Skye Cleary (com quem tive uma breve e prazerosa interação em sua função de editora do blog da Apa) recentemente escreveu um artigo para o AEON, encorajando os filósofos perturbados pelo que eles consideram ser os efeitos “perniciosos” das ideias de Rand a “tratar o fenômeno Rand com seriedade”, porque “ignorá-lo não o fará desaparecer.”
Vilipendiar Rand sem ler sua obra, ou demonizá-la sem tirar o tempo para refutá-la, é, sem dúvida, a abordagem incorreta.
Eu concordo plenamente. Em minha introdução à obra A Companion to Ayn Rand, escrevi que:
O estudo acadêmico das obras de Rand foi postergado por duas gerações de acadêmicos que consideravam sua visão e pensamento aterradores ou esperavam que ela fosse uma moda passageira, e que a atração de seus estudantes por ela fosse uma mera leviandade da juventude. Essas esperanças foram frustradas.
Como um filósofo que pensa que muitos dos filósofos mais influentes do passado e do presente estavam profundamente equivocados e, logo, geraram efeitos perniciosos, conheço as dificuldades encontradas por quem cultiva o mesmo tipo de sentimento de Cleary e sua audiência têm para com Ayn Rand. Tentei comunicar tal perspectiva tanto a fãs como a críticos de Rand em minha introdução.
Levar um autor a sério significa lê-lo, não com o intuito de confirmar o seu viés (seja favorável ou não), mas sim com o objetivo de entender o que ele pensa e por quê. Caso considere a sua abordagem difícil, é sinal de que existe um desafio a ser superado. Caso considere o seu conteúdo implausível, é fundamental que dedique tempo a refletir por que assim não parece para ela ou para os leitores que a consideram convincente – e é possível que você esteja errado. Do mesmo modo, se ela parecer obviamente correta numa questão, mesmo que outras pessoas a considerem contraditória, é importante trabalhar para identificar as premissas de seu pensamento, e se elas são verdadeiras.
Tal abordagem permite que se aprenda dos pensadores de quem se discorda. Existe, sim, a possibilidade de que a leitura desses pensadores o levará a mudar sua forma de pensar, porém, na ampla maioria dos casos em que isso não acontece, seguir a abordagem supracitada o levará, pelo menos, a identificar mais claramente a natureza de sua divergência, levando-o a revisar os argumentos de suas próprias posições.
Fiquei desapontando com a abordagem de Clearly no artigo da Aeon. Ela toma como dado que a filosofia de Rand advém de um lugar de crueldade e que “deveria ser fácil mostrar o que está errado em seu pensamento.” E, embora ela faça alusão ao ponto de John Stuart Mill de que podemos encontrar elementos de verdade em posições erradas, vejo pouco esforço de sua parte em apontar as verdades na obra de Rand. Sim, ela incita seus leitores a analisar a obra de Rand em detalhe, mas suas próprias críticas a Rand consistem principalmente em declarações vazias, e nos poucos momentos em que cita Rand, as citações são tomadas fora de contexto e não recebem o devido embasamento.
A primeira crítica de Cleary é que “Rand culpa as vítimas: se alguém não tem dinheiro ou poder, é por sua própria culpa.” Porém, ela não dá exemplos de Rand culpando alguém por ser pobre ou incapaz; tampouco, ela reconhece quaisquer descrições de Rand quanto a pessoas que são pobres e indefesas não por sua própria culpa, sua compaixão por pessoas ambiciosas tentando resolver problemas e seu ódio contra qualquer tipo de injustiça contra elas. Pense, por exemplo, em Cherryl Brooks em A revolta de Atlas, ou nos protagonistas de We The Living. Pense nos muitos personagens (frequentemente anônimos) de A revolta de Atlas que sofrem injustamente devido a leis como a Diretiva 10-293. E pense em sua discussão sobre o destino dos dissidentes soviéticos em artigos como “The Inexplicable Personal Alchemy.” Sim, existem algumas pessoas (por exemplo, os pais de Cherryl Brooks) que têm pouco dinheiro ou poder e que Rand crê culpados por sua própria circunstância – ou por não se esforçarem por melhorá-la. Mas a menos que concluamos que nenhum de nós tem qualquer controle sobre o destino de sua vida, temos que reconhecer que algumas pessoas em circunstâncias ruins partilham um pouco de responsabilidade por seu destino. Filósofos que discordam de Rand sobre se um indivíduo particular é uma vítima, ou quão justo ou injusta são várias sociedades, fariam bem em discutir essas questões diretamente, e esperamos que o artigo de Cleary os motivem a fazê-lo.
