Steven Pinker argumenta que algo está dando certo no mundo moderno, mas fica por sua conta definir exatamente o que é.
A era Trump – caracterizada pelo advento do anti-intelectualismo, pela confusão ideológica da direita e por uma guinada em direção ao iliberalismo em ambos os lados do debate político – tem, em compensação, gerado um tímido ressurgimento do interesse nas ideias filosóficas do Iluminismo. Um dos exemplos mais proeminentes disso é a obra ENLIGHTENMENT NOW de Steven Pinker, que parece um confuso livro de autoajuda da Nova Era, mas que é, na verdade, uma longa defesa do legado do Iluminismo, mapeando o grande avanço das condições humanas desde que os pensadores iluministas do século XVIII afirmaram que razão, ciência e liberdade poderiam transformar as nossas vidas.
O livro está recheado com dezenas de gráficos e planilhas que mostram melhorias substanciais e contínuas em todos os aspectos de nossa vida. Pinker analisa (respire fundo): expectativa de vida, poluição, mortes em guerras, genocídio, acidentes, desastres naturais, assassinatos, liberdade política, direitos humanos, racismo, alfabetização e educação.
Todas essas medidas de bem-estar humano seguem uma trajetória crescente, e assim têm sido desde o Iluminismo. Ele resume tal ponto ao parafrasear o economia Max Roser, quem destaca que os jornais “poderiam ter publicado a manchete “O NÚMERO DE PESSOAS EM EXTREMA POBREZA FOI REDUZIDO EM 137 MIL POR DIA, nos últimos 25 anos.” É assim ele explica a sua abordagem:
A maior parte do livro é dedicada a defender os ideais do Iluminismo de uma forma particular ao século XXI: com dados. A análise do projeto do Iluminismo com base em evidências revela que ele não foi uma esperança ingênua. O Iluminismo funcionou – talvez, a maior verdade raramente contada. E como tal triunfo não é muito divulgado, os ideais subjacentes da razão, ciência e humanismo são tão mal apreciados.
O que Pinker mostra não é apenas uma melhora física. Com mais riqueza seguiu mais educação, mais acesso ao conhecimento, mais tempo de lazer, mais acesso à arte – mais das coisas que enriquecem e ampliam a mente. Em um capítulo intrigante, ele aponta para evidências de que o aumento na saúde e riqueza levaram a ganhos significativos no QI médio e, em particular, nos testes de “raciocínio analítico” abstrato, implicando que povos mais alimentados e educados são, de fato, mais inteligentes e mentalmente capazes do que seus ancestrais. O Iluminismo parece ter aumentado nossos cérebros.
Um entendimento superficial da filosofia do Iluminismo
Tudo isso pode ser atribuído ao Iluminismo? Sim, pode ser atribuído às crenças e aos objetivos ideológicos que foram centrais ao Iluminismo, tais como ciência, mercados, comércio, direitos individuais e valores humanistas. Em diversos pontos, Pinker faz um bom trabalho ao mostrar como os piores retrocessos de nossa história, em particular as catastróficas guerras do século XX, foram o resultado de ideias anti-iluministas. Esse é um dos maiores erros cometidos pelos críticos do Iluminismo, que culpam John Locke e Voltaire por movimentos nascidos do Romantismo Alemão e de outras variações do movimento contrailuminista do século XIX.
Dos valores e ideais do Iluminismo, Pinker fala muito pouco. Ele é categórico (corretamente) que as ideias do Iluminismo têm consequências, e que essas consequências têm sido majoritariamente boas. Mas se essas ideias são tão importantes, esperava-se que ele gastasse mais tempo explanando-as.
Em vez disso, seus resumos das ideias do Iluminismo tendem a ser breves, vagos e superficiais, e filósofos com ideias muito diferentes – digamos, John Locke e David Hume, ou Baruch Spinoza e Immanuel Kant – são jogados no mesmo saco, negligenciando suas diferenças profundas e fundamentais. Quando Thomas Jefferson disse “os poderes legítimos do governo se estendem apenas aos atos que são prejudiciais aos outros”, ele estava propondo uma visão lockeana de direitos individuais e não, como Pinker implica, endossando o Utilitarismo de Jeremy Bentham.
Sob a égide da “imparcialidade”, Pinker mistura arbitrariamente ideias de diversos filósofos morais: “a visão de eternidade de Spinoza, o contrato social de Hobbes, o imperativo categórico de Kant, o véu de ignorância de Rawls, a visão do lugar nenhum de Nagel, a verdade autoevidente de Locke e Jefferson que todas as pessoas são criadas iguais e, é claro, a Regra de Ouro.” Essas não são ideias parecidas, tem implicações muito diferentes, mas para Pinker, todas elas são farinha do mesmo saco.
Pinker e a tendência ao cientismo
Esse desprezo pela filosofia tem sua origem, suspeito, na tendência de Pinker ao “cientismo”. Ele rejeita o rótulo, dizendo que é uma forma usada para impedir que os cientistas invadam os feudos intelectuais dominados pelos professores de Humanidades. Eu concordaria – se o próprio Pinker não fosse um excelente exemplo do que os oponentes do “cientismo” tanto nos advertem.
