É minha opinião, a qual pode parecer contraintuitivo para muitos objetivistas, que o título desse ensaio não é um oximoro[1]. Mas rendição não é se entregar ao inimigo, abrir mão de seus valores, contestar-se com o “menos pior”? Isso não é imoral segundo a filosofia de Ayn Rand? Bem, dependo do significado que você concede à rendição. Rand era muito cuidadosa, e utilizou tal termo em sentidos diferentes – tanto positivo como negativo – da palavra rendição. Após ler A Nascente com essa questão em mente, fiquei surpresa ao encontrar, pelo menos, 15 usos dessa palavra ao longo do romance, e maioria deles usos foi positiva. Existem três contextos de uso – um negativo e, outros dois, positivos. Descreverei e analisarei brevemente esses três contextos, e concluo que Rand usa muito mais a palavra “rendição” de uma forma positiva, e está correta em fazê-lo[2].
Primeiro, ocorre o uso negativo de rendição, cujo significado seria o da renúncia dos valores de um indivíduo. Tal uso se dá apenas em algumas passagens e se resumem, majoritariamente, aos diálogos de Peter Keating e Ellsworth Toohey. Um exemplo é a visita de Peter a Howard Roark depois desse ter sido demitido da firma de John Eric Snyte e aberto seu próprio escritório: “Keating perguntou-se por que tinha que sentir aquela sensação nauseante de ressentimento, por que fora até ali esperando descobrir que a história era falsa, na esperança de encontrar Roark indeciso e disposto a se render.”[3] Outro exemplo é quando Ellsworth aconselha a buscar casos em vez perseguir o amor verdadeiro: “Quando era consultado sobre assuntos amorosos, Toohey aconselhava a entrega, caso se tratasse de um romance com uma mulherzinha encantadora e fácil, boa para algumas festas com bebedeira […] e renúncia, caso se tratasse de uma paixão profunda e emocional”.[4]
Em ambos os casos, Peter e Ellsworth esperam que os outros se rendam pragmaticamente de forma covarde à convenção ou a caprichos sem sentido. Em resumo, esperam que outros desistam de ser pessoas dedicadas a princípios. Ambos são motivados pelo mal. Peter, um homem de segunda mão (metafísico social)[5], não tem integridade e ressente a independência e o caráter exemplar de Howard. Ellsworth sente prazer ao controlar emocionalmente os outros, tornando-os dependentes dele. Peter é uma de suas vítimas, nesse caso.
Segundo, e esse é o uso positivo mais comum de “rendição”, que ocorre no contexto sexual e reflete a visão de Rand sobre a resposta apaixonada de um parceiro romântico para com o outro. Embora Rand foque primariamente na rendição feminina ou na submissão a um homem, ela expõe uma cena interessante em que Howard se entrega à Dominique Francon. Incluo aqui tal passagem como ilustração do ponto mais amplo de Rand sobre a natureza do amor romântico: sua ocorrência sempre se dá entre Howard e Dominique. Aqui estão alguns exemplos, (embora existam, pelo menos, outros seis como esse):
Era um ato que poderia ser executado com carinho, como um selo de amor, ou com desdém, como um símbolo de humilhação e conquista. Podia ser o ato de um amante, ou o ato de um soldado violentando uma mulher inimiga. Ele o realizou como um ato de desprezo. Não como amor, mas como violação. E foi isso que a fez ficar quieta e submeter-se. Um único gesto de carinho dele – e ela teria permanecido fria, intocada pelo que estava sendo feito ao seu corpo. Entretanto, o ato de um senhor tomando posse dela de forma vergonhosa e desdenhosa era o tipo de êxtase que ela havia desejado. Então ela o sentiu tremer com a agonia de um prazer insuportável até para ele, e soube que tinha dado isso a ele, que vinha dela, do corpo dela, e mordeu os lábios dele e entendeu o que ele queria que ela soubesse.[6]
Depois olhou para Roark. Estava em pé, nua, esperando, sentindo o espaço entre eles como uma pressão contra seu estômago, sabendo que era tortura para ele também e que era assim que ambos queriam. Então ele se levantou, andou até ela e, quando a abraçou, os braços dela se ergueram desejosos e […] sua boca na dele, em uma entrega mais violenta do que fora sua luta.[7]
Ela tentava demonstrar seu poder sobre ele. Não ia ao apartamento dele, esperando que ele viesse até ela. Roark estragava seus planos, vindo cedo demais, negando a ela a satisfação de saber que ele esperara e lutara contra seu desejo, rendendo-se de imediato […] Ele se ajoelhava e beijava seu tornozelo. Ele a vencia ao admitir o poder de Dominique; ela não podia ter a satisfação de exercê-lo. Ele se deitava aos pés dela e dizia: É claro que eu preciso de você. Fico louco quando a vejo. Você pode fazer comigo quase qualquer coisa que desejar. As palavras não soaram como uma rendição, porque não foram arrancadas dele, mas admitidas simples e voluntariamente.[8]
