Em 1937, pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), Ayn Rand escreveu sua obra fictícia Cântico. Em um ambiente global dominado pela ascensão de governos totalitários, Ayn Rand descreve em seu livro uma sociedade distópica também dominada por uma ordem governamental totalitária na qual o coletivismo atinge seu nível máximo, com a supressão total do indivíduo.
Logo no início da obra, que é escrita em forma de diário, Rand evidencia o controle da linguagem. Nessa sociedade, não existem mais pronomes individuais, a palavra “eu” nem sequer é conhecida. Assim, os indivíduos só se referem a si mesmos e aos outros no plural. Assim como em outros aspectos dessa sociedade distópica, Ayn Rand exagera ao máximo o controle da linguagem para expor sua crítica. O ponto é que, para que o governo consiga controlar completamente os indivíduos, não basta apenas controlar suas vidas. Ele precisa controlar suas mentes e é pela manipulação da linguagem, eliminando até palavras do vocabulário, que o governo influencia o pensamento dos cidadãos. Esse tema lembra o famoso livro de George Orwell, 1984, no qual o autor também trabalha essa questão da linguagem ressaltando a alteração do sentido de palavras ao atribuir na verdade um sentido oposto a elas. Você se lembra do famoso lema: “guerra é paz; liberdade é escravidão; ignorância é força”.
Para alguns, a forma como a manipulação da linguagem é abordada nesses romances distópicos pode parecer muito distante da realidade atual. Um passo anterior a isso, porém, talvez seja o cerceamento da liberdade de expressão, já que é mais fácil começar calando as vozes divergente do que controlando o pensamento. Tanto no Brasil quanto no mundo a discussão sobre liberdade de expressão está em alta, principalmente, por causa da internet, das redes sociais e do combate às fake news. É fato que hoje é difícil separar o que é falso do que é verdadeiro, portanto, a discussão do tema é definitivamente relevante. Nesse ambiente, o atual presidente Lula vem defendendo fortemente a regulação da mídia e o combate às notícias falsas. Apesar de parecer uma causa nobre e necessária, é preciso ter cautela e analisar o tema com mais profundidade. Quem seriam os responsáveis por traçar os limites entre fatos e opiniões? Como definir o que se enquandra em liberdade de expressão e o que é discurso de ódio? Por quem seria feito esse controle? Seriam robôs programados com algorítimos rígidos e fixos ou seriam seres humanos dotados de emoções e parcialidade? Certamente muitos outros questionamentos ainda precisariam ser feitos e não existem respostas simples que consigam resolver esses dilemas.
Enquanto no Brasil esse vem sendo o posicionamento do presidente e de boa parte da mídia, nos Estados Unidos vemos outro caso que vai na direção oposta, o caso do Twitter. Ano passado o bilionário Elon Musk adquiriu a plataforma, muito motivado inclusive pela discussão sobre liberdade de expressão, e desde que a assumiu, vem denunciando diversos tipos de “censura” que ocorreram, o que ficou conhecido como escândalo dos Twitter files. São muitos os assuntos abordados nessas denúncias. Eles vão desde o controle de alcance de uma notícia relacionada a um suposto caso de corrupção do filho do atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na época das eleições americanas, até a derrubada de contas de diversos médicos que estavam escrevendo opiniões sobre a COVID-19 ao longo da pandemia que divergiam da posição oficial do governo. Não cabe aqui julgar esses assuntos polêmicos que estão sendo discutidos agora nas cortes americanas, mas sim questionar se era realmente o papel do Twitter censurar essas notícias e opiniões, não dando aos cidadãos o direito de sequer pensar por si próprios. Será que era realmente o papel de uma executiva da empresa silenciar médicos renomados que estavam emitindo suas opiniões a respeito de uma doença que era nova para o mundo inteiro? Perceba que não se trata de dizer se tais médicos estavam certos ou não, mas é sobre suprimir o debate público e colocar o Estado, ou uma empresa, como dono da verdade e como se o indivíduo não fosse capaz de pensar sozinho a ponto de precisar de um ente superior que decida por ele o que vale a pena ou não ser debatido.
O aspecto da linguagem é apenas um dos muitos tópicos que são abordados em Cântico. Outro ponto interessante trabalhado pela autora é o das inovações tecnológicas. No romance, o protagonista é um homem que, desde jovem, tinha curiosidade e sede por aprender. Ele tinha vontade de fazer parte do Conselho dos Eruditos, que eram os homens da ciência. Mas tudo isso na verdade já se configurava como crime: não era permitido se destacar, todos os indivíduos deviam ser iguais, e ainda mais grave, ele ter vontade de algo, ou sentir qualquer coisa, era um grande pecado. De qualquer forma, não cabia a ele escolher sua profissão, todo seu destino não pertencia a ele, mas sim ao Estado que tomava todas as decisões. E não era do interesse do Estado ter um indivíduo como ele pensando, pois isso seria perigoso. Assim a ele é designado o papel de varredor de rua. O protagonista, Igualdade 7-2521, seguia a mesma rotina todos os dias até que ele e seu companheiro encontram um túnel. Ele decide então não contar ao governo, seu companheiro decide também não delatá-lo e, assim, Igualdade 7-2521 passa a usar o local como um esconderijo no qual ele realizava experiências e passava o tempo sozinho. No meio dessas experiências, o herói acaba descobrindo a eletricidade e conta aos Eruditos, acreditando que mudará toda a sociedade. Para sua surpresa, os Eruditos não o apoiam e alegam até que a descoberta era ruim, pois acabaria com todo departamento de velas. Nesse sentido, notamos primeiramente a crítica sobre a restrição do pensamento livre, mostrando que o progresso vem pelo pensar independente, pensar com liberdade. As grandes descobertas do mundo foram feitas por poucos homens, em sua individualidade, tentando resolver problemas específicos e não do pensamento coletivista que é sempre direcionado, restritivo e limitado. Em segundo lugar, outra crítica embutida também nessa situação é sobre o Estado forte e de economia planificada. Ao planejar toda situação econômica era preciso garantir as vagas de trabalho a todos que eram relacionados ao departamento de velas, como seria possível então permitir algo novo que acabaria com todo um setor? Esse pensamento está presente ainda nos dias de hoje, com muitas pessoas defendendo que os avanços da tecnologia acabam com vagas de trabalho e aumentam o desemprego: é a preferência por manter o status quo ao invés de aumentar produtividade e evoluir.
Após esse episódio, Igualdade 7-2521 resolve fugir para a floresta e aos poucos vai descobrindo um mundo novo, livre, no qual ele pode buscar seus próprios meios de sobrevivência. Ele é seguido posteriormente também por Excelência, a mulher que trabalhava no campo perto de onde ele varria e com a qual já havia trocado algumas palavras e expressado sentimentos proibidos. Juntos, eles encontram uma casa antiga que havia sobrevivido e nela havia livros. No meio da leitura, ele descobre a palavra “eu” e passa a refletir sobre como deve honrar sua individualidade, seus pensamentos e seus desejos não para atender a terceiros, mas para si próprio. Essa é uma reflexão que parece ser cada vez mais necessária em nossa atual sociedade, dado que ao redor do mundo estamos assistindo ao coletivismo ganhando força e consequentemente o apoio ao Estado forte que, como a própria Ayn Rand narrou em sua obra, levam à ineficiência e à anulação do próprio indivíduo.