Ele tende a levar argumentos científicos a sério, examinando-os em detalhe, enquanto trata superficialmente de ideias filosóficas. Ele tem um hábito irritante de descrever aspectos normais da vida, tais como amor e casamento, não em seus próprios termos, mas os reduzindo a conceitos abstrusos tirados de teoria evolucionária ou da termodinâmica. Ele afirma que só deseja reconciliar conceitos das ciências com os das humanidades, mas fica claro que, para ele, apenas conceitos advindos das ciências são verdadeiramente válidos, importantes e explicativos. Isso tampouco lhe favorece como escritor, já que ele prefere descrever as coisas da forma mais técnica e complexa, quando um inglês simples já daria conta do recado.
No fim das contas, a imprecisão de Pinker na descrição da filosofia do Iluminismo é proposital. Ele fala muita da importância das ideias, mas conclui ao final do livro que ideias específicas só atrapalham. “Mesmo quando movimentos humanistas fortificam seus objetivos pelo uso da linguagem dos direitos, o sistema filosófico que justifica tais direitos deve ser ‘raso’. Uma filosofia moral viável para o mundo contemporâneo não pode ser construída por camadas de argumentação difícil ou ser dependente de convicções metafísicas ou religiosas. Ela deve ser abstraída de princípios simples e transparentes que todo mundo pode entender e aceitar.”
Isso é bem curioso vindo de alguém que gasta boa parte de seu livro falando como a segunda lei da termodinâmica explica todos os aspectos da vida humana. Mas esse é o estilo de cientismo de Pinker: rico nos detalhes quando se trata de princípios científicos, mas deliberadamente pobre quando se abordam princípios filosóficos.
Se você acha que estou exagerando, Pinker reafirma a sapiência ideológica quando elogia a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, uma mistura de ideias vagas e contraditórias que provou ser notoriamente ineficaz na prática. Mas Pinker a aprova porque, nas palavras de um de seus redatores, a declaração “não é baseada em nenhuma filosofia”. Esse é o poder das ideias…???????
O cientismo leva Pinker a diversas falhas
Seu desprezo pelo raciocínio filosófico e pela experiência externa ao seu círculo científico o tornam vulnerável a teorizar sobre coisas que desconhece. Ele gasta páginas especulando sobre “multiversos” para responder a um dilema filosófico básico do “por que existe algo e não existe nada” – que um filósofo mediano poderia identificar como uma questão infrutífera e inválida que não exige nenhuma resposta complexa. Ele recorre a multiversos porque falha em entender o real significado do argumento do “Deus das lacunas” – uma variação da falácia do “argumento da ignorância” – e, logo, sente a necessidade de preencher lacunas que não existem.
E a situação piora quando ele se arrisca – como ele imprudentemente o faz de vez em quando – em discussões sobre política e, pior, política partidária. Como alguém que segue o cenário político por profissão, notei que Pinker ecoa frequentemente a esquerda progressista quando descreve Ronald Reagan e George W. Bush como os que “sabem de nada”, embora não sabendo quem foram os verdadeiros “sabem de nada”.
Como muitos evangelistas do “viés cognitivo”, ele próprio é vítima dele. Ao discutir o progresso feito em direção ao ar limpo e à água potável, bem como o erro dos catastrofistas ambientais, ele insiste que nenhuma regulação ambiental deveria ser relaxada, pois foram elas que reverteram a tendência ao cataclismo ambiental.
Ainda assim, analisando o número de mortes por ataques terroristas, que caíram muito após os ataques de 11 de Setembro, ele considera os esforços internacionais contra o terrorismo como uma reação histérica e nem mesmo considera a possibilidade de que justamente esses esforços tenham evitado que o 11 de Setembro se tornasse a nova regra. Em cada caso, ele ajusta sua interpretação de acordo com as preferências políticas de seus colegas, enquanto se convence de que está meramente seguindo os dados.???????
Um salto para a racionalização do status quo de centro-esquerda
Como resultado, a defesa de Pinker do Iluminismo acaba sendo mais uma defesa do atual status-quo de centro-esquerda. Tema após tema, da pena capital ao aquecimento global, do estado de bem-estar ao terrorismo, os contra-argumentos racionais são ou loquazmente negligenciados ou tratados como se não existissem. O Iluminismo de Pinker pode ser muito vago e geral em termos filosóficos, mas é curiosamente específico em termos de política pública. Parece uma grande coincidência que as ideias de um grupo muito diverso de filósofos escrevendo dois ou três séculos atrás culminaria, ponto por ponto, na plataforma da campanha presidencial de Hillary Clinton.