Embora alguns críticos considerem problemática a violência mesclada com prazer em passagens como essa, o que fica claro em ambas num contexto mais amplo do romance, e dos próprios comentários de Rand (3), é que ela entendia esse tipo intenso de prazer da rendição como uma experiência positiva. Apesar da linguagem obtusa às vezes usada por Dominique (como a pessoa internamente conflituosa ao longo de grande parte do romance), ela ama Howard. O sexo é uma declaração extática do melhor em Dominique com o que ela mais valora em Howard. Essa é Dominique em seu melhor até resolver seu conflito interno ao final do romance, quando ela finalmente incorpora com facilidade o desejo por uma felicidade unificada em público e por toda a vida, acordando, por fim, “com o sol em seus olhos”: Sabia que não poderia ter alcançado essa serenidade transparente a não ser como a soma de todas as cores, de toda a violência que ela havia conhecido. Howard… de livre e espontânea vontade, completamente e sempre… sem reservas, sem medo de nada que eles possam fazer com você ou comigo… de qualquer forma que você desejar…”[9]. Como Lloyd Drum destaca:“Em última instância, a rendição (entrega) de Dominique contém todos os temas básicos de “A Nascente”. É mais que uma rendição do corpo ao prazer corporal. É a rendição de uma alma às possibilidades extáticas do espírito humano.”[10]
Terceiro, aqui segue o uso positivo menos comum de rendição, mas que é, sem dúvida, o mais poderoso. Ele diz respeito ao sentido de rendição que, como Joshua Zader nota, está “mais alinhado” com o amor e ocorre “em tradições de crescimento pessoal e espiritual.”[11]. Existem três momentos em que Howard, Dominique e Gail Wynand se rendem por amor, mas não em um contexto sexual. O primeiro exemplo se dá quando Steve Mallory está trabalhando na escultura de Dominique para o Templo Stoddard, mas sem muita sorte até que Howard entra no chega no local: “Então viu o que passara o dia todo se esforçando para ver. Viu o corpo dela em pé diante dele, reto e tenso, a cabeça dela atirada para trás, os braços ao lado do corpo, com as palmas das mãos viradas para a frente, como ela havia posado em muitos dias. Mas agora seu corpo estava vivo, tão imóvel que parecia tremer, dizendo o que ele quisera ouvir: uma entrega orgulhosa, reverente e extasiada a uma visão que era só dela, o momento certo, o instante antes que a figura balançasse e quebrasse, o momento tocado pelo reflexo do que ela via.[12]
O segundo exemplo ocorre quando Howard relaxa após um mergulho na casa que ele construiu para Gail e Dominique: “Ela pensou: Esta é a homenagem a Gail, a confiança da entrega. Ele relaxa como um gato… e gatos não relaxam, a não ser que estejam com pessoas de quem gostam.[13]”
O terceiro exemplo ocorre quando Gail reflete sobre seu poder perante Howard enquanto estão num cruzeiro juntos no iate de Gail: “Nesse dia, haviam mergulhado juntos para nadar e Wynand subira a bordo primeiro. Em pé junto à amurada, observando Roark na água, ele pensou no poder que detinha nesse momento: podia dar ordens para o iate começar a se mover, ir embora e abandonar aquele corpo de cabeça ruiva ao sol e ao mar. O pensamento lhe dava prazer: a sensação de poder e a de rendição a Roark, sabendo que nenhuma força imaginável poderia forçá-lo a exercer esse poder.[14]”
O que surpreendente nesse terceiro uso de rendição é a retidão experimental e moral disso. De alguma forma, isso não se resume a alguma força externa à vontade do indivíduo, mas sim, é uma expressão profunda do senso mais fundamental do ser. Esses três indivíduos apresentam a expressão mais genuína de si próprios quando se rendem a um amor que sentem uns pelos outros que está enraizado no amor mais genuíno por quem são. Considero o comentário de Scott Schneider muito interessante: “Em todos os três casos, a rendição da vontade às emoções/valores. No caso negativo, são valores falsos ou anti-valores. Nos casos positivos, lutar contra tais valores seria contraditório, dado que os valores em questão vão à essência da pessoa, e a rendição o reconhecimento de tal fato.[15]
Rendição como expressão integradora dos valores mais elevados de um indivíduo pode ser vista como uma jornada espiritual em direção ao autoentendimento, ao crescimento e à plenitude. Quando contratado por Hopton Stoddard para construir o Tempo Stoddard, Hopton articula (reproduzindo as palavras plantadas por Ellsworth) sobre a espiritualidade não religiosa de Howard para com seu trabalho em face da admissão de seu ateísmo: Queremos capturar, em pedra, assim como outros capturaram em música, não uma doutrina restrita, mas sim a essência de toda religião. E qual é essa essência? A grande aspiração do espírito humano pelo mais elevado, o mais nobre, o melhor. O espírito humano como criador e conquistador do ideal. A grande força vivificante do universo. O espírito heroico humano. […] Você é um homem profundamente religioso, Sr. Roark… à sua própria maneira. Posso ver isso em seus prédios. […]Mas o que eu quero nesse prédio é o seu espírito. O seu espírito, Sr. Roark. Dê-me o melhor dele e terá feito o seu trabalho, assim como eu terei feito o meu.[16]”