O único concreto que Cleary aponta nesse sentido que poderia ser um exemplo de “culpar a vítima” é a polêmica cena de estupro em A nascente. Mas é um exemplo curioso tanto porque a suposta vítima é uma personagem simpática (em vez de alguém que Rand culparia por algo), e ela própria não se considera vítima de nada. Em vez disso, ela exalta a experiência. Esse é o fato que torna a cena tão controversa. Aqui é o que Cleary tem a dizer sobre a cena:
Howard Roark, o “herói” de A nascente estupra a heroína Dominique Francon. Um conjunto inadequado de diálogos sobre reparar uma lareira é, de acordo com Rand, equivalente a um “convite velado” de Francon” a Roark para estuprá-la. O encontro é claramente não consensual – Francon resiste genuinamente e Roark se impõe à força – e, mesmo assim, Rand implica que os sobreviventes de estupros, e não os estupradores, são responsáveis. Se a força torna algo certo e, como Roark afirma anteriormente no romance, o ponto não é quem vai impedi-lo de fazer o que ele quiser, “o ponto é quem vai me impedir?”
Uma descrição por mais complacente de qualquer coisa que se pareça com um estupro gera preocupações óbvias – do tipo que sensibiliza mais a comunidade intelectual e literária em 2018, que em 1943. Então, essa cena merece ser discutida e debatida e, em minha visão, as discussões existentes sobre ela por parte de autores simpáticos à Rand são muito defensivas. Frequentemente, todavia, a cena é usada como uma tentativa de desvalorizar Rand ou de atribuir a ela opiniões que não defendia: e é isso que Cleary faz na passagem que acabei de citar.
O que acontece nessa relevante passagem de A nascente? Dominique é uma idealista frustrada com determinação estoica a manter sua independência do mundo ao nunca se permitir desejar qualquer coisa nele. Enquanto reclusa em sua propriedade, ela nota Roark perfurando granito na pedreira de seu pai. Roark é um arquiteto que optou pelo extenuante trabalho manual em vez do atendimento a clientes que demandavam que ele sabotasse sua integridade artística, e ele ali ficaria até ganhar dinheiro o bastante para reabrir o seu escritório ou ser procurado pelo tipo de cliente que valorizava suas ideias. Mas Dominique não sabe nada disso. Ela se atrai por ele, e ele por ela, à primeira vista. A partir desse momento, começa uma relação adversarial de cunho erótico em que ela luta contra o seu desejo por ele. Ela fetichiza o status inferior dele, vangloriando-se de sua posição e privilégio. Roark, que não disfarça seu desejo por ela, deixa claro que ele sabe o que ela está fazendo e por quê. Os dias dela se resumem a resistir ao seu desejo, e ela percebe que perdeu sua tão valiosa liberdade. Por um tempo, ela se isola em sua casa, mas a casa é “segura demais” e ela sente “um desejo de desafiar a segurança para ressaltá-la”, então, ela danifica a laje de mármore de sua cama e contrata Roark para consertá-la. O trabalho requer duas visitas. Durante a primeira, ela se põe soberbamente, esticando-se na cama. Ele ignora e trabalha. Ele deixa claro (sem deixar explícito) que ele sabe que o dano foi intencional, e usa sua explicação sobre a formação do mármore como uma metáfora para a relação deles. Quando chega a hora da segunda visita, Roark envia outro trabalhador em seu lugar. Dominique fica furiosa; após dias de conflito, ela corre a cavalo até a pedreira e, encontrando Roark aí, pergunta o porquê de ele não ter ido na segunda visita. Ele responde: “eu não achei que faria diferença quem fosse. Ou faria, Srta. Francon?” Ela o atinge no rosto com o chicote que tinha usado em seu cavalo. É depois disso que ele vai a sua casa e a toma forçosamente. Ela batalha contra ele, mas não clama por ajuda embora saiba que é possível fazê-lo.
Isso é estupro, sexo selvagem consensual ou é um caso onde a linha é turva? O romance deixa claro que esse ato sexual é uma experiência profunda para ambos: eles queriam isso, e sabiam disso. Por outro lado, Roark poderia certamente ter sido processado por estupro caso Dominique tivesse pedido ajuda, sendo ele pego em flagrante. Dominique descreve o ato como estupro para si mesma, e ela preza tal pensamento. Os dois personagens mantêm uma relação claramente consensual, embora adversarial, ao longo do resto do romance, e eles se casam no final, após Dominique resolver as questões que a fazem desprezar o mundo. Toda indicação é dada de que esse é um encontro de duas personalidades únicas. Então, mesmo se a ato de Roark fosse um estupro, a cena claramente não implica que as vítimas de estupro sejam responsáveis pelo que acontece com elas. Sua intenção é a de ser uma dramatização do conflito interno de Dominique, e o papel de Roark nisso.
