Quando jornalistas tribais tentam ‘cancelar’ Ayn Rand (Parte 1)

A divulgação imprecisa, desvirtuada, e até mesmo deliberadamente distorcida das ideias de Ayn Rand é comum na mídia desde sua primeira aparição pública. Esse fato surgiu em uma conversa dela com o editor do The Ayn Rand Lexicon – uma espécie de mini enciclopédia de sua filosofia, o Objetivismo. O editor, Harry Binswanger, conta que Rand ficou cada vez mais entusiasmada com esse projeto porque poderia, em parte, servir para corrigir e eliminar qualquer desculpa para a contínua desvirtuação de sua filosofia. Rand brincou com ele: “As pessoas poderão procurar a palavra CAFÉ DA MANHÃ e verificar que eu não defendi que devorem bebês no café.”

Mas artigos que deturpam ou distorcem totalmente as ideias de Rand seguem sendo publicados. Raramente são dignos de resposta. Dois artigos recentes sobre Rand – nas revistas Salon e New Republic – são diferentes. Não pelo que dizem sobre ela, mas pela forma como dizem.

Ambos levantam questões valiosas – pelo menos, nominalmente. Um deles questiona o apelo das ideias de Rand entre os jovens; o outro, fala sobre a relação entre o ideal moral de egoísmo de Rand e o presidente Trump. Além disso, ambos citam fontes, destacam fatos e até incluem um pouco de reportagem – tudo para embasar suas conclusões muito desfavoráveis. Para não dizer pior.

O que mais impressiona nesses artigos não é que sejam mal feitos, repletos de erros, tendenciosos ou maliciosos. Eles são. (E indicarei alguns, mas não todos seus erros e deturpações). Em vez disso, o que se destaca neles é que exemplificam uma mentalidade perniciosa que semeia o caos em nossa vida político-cultural. É um fenômeno mais amplo do que a forma como as pessoas lidam com Ayn Rand – mas quando ela é o tema, essa mentalidade se revela de forma clara.

Esses artigos exemplificam perfeitamente a mentalidade tribalista.

Antes de continuar, quero esclarecer algumas coisas. Sim, eu trabalho para o Ayn Rand Institute. Escrevo em uma publicação do ARI, e estou analisando artigos que retratam Rand de forma desfavorável. Mas, minha ideia principal não é vingar Rand, nem fazer ninguém mudar de ideia sobre ela, nem convencer ninguém de que seus críticos estão errados em sua avaliação (embora eu acredite que seja o caso).

O que eu quero mostrar – independentemente do que você já pense sobre Rand, se é que tem uma opinião – é que existe um problema fundamental nesses artigos, um problema que destrói sua credibilidade. Eles não procuram entender os fatos ou buscar a verdade, muito menos convencer qualquer leitor atento. Em vez disso, manipulam informações aparentemente factuais para afirmar e reforçar um conjunto de preconceitos.

Um sério problema entre os jovens?

O artigo “The Last of the Ayn Rand Acolytes,” de Alexander Sammon, foi publicado na New Republic, e parece fazer um questionamento válido. O texto afirma que “a atração do movimento [objetivista] perdeu boa parte de seu prestígio em um país desigual e devastado pela austeridade, especialmente quando se trata de atrair jovens recrutas que já compuseram a espinha dorsal da insurgência de Rand. Hoje em dia, todos esses jovens estão se tornando socialistas e comunistas”. Citando uma pesquisa sobre jovens americanos que apreciam o “socialismo”, o autor questiona se “a filosofia hipercapitalista de Rand” está “ficando sem bateria?”

Essa pergunta sobre o apelo de Rand é muito interessante, pois ele ultrapassou em muito a vida dela, indo muito além dos Estados Unidos e se tornando global. E é verdade que sua obra ressoa com força entre os jovens. Por quê? O que explica isso? Quanto disso tem relação com suas opiniões políticas, se é que tem alguma? Ou com sua poderosa dramatização ficcional de um novo ideal moral? Isso varia de leitor para leitor? Essas são algumas das perguntas em que meus colegas do ARI e eu pensamos muito. Cheguei à conclusão de que essas perguntas são enganosamente simples. Respondê-las exige uma grade quantidade de dados e um envolvimento sério com as diversas formas como a obra de Rand afeta indivíduos diferentes.

O repórter da New Republic decide que “só há uma forma de descobrir” se o Objetivismo está “ficando sem bateria”: participar da OCON 2019 do ARI à procura de pistas.