Howard é então descrito como tendo “se dado conta de que acabara de aprender algo sobre si mesmo, sobre seus prédios, com esse homem que havia visto e sabido disso antes que ele soubesse,[17] É isso mesmo que Henry Cameron também detectou e disse a Howard num nível mais elementar, quando ele viu a foto da placa do primeiro escritório de Howard: “Howard Roark, arquiteto”:
“E sei que, se você carregar essas palavras até o fim, será uma vitória, Howard, não apenas para você, mas para algo que deve vencer, algo que move o mundo… E que nunca recebe nenhum reconhecimento. Vingará muitos que foram derrotados antes de você, que sofreram como você sofrerá. Que Deus o abençoe… Ou quem quer que seja aquele que vê o melhor, o mais alto nível que os corações humanos podem alcançar.”[18]
Todos esses termos religiosos/espirituais são a forma que Rand utilizou para se referir ao “eu”, um abraço amoroso do verdadeiro eu em sua maior complexidade que frequentemente alcança e se move além do pensamento consciente e discursivo. Se confiarmos, talvez nos rendermos, ao melhor dentro de nós, ouvindo o que ele tem a nos dizer, então poderemos crescer como indivíduos e em conexão com o melhor dos outros. “O mais elevado possível aos corações humanos” é encontrado aí, naqueles lugares além das palavras no mundo e em nosso SELF naquele mundo. É frequentemente em crenças conscientemente defendidas – falsas – que se intrometem/metem no caminho da plenitude individual. Os exemplos de Dominique e Gail ilustram tal ponto. Eles lutam contra Howard por causa de seus medos e crenças falsos. A salvação de Dominique é que ela finalmente aceita uma forma totalmente incorporada e integrada de seu amor do que Howard, em vez do que representa Gail. Ela finalmente entende uma das máximas de Ralph Waldo Emerson, que poderia ter sido pronunciada por Ayn Rand”: “confie em ti próprio: todo coração vibra a essa corda de ferro… nesse mundo, é fácil viver pela opinião dos outros; é fácil, na solidão, viver por conta própria; mas o grande homem é aquele que, em meio à multidão, mantém o prazer doce da independência da solidão.”
Muitas pessoas podem não se sentir confortáveis com o uso de rendição em A Nascente, mas sua linguagem cuidadosamente escolhida é inegável e precisa ser analisada pelo que é. A linguagem da rendição oferece insights sobre o significado, para um homem heroico, ser uma pessoa de “alma própria” e se tornar quem ela potencialmente é.
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Publicado originalmente em Become Who You Are.
Traduzido por Matheus Pacini.
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[1] Esse ensaio foi iniciado em 29 de julho de 2014 no Facebook em resposta a uma discussão geral sobre a natureza da submissão, rendição e obediência e se qualquer uma delas poderia ser compatível com os princípios objetivistas no tocante à racionalidade e à escolha. Gostaria de agraceder a Kurt Keefner por esse espaço e a Joshua Zader por seu feedback e promoção dessas discussões.
[2] Todas as citações foram extraídas da obra “A Nascente” de Ayn Rand, conforme edição citada a seguir.
[3] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol, p. 142
[4] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 332
[5] RAND, Ayn. A Virtude do Egoísmo. Trad. de On Line-Assessoria em Idiomas. Porto Alegre: Ed. Ortiz/IEE, 1991. p. 177
[6] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 238
[7] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 301
[8] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 342-343
[9] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 319
[10] DRUM, Lloyd. Comentários em meu post original de 29 de julho de 2014.
[11] ZADER, Joshua. Comentários em meu post original de 29 de julho de 2014.
[12] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 322
[13] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol II, p. 227
[14] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol II, p. 227
[15] Essa descrição de Dominique me recorda da pintura “Joana D´Arc) que escolhi acima para meu post.
[16] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 352-353
[17] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 353
[18] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 145