errado. Você acha que aqueles que aderem a esses princípios são felizes ou infelizes? Que lições você tira disso sobre como devemos pensar sobre a moralidade hoje?”

Mais do que “felizes ou infelizes”, aqueles que aderem cegamente a princípios morais de terceiros não entendem que há uma escolha e, portanto, não são capazes de optar pela felicidade. É como a célebre frase de Lewis Carroll, em Alice no País das Maravilhas: “Se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve”.

Cântico não se trata de uma crítica aos princípios totalitaristas per se, mas de uma crítica àqueles que aderem aos princípios totalitaristas sem nem ao menos lutar por uma alternativa. O despertar do personagem principal, Igualdade 7-2521, e sua posterior transformação em “Prometeu” demarcam a jornada do herói que passa da posição de aceitação cega ao questionamento através do uso da razão, principal marca da obra de Ayn Rand.

“Somos um por todos e todos por um. Não há homens exceto o grandioso NÓS, Uno, indivisível e eterno”. São estas as palavras gravadas no mármore dos portais do Palácio do Conselho Mundial, o lema norteador da sociedade de Cântico, obra distópica escrita por Ayn Rand e lançada em 1937.

A obra se passa em algum tempo desconhecido no futuro, após a sociedade passar por uma revolução coletivista conhecida pelos cidadãos como o “Grande Renascimento”. Qualquer noção de individualidade foi suprimida, chegando ao ponto da linguagem já não contar com a primeira pessoa do singular e as pessoas terem seus nomes próprios substituídos por palavras genéricas e números. Por isso, o protagonista e narrador da história, Igualdade 7-2521, narra a obra na primeira pessoa do plural, referindo-se a si próprio como “nós”, o que causa estranheza ao leitor desavisado.

Nesta distopia, cabe ao indivíduo simplesmente se submeter sem relutância à ordem vigente. Os cidadãos devem seguir a “Grande Verdade, que é esta: todos os homens são um e não há vontade alguma exceto a vontade de todos os homens juntos.” A vida é definida pelo coletivo e já tem seu curso traçado desde o nascimento.

A supressão do “eu” e da individualidade na linguagem e na sociedade de Cântico me fazem traçar um paralelo com as políticas de gênero e identitárias que tomam cada vez mais força no século XXI. As modificações progressistas na linguagem, como a adoção do pronome neutro e “não-binário”, e a forçosa narrativa de identificação de indivíduos como “minorias” são claras tentativas de exclusão da individualidade. O indivíduo passa a servir de massa de manobra para a opinião coletiva dessas “minorias” e abdica de sua capacidade de se expressar por conta própria e defender seus próprios valores, um caminho que só pode levar em direção à servidão. 

Vale ressaltar que a pressão social pela adequação do indivíduo à mediocridade é uma das principais armas de cerceamento. No livro, Igualdade 7-2521 tenta ser tão estúpido quanto seus colegas, chegando à absurda situação de tentar imitar um colega que possuía apenas metade do cérebro. Trata-se de um clássico exemplo do “nivelamento por baixo” que ocorre em uma sociedade que não tolera nenhuma distinção individual. O excepcional deixa de existir e dá lugar à mediocridade. 

Em nosso mundo moderno não faltam exemplos dessa pressão social pela adequação. A nova moda, de “cancelamentos”, expõe com clareza essa ação massiva em bloco para excluir a existência online de uma pessoa que manifestou uma opinião contrária à do grande público.

O Conselho de Vocações decide a profissão. O Conselho de Eugenia atribui a cada homem uma respectiva mulher. Ao chegar aos 40 anos, os homens são enviados ao “Lar dos Inúteis”. O homem trabalha, se reproduz e, quando não é mais capaz de fazê-lo, vira um inútil. A existência passa a ser reduzida à capacidade produtiva. É uma sociedade utilitarista e deturpada dos principais valores de nossos tempos, onde não há família e poder de decisão: “As crianças nascem em todos os invernos, mas as mães nunca veem seus filhos e os filhos nunca conhecem os pais.”

A história muda radicalmente de rumos quando, em seu expediente como varredor de rua, o protagonista descobre um túnel subterrâneo remanescente dos “Tempos não-mencionáveis”, ou seja, anteriores ao Grande Renascimento. Ele estava acompanhado de seu colega Internacional 4-8818, pelo qual admitia nutrir um sentimento de amizade. A amizade por si só é uma Transgressão da Preferência, pois não se pode “amar um homem entre todos mais que os demais, visto que devemos amar todos os homens como nossos amigos”. A amizade entre o protagonista e seu colega varredor, portanto, era um sentimento velado, transmitido apenas por olhares desacompanhados de palavras.