Não obstante, o estupro é um crime hediondo e, infelizmente, comum. Com frequência, estupradores ou apologistas do estupro se justificam ao afirmar que a vítima estava, de forma não verbal, pedindo por isso. Logo, pode-se argumentar que a cena de A nascente é insensível, ofensiva ou irresponsável. Por outro lado, muitas mulheres relatam ter fantasias de estupro, e cenas de estupro são comuns em romances populares, cujo consumo é de uma audiência predominantemente feminina. Existem boas questões sobre como deveríamos entender e avaliar tais ocorrências de estupro na fantasia e na ficção, e se tal fantasia é uma expressão saudável da sexualidade humana ou um efeito autoperpetuado de uma cultura que vitimiza as mulheres. Não importa como alguém responde a essas perguntas, e não importa como alguém julga as escolhas artísticas de Rand, está claro que o ponto da cena de estupro de A nascente não foi (como Cleary afirma) que “a força se impõe”. Em primeiro lugar, a trama de Gail Wynand em A nascente equivale a uma crítica vida incorporada por tal ditado. Além disso, em ensaios posteriores, Rand rejeita explicitamente a ideia de que “a força se impõe ao certo”, e ela elogia o “conceito americano de ‘governo de leis e não de homens’”, que, ela escreveu, “é um meio de subordinar o “poder” ao “certo.”
Isso nos leva à filosofia política de Ayn Rand. E o que Cleary tem a dizer sobre isso? Confira.
Rand defende a autossuficiência, ataca o altruísmo, demoniza servidores públicos e critica regulações governamentais porque elas atacam a liberdade individual. Ainda assim, ela convenientemente ignora o fato de que muitas leis e regulações governamentais promovem liberdade e florescimento.
Cabe-nos perguntar: quando os filósofos discordam sobre a qualidade de uma lei, seus proponentes geralmente afirmam que ela promove liberdade e prosperidade, enquanto seus oponentes dizem o contrário. Logo, mesmo se alguém estivesse debatendo com um anarquista (o que Rand, por certo, não estava), seria insuficiente apenas dizer que leis e governos são necessários para liberdade e prosperidade. Seria necessário mostrar que assim o é, além de citar quaisquer razões que o anarquista teria para negar tal fato. Mas, é claro, Rand defendia que um certo tipo de governo – dotado de leis objetivas – é necessário para proteger os direitos que cada ser humano precisa para viver e prosperar. Outros tipos de leis, ela argumenta, estão erradas porque violam esse direitos.
É claro, as visões de Rand em todos esses pontos é polêmica, e objeções foram levantadas sobre alguns desses pontos, bem como às suas fundações éticas como providas por Rand. Mas, em vez de levantar ou linkar para tais objeções, Cleary escreve como se Rand não tivesse nada a dizer sobre elas. E ela a cita fora de contexto para criar tal impressão. Por exemplo, quando ela cita um personagem de A revolta de Atlas dizendo que ele não deve nada aos seus semelhantes, ela ignora o resto de sua afirmação:
“Vocês me perguntam: que obrigação moral eu tenho para com meus semelhantes? Nenhuma, senão aquela que devo a mim mesmo, aos objetos materiais e a toda a existência: a racionalidade. Trato os homens como requerem minha natureza e as exigências deles: por meio da razão. Não busco nem desejo nada deles senão os relacionamentos nos quais eles escolham entrar por livre e espontânea vontade.
A teoria dos direitos de Rand, mencionada anteriormente, busca demarcar o limite da vida individual num contexto social, de modo a esclarecer que tipo de ações com respeito a um indivíduo se tornariam uma imposição sobre ele, se tomadas sem o seu consentimento. E essa teoria tem os recursos para lidar com outra das objeções de Cleary:
Rand supõe que vivemos num mundo com recursos e propriedade ilimitados que podem ser protegidos dos outros. Ela ignora o fato de que compartilhamos a Terra – respiramos o mesmo ar, nadamos no mesmo oceano e bebemos das mesmas fontes hídricas.
Contudo, os juristas e legisladores americanos do século XIX usavam uma definição de direito muito parecida com a de Rand para definir direitos a recursos como água e petróleo, que não são facilmente “insulados”. Rand faz referência a essa tradição em um artigo sobre como definir direitos de propriedade no espectro de radiodifusão, onde ela ressalta que novas tecnologias frequentemente exigem a definição de novos direitos de propriedade. Talvez algumas tecnologias que causam poluição podem exigir a identificação de novos direitos com respeito à camada atmosférica. De qualquer forma, algumas leis antipoluição poderiam ser justificadas mais diretamente por referência ao dano causado pela poluição sobre as vidas e a propriedade das pessoas. E, embora Rand fosse muito crítica do velho movimento ambientalista, ela concordava com leis que “exigiam que indústrias instalassem dispositivos antifumaça ou queimassem combustíveis mais limpos.”