As visões de Pinker são, pelo menos, centro-esquerda, e ele ocasionalmente se afasta desse consenso. Ele aponta para os perigos do politicamente correto e da política de identidade, defende a energia nuclear contra ambientalistas radicais, e ataca marxistas por sua obstinação dogmática e seu ódio para com os mercados. (Uma de suas melhores frases é: “intelectuais odeiam progresso. Intelectuais que se chamam “progressistas” realmente odeiam o progresso.). Às vezes, ele cita um economista como Thomas Sowell ou Friedrich Hayek, embora essas apostasias sejam bem raras, o que chama a atenção.
O problema mais sério é que Pinker tende a sofrer do risco ocupacional dos palestrantes do “festival de ideias”: o seu conhecimento é amplo, mas tem pouca profundidade. Enlightenment Now é um amontoado de notas de rodapés, o que o faz parecer obsessivamente referenciado. Mas se você conhece profundamente alguma das áreas em que ele toca, particularmente aquelas fora do domínio da ciência, você conclui que muito de seu conhecimento é oriundo de relatórios de segunda mão com análise apressada.
Considere apenas um exemplo, de uma área da filosofia que conheço muito bem. Pinker acaba uma crítica ao filósofo anti-iluminista Friedrich Nietzsche com esse ataque a Ayn Rand: “embora ela tenha tentado omiti-lo, a celebração do egoísmo de Ayn Rand, sua deificação do capitalista heroico, e seu desprezo pelo bem-estar geral tinha Nietzsche escrito em todo lugar.”
Tal afirmação demonstra sua interpretação superficial de Nietzsche, sua total ignorância com respeito à Ayn Rand, e até mesmo conhecimento incompleto do Iluminismo (em que a defesa do “autointeresse propriamente entendido” foi comum, e não muito distante da versão de “autointeresse racional” defendida por Rand). Qualquer pessoa interessada no tema pode encontrar recursos diretos e confiáveis.
Rand estava tão ansiosa por “omitir” suas opiniões sobre Nietzsche que ela discutiu abertamente as diferenças entre as duas filosofias diversas vezes. Se você tiver interesse, ouça essa entrevista de Rand para a Universidade Columbia em 1967. Pinker, é claro, não sabe nada disso e, em vez disso, cita uma reportagem de um terceiro nas notas de rodapé; Isso é consistente com sua equação do Iluminismo com o status-quo de centro-esquerda, que desconsidera Rand com acusações vazias sobre Nietzsche, simplesmente porque ela era uma defensora radical de capitalismo.???????
Eu amo o Iluminismo, mas não sei exatamente o que é
Pinker quer defender o Iluminismo, mas deseja fazê-lo sem tentar muito entender o que ele foi, o que defendeu ou quais dilemas e problemas filosóficos teve de enfrentar – ou adotando respostas muito diferentes e, às vezes, irreconciliáveis dadas pelos filósofos do Iluminismo a essas questões.
E, ainda assim, a sessão central de seu livro oferece uma defesa do Iluminismo. Nela, ele reconta a marcha de 200 anos de progresso que se seguiu ao Iluminismo. Essa série de avanços humanos é tão grande que chega a ser cansativa, mas quem acompanha as notícias – e todo mundo que escreve e discute na sociedade – deveria saber que tão longo ensaio era necessário.
A razão porque a maioria das pessoas não reconhece os enormes avanços na vida humana ao longo dos últimos séculos é que os noticiários, e particularmente, o debate político atual, é sempre uma ladainha de ameaças, crises, emergências e avisos de crise nacional e caos global. Essa sessão central do livro de Pinker é absolutamente necessária.
Quem quiser afirmar que o capitalismo é um sistema de exploração que esmaga os pobres em benefício dos ricos precisa lidar com o enorme aumento de riqueza e o crescimento do capitalismo global durante a Revolução Industrial. Quem quiser atribuir a culpa da existência do Islã radical ou do apocalipse climático à política externa dos Estados Unidos precisa lidar com o declínio crescente das guerras no pós-II Guerra Mundial e o colapso da União Soviética.
Quem quiser afirmar que o moderno nos tornou materialistas espiritualmente pobres precisa lidar com a evidência de Pinker com respeito ao aumento da educação, tempo livre, artes e conhecimento, na medida em que a humanidade é tirada do materialismo bruto da luta diária contra fome e doença. Mesmo que Pinker questione a sustentabilidade do estado de bem-estar contemporâneo, seu “realismo otimista” me leva a medir meu próprio senso de alerta.
Creio que o dia do juízo fiscal está chegando, mas a riqueza crescente facilitará a recuperação da crise, da mesma forma que a Grande Recessão parece menos assustadora hoje quando estamos com uma taxa de desemprego de apenas 3,9%. Duzentos anos de progresso fazem a diferença, afinal.???????
Enlightenment Now apresenta um argumento amplo e efetivo de que algo tem dado certo no mundo moderno. O único detalhe é que você terá que fazer o trabalho sujo se quiser definir em termos filosoficamente claros o que esse algo realmente é.
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Publicado originalmente em The Federalist.
Traduzido por Matheus Pacini.
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