Mas é notável a falta de curiosidade do artigo acerca de sua questão principal. O repórter compareceu à conferência por alguns dias e entrevistou diversas pessoas. No entanto, essa reportagem local foi apenas uma oportunidade para reunir anedotas e citações, reforçando uma opinião preexistente. Observe o que o repórter considera um sinal de que o Objetivismo tem um “sério problema entre os jovens, e os organizadores da conferência sabiam bem disso”. O ARI, que coordena a conferência, “ofereceu um desconto para menores de 30 anos, um show de talentos e atividades extracurriculares, como ‘baladas noturnas’”.

Isso é evidência de quê? Vejamos o show de talentos. Poderia ser probatório se fosse exclusivamente voltado para os jovens (o artigo não dá nenhuma razão para acreditar nisso). Ou se tivesse sido incluído no programa como uma reação desesperada à queda de interesse (outra vez, não). A ‘balada noturna’ é um evento “extracurricular”, o que significa que foram os participantes, e não o ARI, que o organizaram, espontaneamente. Esse fato não apoia a ideia que o repórter tenta estabelecer – pode até servir como contraprova.

Por fim, o que se pode concluir do fato de pessoas com menos de 30 anos poderem se inscrever com desconto? Uma conclusão é que o ARI está interessado em atrair jovens e tornar sua participação mais fácil e acessível. Mas isso é exclusivo do movimento objetivista? Não. Descontos para estudantes e jovens estão por todo lugar (pense: cinema, transporte). Além disso, seria estranho demais se um movimento intelectual ou político não estivesse interessado em se conectar com os jovens.

É por isso que o mesmo tipo de desconto é oferecido pela Netroots Nation que, por exemplo, por “mais de uma década” “sediou a maior conferência anual de progressistas, atraindo quase três mil participantes de todo o país e do exterior”. Em 2019, se você tivesse 18 anos ou menos, teria pago apenas US$ 110 (descontados do ingresso inteiro de US$ 375) para participar da conferência. E isso ainda fica longe das “centenas” de bolsas integrais ou parciais que a Netroots ofereceu. Isso é prova, então, de que o movimento progressista nos EUA tem um “sério problema entre os jovens”?

Não há como chegar a uma conclusão razoável sobre a conferência do ARI, nem sobre o evento Netroots, quando essa é a evidência oferecida.

Um propósito ulterior

Qual é, então, o verdadeiro propósito do artigo da New Republic? A reportagem malfeita dá uma pista, porque não é mero desleixo. É proposital. Analisemos apenas um parágrafo, cujos fatos relevantes são verificáveis publicamente.

Sammon cita Yaron Brook, ex-presidente do ARI, dizendo que o primeiro programa do instituto foi focado nos jovens, e escreve:

Fiel a esse objetivo, o ARI passou a doar, anualmente, 400 mil cópias dos romances de Rand para programas avançados de ensino médio. Também ofereceu grandes prêmios em dinheiro para concursos de ensaios sobre os romances de Rand (só em 2018, jovens objetivistas fervorosos podiam ganhar bons US$ 130 mil).

Em apenas 44 palavras, há quatro erros factuais que tendem a um propósito.

  1. O artigo implica que o primeiro programa do ARI foi doar exemplares dos romances de Rand. Na verdade, o primeiro grande projeto do Instituto, em 1985, foi um concurso de ensaios sobre os romances de Rand. Apenas em 2002 – dezessete anos depois da fundação do ARI – é que inauguramos uma iniciativa para fornecer cópias gratuitas dos romances de Rand a professores para uso em sala de aula. Esse projeto nasceu como resposta a pedidos dos próprios professores. Até hoje, já doamos mais de quatro milhões de livros. Os professores continuam pedindo e nos dizem como seus alunos ficam intelectualmente energizados depois de ler os romances de Rand.
  2. O programa de livros gratuitos para professores nunca foi restrito aos cursos avançados.
  3. Os estudantes que participam de nossos concursos de ensaios podem concordar ou discordar das visões de Rand. Nunca houve uma exigência de que tivessem que ser “jovens objetivistas fervorosos” (que adotam a filosofia de Rand) para participar ou mesmo ganhar o prêmio. O que nos leva ao próximo erro tendencioso.
  4. Implicar que o ARI premia “ensaios” temáticos sobre Rand é factualmente errado. As perguntas elaboradas para esses concursos são pensadas para estimular um envolvimento profundo dos alunos com os romances de Rand, com o enredo, as motivações dos personagens e o tema filosófico do livro. Mais que isso, nossos critérios de julgamento (publicados on-line) afirmam: “Os ensaios serão julgados com base na capacidade do aluno de argumentar e justificar sua opinião – e não se o Instituto concorda com a visão expressa pelo estudante”. Dê uma olhada nas perguntas de 2020 e em alguns dos ensaios vencedores para formar sua própria opinião.

