“Tudo que não é permitido por lei é proibido”. Essa afirmação resume o sistema legal da sociedade de Cântico após o “Grande Renascimento”. Existem regras para tudo: nenhum sorriso sem razão, amizades e paqueras são proibidas e, no final das contas, nada pode ser feito apenas para benefício próprio. Até mesmo explicar o desejo de fazer algo por razões totalmente egoístas é impossível já que a palavra “Eu” desapareceu do vocabulário. O propósito dessas regras é manter o controle pela abolição da individualidade; Igualdade, o personagem principal, planeja eliminá-las no processo de construção de uma nova sociedade.
A razão para todas essas regras é o desejo de evitar conflitos através do controle absoluto. Existem indícios de que, antes do “Grande Renascimento”, uma guerra tinha varrido o mundo. Igualdade reconta histórias que ouviu na escola sobre “grandes lutas” durante os Tempos Não Mencionáveis. Ao longo da história humana, guerras sangrentas – em especial, revoluções – foram normalmente seguidas de ditaduras. Napoleão se tornou imperador após a Revolução Francesa, e Stálin se tornou ditador após a Revolução Russa. Em ambos os casos, os cidadãos estavam cansados de lutar e dispostos a aceitar uma mudança que poria fim aos conflitos, mesmo à custa de um pouco de liberdade. Eles sentiram a necessidade de que algumas pessoas detivessem o controle, pois isso garantiria certo nível de paz.
Embora não fique totalmente claro, esse parece ser o caso de Cântico. As áreas que buscam ser controladas no romance são a linguagem e o pensamento. Fica claro que uma palavra muito importante está ausente no vocabulário de Igualdade – a palavra “Eu”. Da mesma forma que no romance 1984, o governo manipula a linguagem para tentar restringir os pensamentos das pessoas e, e grande medida, tem êxito. Por um tempo, Igualdade acredita ser impossível que ele seja mais inteligente que qualquer pessoa do Conselho dos Eruditos. Quando Igualdade flerta com Liberdade, ele menciona que não pode exteriorizar seus pensamentos sobre ela. Conforme o discurso indignado de um dos Eruditos, esse fica chocado pelo fato de Igualdade “ter tido a coragem de pensar”. Igualdade pensa que logo será condenado a morrer na floresta, pois supostamente ninguém havia sobrevivido nela, sem pensar no fato de que, se ninguém tinha saído de lá, o destino de quem entrou é, na verdade, desconhecido. O Conselho operava na ideia de que, se ninguém pensasse sobre rebelião, ninguém se rebelaria.
Outro aspecto da vida que o Conselho tenta controlar são as emoções e os relacionamentos. Embora Igualdade queira ser um erudito, ele foi treinado tão bem de que ter preferência é errado que se sente culpado, e fica inicialmente feliz ao ser designado como Varredor de Rua. Posteriormente, ele percebe que “é proibido não ser feliz”. Amizades também são proibidas, posto que envolvem preferir uma pessoa a outra. Medidas extras são tomadas para evitar relacionamentos ao se estabelecer uma cultura de medo. Como pensamentos individuais não são permitidos, debater envolve risco de desacordo, o que resultaria em punição para o proponente do diálogo. A política de relacionamento também afeta relacionamentos românticos; em vez do casamento como método natural de reprodução, os cidadãos “acasalam” como se fossem animais. Um bônus nesse sistema para o Conselho é que sabota totalmente a vida familiar e facilita a retirada dos filhos de suas mães, criando-os em instituições, uma estratégia que os países comunistas costumavam adotar para “educar” a próxima geração.
O propósito de controle ostensivo sobre todo aspecto da vida é erradicar a individualidade, evitando rebelião e conflito. Se todo mundo é exatamente igual, ninguém argumentará. Ser superior a outra pessoa e desejar ver o rosto de outrem são pecados. O consenso geral entre os membros do Conselho dos Eruditos ao qual Igualdade põe fim é “o que não é pensado por todos os homens não pode ser verdade”. A sociedade se tornou tão adepta à extinção das ideias originais que não existem cadeados ou guardas nas prisões, pois escapar não passa pela cabeça de ninguém. A cadeia simboliza a Cidade como um todo: não existem soldados ou polícia para manter a ordem porque se rebelar não passa pela cabeça de ninguém. Contudo, como os humanos não são robôs e não podem ser podados permanentemente de suas próprias singularidades, o sistema não é perfeito e surge um rebelde.
Igualdade tem opiniões próprias e consegue se livrar do coletivismo. Sua missão é começar uma nova sociedade governada pela palavra “ego”. Eu creio que os únicos tipos de regras nessa sociedade seriam a proteção das pessoas de agressões irracionais de terceiros, um objetivo que deveria ser a principal função do governo. Sua escolha proposital e independente de amigos e sua adoração da palavra “Eu” levam a pessoa a pensar que as leis deveriam ter o único propósito de promover as contribuições especificas de cada um. Cântico demonstra que leis equilibradas devem buscar proteger as pessoas, sem prejudicá-las. Embora diretrizes exaustivas possam parecer uma solução efetiva para evitar a guerra, elas levam, em última instância, à falta de progresso e à redução na qualidade de vida, uma combinação que gera frustração e, eventualmente, leva a mais conflitos. Apesar da tentativa do Conselho de dominar a sociedade, Igualdade desafia sua civilização ao exibir sua individualidade.
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Publicado originalmente em Ayn Rand Institute.
Traduzido por Matheus Pacini.
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