Qual foi a última vez que um filme, livro ou música melhorou sua vida de um jeito tão profundo que, se desaparecesse amanhã, você ficaria de luto? Talvez, o homem mais cético do mundo diria que esse sentimento é irreal e inalcançável e, não me surpreenderia, se o homem mais comum concordasse com ele. Afirmo isso, pois, de todas as obras que provocaram em mim tal emoção, nenhuma delas foi realizada nas últimas décadas.
É notável perceber que o mesmo século que se apequena frente aos anteriores em questão de produção cultural, é o mesmo que conta estórias revolucionárias que destacam, pela primeira vez em seu enredo, problemas espirituais[1] não materiais. Atualmente, a ameaça não é mais a pobreza extrema, visto que ela se tornou exceção[2], mas sim a apreensão amortecedora proveniente da certeza de que tudo, a qualquer momento, pode mudar – e não para melhor. Essa sensação é semelhante àquela de um homem na trincheira, esperando o próximo movimento do inimigo, com a única diferença sendo a certeza da invisibilidade de tal adversário. A guerra escapou do plano físico e atingiu, pela primeira vez desde à Idade Média, o plano mental, e não por um fervor religioso que rejeita a realidade, mas por uma certeza convicta de que a existência não existe, ou que, se existe, não a atingimos através da razão. Nas palavras de uma pessoa melhor que eu, é a primeira vez na história que as pessoas se preocupam tanto com questões grandiosas, e se mostram tão ineficazes em respondê-las.[3]
Os acadêmicos das humanidades, e a majestosa e outrora nobre instituição que integram, esforçam-se não para preencher o vácuo deixado por anos de táticas de terra arrasada aplicada pelos contra-iluministas[4], mas continuam as obras desses até o seu extremo lógico, resultando em negações completas de todas as grandes tecnologias originadas na Era das Luzes. Da biologia ao capitalismo, negam todas as benesses concretizadas por heróis do passado e, dessa forma, soltam ao vento o destino da civilização. Através de sofismas e falácias, apagam da memória comum o papel do pensamento na vida do homem. Certos esquecimentos como esse custam caro.
Quando o mal vence batalhas, duvidamos da capacidade do bem de vencer a guerra, e isso é apenas mais uma porta para a permanência da corrupção. O bem, frente ao mal, conquista a vitória sempre[5], afinal o maligno é incapaz de obter valores na realidade, mas ser bom, inteiramente bom, mostra-se muito mais difícil que ser mal. Uma pitada de veneno na comida já a faz intragável; um pouco de depravação enegrece a alma humana. No final das contas, somos uma soma de ações independentes que criam uma imagem mosaica das nossas escolhas: quando aceitamos uma incoerência, uma irracionalidade, o mosaico inteiro é prejudicado. De mesma forma, os iluministas, que trouxeram as luzes de volta para a civilização ocidental, construíram sistemas incoerentes[6] e propuseram argumentos contraditórios que, por fim, tornaram todos os seus avanços insustentáveis.
Essa falha filosófica abriu os portões do inferno, para os céticos, junto com o demônio descartiano[7], inserirem dúvidas graves nas sociedades ocidentais. Como um cupim que devora de dentro para fora, tais dúvidas atacaram primeiro a essência de qualquer ser humano – a autoestima – via a incapacidade dos iluministas de desenvolver um código de ética que rompesse com os fundamentos platônicos aceitos pelo cristianismo. Ao fazer os defensores da razão epistemológica e da liberdade política aceitarem uma culpa imerecida no plano ético, desmonta-se a convicção necessária para que exerçam sua vontade no mundo.
Abandonado o campo filosófico, o homem racional se esconde nas ciências da natureza, local aparentemente distante da ética. Assim, ele deixa livre para a ceia das traças as áreas fundamentais para a vida terrena: para impedir (controlar) a expansão da dúvida, isola a ciência dos valores – já dominados pelos relativistas – nascendo, assim, a tradição positivista[8]. Maravilhas tecnológicas mudam o mundo enquanto ideias malignas tomam a filosofia e, por consequência, a falta de convicção se torna hegemônica. Quando chega a hora de confrontar os céticos, os positivistas corroídos por contradições internas falham. Os grandes campeões da ciência sofrem uma queda semelhante à de Otelo, provocada pelas próprias dúvidas, encalcadas por arqui-vilões a lá Iago[9]
Em lugar dos positivistas e seus desdobramentos, o vácuo é preenchido por mais vácuo, agora com um nome: pós-modernismo. Caracterizado pelo seu relativismo completo e por uma iconoclastia cujo alvo é a beleza e a racionalidade, essa escola do pensamento filosófico fundamenta uma visão completamente antirrealista do mundo, onde cada pessoa experiencia uma realidade própria ao seu grupo identitário, sendo ela definida não por suas escolhas, mas por suas características físicas ou condições de opressão. Essa visão de mundo constrói uma proposição devastadora, a saber: você é um fragmento de um coletivo, que não possui capacidade de pensar por contra própria. Logo, penetra-se no ambiente cultural, devido a sua origem psico-epistemológica[10], uma sensação de desvencilhamento, de desconexão, uma vez que é impossível produzir conhecimento, valores e diálogos se não se tem a capacidade de pensar por si próprio. Como uma moeda sem lastro gera uma economia doente, cultura sem lastro filosófico gera uma sociedade doente[11]. E a arte é primeira a sofrer esse golpe, pois, a primeira característica a mostrar a enfermidade de um homem, é sua aparência.