O tema que perpassa esses erros – e o artigo como um todo – é pintar uma imagem distorcida de Rand (e do movimento objetivista, por extensão). Há três elementos nessa imagem, nenhum deles fiel aos fatos.

Primeiro, é a banalização da filosofia de Rand, reduzindo seu apelo exclusivamente à defesa do capitalismo e a “encher o próprio bolso” (segundo frase de Sammon). Esse é o subtexto por trás dos erros que apontei e de muitos outros. Também fica evidente quando Sammon minimiza o fato relevante de que o tema da nossa conferência objetivista de 2019 era a teoria da arte de Rand.

Segundo, o movimento em torno das ideias de Rand é retratado como um fenômeno quase religioso, semelhante a um culto, com seguidores irracionais. Terceiro, e isso atende a um dos maiores propósitos do artigo, Rand é vista como a força motriz por trás da tribo da direita ou conservadora.

Caluniando para reafirmar preconceitos

Esta falsa imagem aparece em pequenas pinceladas ao longo do texto, mas a abertura do artigo é especialmente reveladora. Sammon afirma que os primeiros clubes de Ayn Rand, na década de 1960, eram governados por “oito regras”, e apenas duas delas podiam ser mencionadas publicamente: que Rand era o maior ser humano de todos os tempos, e que A revolta de Atlas era a maior conquista humana jamais alcançada. Depois, Sammon observa que, na conferência objetivista do verão passado, “todos pareciam estar de acordo”. Como evidência disso, ele menciona a fala de uma participante de 26 anos. Sammon conta que ela havia sido uma ambientalista declarada, mas depois de ler A revolta de Atlas, passou a acreditar que a solução é incentivar o desenvolvimento.

Esqueça as oito regras por enquanto (voltaremos a elas), e considere o exemplo da ex-ambientalista. Suponhamos que ela esteja sendo citada com precisão no artigo. Não importa o que você pense sobre questões ambientais ou Ayn Rand, isso não é um argumento coerente. Conheci fãs da A revolta de Atlas que acreditam que questões ambientais exigem controles regulatórios sobre o desenvolvimento. Você pode odiar A revolta de Atlas, ou simplesmente discordar dele, e ainda pensar que os problemas ambientais pedem mais – não menos – desenvolvimento e inovação. Basicamente, é essa visão que Steven Pinker expressa em seu livro O novo Iluminismo: Em defesa da razão, da ciência e do humanismo e, quer ele tenha lido os romances de Rand ou não, suas opiniões sobre questões-chave da filosofia, moral e política discordam fundamentalmente do Objetivismo. Podemos ficar dias listando exemplos contrários.

A alegação de Sammon não convence o leitor atento. O non sequitur fica bem flagrante. Qual é o objetivo da abertura do artigo? Se você já tem algum preconceito contra Rand e quem admira seu trabalho, o artigo gera uma reação emocional: afirma e reforça esse preconceito. De forma explícita (mas educadamente), é algo como: “Eu sempre soube. Eles são um bando de adoradores irracionais do dólar e da indústria gananciosa.”

Agora volte às “oito regras”. Nunca vi essas tais regras quando frequentava e ajudava a organizar grupos de estudos sobre Rand no campus, na década de 1990. De onde elas vêm? Siga o link fornecido no artigo de Sammon, e duas coisas ficam aparentes. O link nos leva a um artigo de Michael Shermer que cita mais uma fonte, um livro de memórias de Nathaniel Branden. É uma fonte, no mínimo, questionável, pois Branden e Rand se desentenderam (ela escreveu sobre isso em “To Whom It May Concern,” The Objectivist, maio de 1968).

Desde que romperam pessoal e profissionalmente, Branden manteve uma animosidade contínua e publicamente declarada contra Rand e suas ideias, e um interesse pessoal em difamá-la e se vingar. Mas o problema é maior que isso: suas próprias memórias o retratam como um mentiroso prolífico, o que lança dúvidas sobre a credibilidade do livro como um todo. Mas se você acha que ele merece crédito, ainda há o fato de que Sammon, no artigo, consegue citar mal até essa fonte (duvidosa) com relação a essas supostas “regras”. As palavras usadas por Branden são “premissas implícitas” que sua organização, o Nathaniel Branden Institute, “transmitiu aos nossos alunos”. Sammon pega uma alegação estranha do rancoroso Branden e a torna ainda mais tendenciosa.

Mas há um problema ainda maior aqui. É obrigação dos jornalistas serem críticos não apenas sobre o que veem, ouvem e leem, mas também se preocupar com fontes originais e evidências em primeira mão. Assim, um bom lugar para procurar seria na própria Rand, seus textos publicados, suas aparições na mídia e seus discursos. Embora tivesse orgulho de A revolta de Atlas e possuísse autoestima, ela teria repudiado veementemente essas “oito regras” precisamente por sua ordem de submissão à autoridade. A ideia clara de tudo que ela escreveu e falou é a suprema importância de pensar de forma independente, sem colocar nada – nenhuma autoridade – acima do julgamento de sua própria mente. Ignorar essa contraprova, fingir que ela não existe, é negligência profissional.