Cleary nota que alguns filósofos com convicções políticas próximas a de Rand apoiam “algum controle estatal para proteger pessoas e sua propriedade de dano, força, fraude ou roubo,” mas ela crê que Rand não poderia permitir tal coisa por ter escrito que “não pode haver pacto entre a liberdade e o controle governamental.”[2] Tirada do contexto, essa sentença de Rand pode vir a significar que liberdade e governo são incompatíveis. Contudo, Rand argumentou que o governo é indispensável para a liberdade, logo, há um problema aqui. O que, então, ela quer dizer com “controles governamentais”? Mecanismos pelos quais um governo controla a vida das pessoas (ou, a economia), em vez de proteger seus direitos e, por conseguinte, permiti-los o controle sobre suas próprias vidas. O governo protege direitos quando processa pessoas por força, fraude e roubo. Mas o FCC controla pessoas quando emite licenças e dita padrões de transmissão de formas que não são determinadas com referência aos direitos. Eu mencionei anteriormente a forma alternativa de governança proposta por Rand no caso do espectro de radiodifusão: frequências seriam reconhecidas como propriedade das emissoras que tinham sido pioneiras em seu uso, e o papel do executivo seria proteger essa propriedade de invasores (rádios piratas, por exemplo). A alternativa entre liberdade e controle não é entre anarquia e governo, mas entre duas formas de governança.
É claro, existem pontos que podem ser questionados. A distinção entre esses dois tipos de governança pode ser coerentemente mantida? Ela é tão evidente como Rand pensou? Todos os controles estão errados, ou existem esferas de atividade humana (talvez aquelas que poluem o ambiente) que devem ser geridas por meio de controles? Todas essas seriam questões válidas a serem perseguidas pelos críticos de Rand.
Por fim, Cleary acusa Rand de hipocrisia porque ela se opunha aos programas sociais do governo, mas recebeu benefícios em sua velhice. Deveríamos adicionar a essa acusação que, como jovem faminta em São Petersburgo, Rand se alimentou das “rações” distribuídas pelo estado soviético. Ao contrário de outros que acusaram Rand de aceitar tais pagamentos, Cleary reconhece que o argumento de Rand que oponentes do estado de bem-estar têm direito a receber os benefícios porque tais programas são uma devolução parcial do dinheiro tomado deles para financiar tais programas. Aqui, a resposta de Cleary:
O problema não é apenas a complexidade de calcular quanto apoio governamental alguém poderia receber de volta por tributos pagos – dado que, presumivelmente, ela também usou estradas, água tratada, proteção policial e uma miríade de outras coisas que o governo oferece. Mas também está em contradição com seu ponto de que não pode haver pacto entre liberdade e governo. Além disso, é desonesto participar ativamente em, e se beneficiar do mesmo sistema que ela condenou sob a desculpa de recuperar o que lhe foi tomado. Isso pode ser egoísta, mas não é, como ela afirmou, moral.
Cleary não entende o argumento de Rand. A injustiça que Rand acredita estar envolvida num sistema de bem-estar não é o fato de que os beneficiários são pagos, mas que dinheiro para financiá-lo é tomado dos opositores do sistema contra a sua vontade. Os opositores são as vítimas, e os perpetradores são os defensores do sistema (não os beneficiários, exceto quando o defendem). Os perpetradores não têm direito moral a nada que possam receber sob tal sistema, mas as vítimas do sistema, sim; pois eles estariam agravando sua própria vitimização se recusassem a pegar o que lhes é devido pelo sistema, deixando todos seus ativos não mãos dos vitimadores. Assim, deveriam receber o que lhe é devido pelo sistema, não considerando como um benefício, mas uma restituição parcial do que lhes foi tirado injustamente. Suponha, todavia, que o argumento de Rand não se sustente. Por que isso tornaria Rand uma hipócrita, em vez de uma pessoa com uma resposta errada à difícil questão de como operar num contexto de um sistema social que ela julga ser injusto? E se fôssemos considerar Rand como filósofa, não deveríamos estar mais preocupados com as questões filosóficas e reais, do que com seu caráter pessoal?
E essa foi a suposta “refutação de Rand” por parte de Cleary. Mas, presumivelmente, o ponto de seu pequeno artigo não era tanto refutar Rand como motivar outros filósofos a fazê-lo. Eu me uno a ela nisso, convidando mais filósofos a se engajarem na análise de sua obra. Filósofos interessados na tarefa podem fazer uso do Companion e dos outros dois livros do Ayn Rand Society. Todos os três livros focam em facilitar o engajamento intelectual ao reduzir o abismo entre a obra de Rand e a literatura que é mais familiar a maioria dos filósofos americanos.
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Publicado originalmente em Check your premises.
Traduzido por Matheus Pacini.
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