Insuficiência hepática amarela olhos e pele, anemia empalidece a face, insônia se transforma em olheiras, e a falta de convicção filosófica empobrece a arte. Dentre os sintomas na arte, citam-se: (i) banalização: a arte se torna a representação jornalística de fatos[12]; (ii) corrupção: a arte se torna método de criticar o bom porque é bom e destruí-lo[13]; ideologização: a arte se torna veículo de doutrinação política[14]. Todas essas maneiras de expressão se mostram antônimas à própria definição de arte, dada por Ayn rand em seu Manifesto Romântico que é: A recriação da realidade de forma a expressar em essenciais valores metafísicos[15]. Sem eles a arte se torna mera linguagem, se torna um meio para um fim, se torna mais um objeto no mundo. A arte morre.
E a pergunta, então, se torna: como salvá-la, como impedir o falecimento de algo tão importante para a mente humana? Faculdade cognitiva que há tempos constrói prédios que arranhavam os céus e mostravam o poder humano de expandir a própria realidade, que fez com que a vida do pobre atual fosse melhor do que a de um milionário de 100 anos atrás[16], essa que consegue hoje desenvolver óculos que trazem cores para o mundo de um daltônico. E no final, a mente humana precisa da arte para concretizar coisas que sem ela a visualização seria impossível. A arte, como a planta de um prédio, trás para a realidade um planejamento daquilo que o mundo pode e deve ser. Sem ela, possibilitar o incrível seria inexequível. Se não achamos hoje aquilo que pode nos tornar melhores, olhamos para aquilo que nos tornou o que somos.
Se no presente a esperança não existe, podemos buscar no que já houve a inspiração que nos falta. Li Dostoievski e ele me mostrou os horrores que os homens podem realizar; li Ibsen e ele me mostrou a força do Individualismo; li Shakespeare e ele me mostrou o pior humano que já existiu; li Corneille e ele me mostrou a condição heroica que o homem pode atingir; li Sófocles e ele apresentou-me a mulher mais forte e determinada já criada; li Rand e ela me mostrou tudo isso. E assim como ela, recuso-me a aceitar meramente o que herdo, na esperança de um dia construir algo tão belo e potente quanto todos esses mestres fizeram outrora. Até lá expresso minha gratidão, pois é tudo, tudo aquilo que posso fazer pelas grandes mentes que trouxeram tamanha beleza que, nem na mais densa escuridão, pode ser ignorada.
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Revisado por Matheus Pacini.
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[1] Uso espiritual aqui e em qualquer outro momento no texto não para representar algo supernatural e místico, mas como uma referência aos valores imateriais da consciência humana.
[2] Checar o trabalho estatístico “Global Extreme Poverty” de Max Roser and Esteban Ortiz-Ospina (2018).
[3] Paráfrase das palavras de Ayn Rand no sétimo artigo de seu livro Philosophy:Who Needs It, p. 58.
[4] Grupo formado por Rousseau, Kant, Hegel, Nietzche e Heidegger, segundo Stephen Hicks em seu livro Entendendo o Pós-Modernismo.
[5] Princípio do mal impotente e da virtude como prática. Ler Objetivismo: a filosofia de Ayn Rand de Leonard Peikoff, p. 325.
[6] Locke, o mais importante teórico político; Adam Smith, um dos maiores economistas já vivos. Os pais fundadores, que uniram o melhor dos dois, fundaram um sistema político genial que protegia as liberdades individuais, porém com uma base ética altruísta cristã.
[7] Argumento do demônio maligno que insere a falibilidade no ser humano, e faz Descartes questionar a percepção. Verifique o livro Meditações sobre o método, p.138.
[8] Autores principais: Comte e o Círculo de Viena,
[9] Iago usa o amor intenso de Otelo por Desdemona para despi-lo de seu caráter
[10] Psico-epistemologia é a interação entre a mente consciente e a parte automática da mente. Ou seja, é a ponte entre a identidade da consciência e a filosofia que a pessoa escolhe. Nesse caso, foco no impacto de uma filosofia na forma de pensar de alguém.
[11] Ver o texto Gold and Economic Freedom no livro Capitalism the Unknown Ideal de Ayn Rand.
[12] O mote naturalista da “arte como um recorte da vida’’ mostra essa banalização em seu extremo, isto é, a arbitrariedade como a melhor forma de se contar uma história.
[13] A "Fonte" de Duchamp mostra literalmente essa tentativa de destruir o bom. A arte vira sinônimo de "quebrar paradigmas e não "produzir beleza".
[14] Panfletagem política através da arte é a coisa mais comum que existe. O cenário americano é o melhor exemplo, o vídeoclipe mais famoso do momento é uma apologia ao pensamento anti-armamentista e ao Black Lives Matter.
[15] RAND, Ayn. The Romantic Manifesto. New York: Signet, 1971. p.45.