Este é o primeiro momento em que há uma demonstração do exercício da vontade individual em detrimento da determinação coletiva. Ao descobrirem o túnel, Internacional diz que o achado deve ser reportado ao conselho, seguindo a lei. Igualdade, no entanto, incapaz de resistir à sua curiosidade e aos seus anseios de explorar proferiu: “Este lugar é nosso. Este lugar pertence a nós, Igualdade 7-2521, e a mais nenhum homem na Terra. E caso abramos mão dele, abriremos mão de nossas vidas também.” Internacional exercita seu poder de escolha e prefere não delatar a contravenção de seu amigo.

Ilustrando de forma clara como a desobediência a princípios dogmáticos pode resultar em felicidade, destaco a seguinte passagem: “Foi no túnel, em segredo, onde Igualdade 7-2521 passou suas noites nos dois anos seguintes. […] Ainda assim, lá descobriu ‘a paz que não houve durante vinte anos.’” A felicidade, portanto, foi encontrada quando o protagonista exerceu o seu senso próprio de moralidade, trazendo para si a decisão de exercer a sua própria vontade, em vez de a socializar através de arbitrários princípios impostos coercitivamente.

Durante outra de suas jornadas como varredor de rua, o protagonista cruza com Liberdade 5-3000, a quem carinhosamente apelida de “Excelente”. “Seu corpo era ereto e lânguido como uma lâmina de ferro. Seus olhos eram fixos, escuros e brilhantes, sem demonstrar qualquer medo, generosidade ou culpa. Seus cabelos eram dourados como o sol, voavam com o vento, brilhantes e soltos, como se desafiassem os homens a não atrapalhá-los.” Como é característico em suas obras, Ayn Rand usa a estética dos personagens para exaltar seus valores. A beleza normalmente acompanha aqueles personagens valorosos e aparece em seus traços físicos altivos, polidos e austeros.

A descrição estética volta a ser empregada pela autora em uma exposição diametralmente oposta, quando o protagonista passa a enxergar seus “irmãos”: “As cabeças de nossos irmãos são curvadas. Seus olhos demonstram enfado e nunca olham nos olhos uns dos outros. Os ombros são arqueados e os músculos retorcidos, como se seus corpos estivessem encolhendo e desejando encolher até desaparecer de vista. Uma palavra circula em nossa cabeça quando olhamos para nossos irmãos, essa palavra é medo.” A descrição física dos personagens é um substrato de seus valores. Os “irmãos” demonstram aparências abatidas, sem forças, e por isso são subservientes ao regime.

De forma resumida, a partir desse ponto, a história se desenrola com o protagonista descobrindo a eletricidade em um de seus experimentos no túnel, sendo pego pelo Estado, preso e açoitado. Ao tentar expor sua revolucionária ideia, é ridicularizado e perseguido, o que o instiga a fugir da cidade para a “Floresta desconhecida”.

Excelente o segue e logo se evidencia a lealdade mútua entre os dois personagens. Eles renunciam aos seus papéis como cidadãos submissos de uma sociedade doente e depositam sua confiança em quem julgam mais virtuosos. É possível traçar um paralelo com A revolta de Atlas e com as situações amorosas nas obras de Rand. O amor emerge somente da expressão máxima da admiração de um indivíduo pelo outro.

Igualdade e Excelente encontram uma casa na floresta, encontram espelhos e livros. Entendem a importância de possuir um nome próprio e se autodenominam “Prometeu” e “Gaia”. Passam a desenvolver seu senso de vaidade e, calcado no poder do indivíduo, Igualdade passa a desenvolver sua própria nova moralidade: “Eu existo. Eu penso. Eu quero. […] É a minha mente que pensa e é apenas o julgamento da minha mente que serve de iluminação para encontrar a verdade. É a minha vontade que escolhe e a escolha da minha vontade é o único decreto que devo respeitar.” Encontram, por fim, seus egos, ou seja, os núcleos de suas personalidades individuais.

O protagonista completa sua transformação exprimindo a lição máxima de Cântico sobre como devemos pensar sobre a moralidade hoje: “E minha felicidade não precisa de um alvo mais alto que ela própria para se realizar. A minha felicidade não é um meio para nenhum fim. Ela é o fim. É seu próprio objetivo. É seu próprio propósito.”

Se não adotarmos o individualismo na formação de nossa moralidade, enfrentaremos um futuro sombrio. Não é fácil, mas devemos ter a capacidade de perpassar a barata e simplória noção estatista de que o que importa é o “coletivo” e entendermos que a menor minoria é o indivíduo. Caso não entendamos a tempo, corremos o risco de acabarmos da mesma forma que a sociedade de Cântico: “O medo caminha pela Cidade, medo sem nome e sem forma. Todos o sentem, mas ninguém ousa falar sobre ele.”

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