Novamente: minha ideia aqui não é fazer você mudar de ideia sobre Rand ou seu pensamento, mas mostrar que o artigo de Sammon não tem interesse em convencer com fatos e lógica. Ele só piora uma certa tendência com o objetivo de reafirmar certos preconceitos.

Uma inimizade tribal

Isso nos leva ao terceiro elemento da distorção da imagem de Rand e do movimento em torno de suas ideias: a noção de que ela é o poder oculto por trás de outra grande tribo de nossa cultura – o movimento conservador/de direita. Esse clichê já rola por aí há muitos anos. Imagine que alívio seria, para quem ainda acredita nesse clichê quase conspiratório, ouvir que o fenômeno Rand está enfraquecido.

Rand influenciou ativistas, intelectuais, políticos e outros que se definem como libertários, republicanos ou conservadores? Claro que sim. Mas essa influência está longe de ser direta ou uniforme. Para começar, Rand censurou os movimentos conservador e libertário de sua época; ela entendia que esses movimentos eram, cada um à sua maneira, intelectualmente falidos e subversivos à liberdade. Rand também não pertence à categoria vaga de “direita” ou “conservadora” por causa de suas opiniões. Por exemplo, o Objetivismo rejeita o sobrenatural em todas as suas formas, incluindo – enfaticamente – a religião. Ou considere, também, sua visão ética sobre o aborto como direito moral das mulheres.

Outro contraponto ao clichê é o fato de os romances de Rand serem citados por famosos de Hollywood que se veem como simpáticos, quando não totalmente favoráveis, a causas progressistas. Por exemplo, Angelina Jolie, Mayim Bialik e Emma Watson, entre outros, disseram que a ficção de Rand causou um forte impacto em suas vidas. A questão, então, é que a influência de Rand é multifacetada, vai muito além das questões políticas e não se limita pelo enquadramento convencional de esquerda e direita.

Por essas e outras razões, é falso presumir que Rand é universalmente admirada ou que sua influência é uniforme entre pessoas de direita. Há conservadores e libertários autodeclarados que a desprezam, talvez até mais do que alguns progressistas ou socialistas democráticos.

Sem levar esses fatos em consideração, não é possível formar uma visão da influência cultural de Rand. É ridículo imaginar que sua filosofia sustenta o movimento conservador. Vindo de quem se opõe a suas opiniões, essa ideia é um preconceito.

Sammon parece não ter plena consciência de que o clichê “Rand alimenta a direita” é problemático. (E ele nem quer saber). Em vez disso, menciona vários políticos que afirmam gostar de Rand, mas cujas políticas fogem de seu ideal de capitalismo laissez-faire. É um fenômeno fascinante que deveria levantar dezenas de perguntas em um jornalista que tenta entender o impacto e o apelo de Rand.

Por exemplo: se um admirador declarado das ideias dela entrar na política, mas aprovar políticas que se opõem ao Objetivismo, significa que ele está traindo essas ideias? Ou isso seria evidência de que sua compreensão dessas ideias era superficial, incompleta ou inexistente? Ou que ele se identificou não com suas ideias políticas, mas, talvez, com a confiança moral de seus heróis? Ou sua representação heroica da realização produtiva? De forma mais ampla, o que é influenciar um indivíduo, para uma filosofia radical que desafia convenções? É um efeito repentino – tudo ou nada – ou tem graduações de acordo com o passar do tempo?

Nenhum desses temas (ou muitos outros que eu poderia citar) é aprofundado no artigo de Sammon. Não há uma tentativa de lidar com a verdadeira natureza e a magnitude do impacto cultural de Rand. Para Sammon, cuja intenção é retratar Rand e o Objetivismo com um tom religioso, há apenas “peregrinos” e “traidores”. No final do artigo, a pergunta que aparentemente o motivou continua sem resposta: o apelo de Rand entre os jovens está diminuindo? Essa pergunta serve, no máximo, como um gancho para fazer o artigo parecer atual. Em vez de tratar dessa questão, o autor criou uma narrativa que acalma os ânimos do leitor progressista tribalista — e que pouco convence um leitor crítico. Sua mensagem é: não se preocupe, o fenômeno Rand — e a odiosa tribo “conservadora” que ela alimenta — já era.

Fim da Parte 1. Confira a parte 2 na próxima semana.

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Publicado originalmente em The New Ideal.

Traduzido por Matheus Pacini.

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