Por que a ética atual não oferece orientação real?

A filosofia é normalmente considerada uma questão acadêmica, sem vínculos os problemas práticos da vida cotidiana. Os filósofos que desejam promover a relevância de sua área invariavelmente apontam para um ramo da filosofia que parece ter implicações óbvias para a forma como agimos no mundo: a ética, o estudo do certo e errado.

No entanto, não vemos multidões batendo na porta dos departamentos de filosofia das universidades em busca de conselhos práticos sobre decisões importantes na vida. De modo geral, estudantes só cursam a disciplina Ética porque é obrigatória, não para responder questões importantes. Poucos (se é que algum) livros sobre ética de filósofos renomados lideram as listas dos mais vendidos. Por que os atuais eticistas acadêmicos não conseguem vender os méritos de sua pesquisa?

Revelando a confusão da ética acadêmica

Uma história recente do mundo da ética acadêmica dá pistas importantes sobre o motivo de sua aparente irrelevância.

Em uma publicação no blog da American Philosophical Association especulando sobre as carências da educação ética atual (e o que pode explicar as falhas de caráter de seus professores), o professor de filosofia Michael Sigrist cita uma lista útil de casos normalmente abordados nos manuais de ética acadêmica: “Aborto, tortura, caridade, consumo de carne, prostituição, mercado de órgãos, mudança climática, pobreza, controle de armas, procriação, direitos reprodutivos etc.” Essa lista nos diz algo importante sobre como os eticistas atuais abordam o tema de sua área.

Sigrist sugere que há algo em comum entre todos eles: são de “interesse público, não pessoal”. Ele pensa que isso explica por que a ética acadêmica parece irrelevante para muitos: pode até nos ajudar a formar visões corretas acerca de políticas públicas, mas fornece pouca orientação sobre como se tornar uma pessoa boa. “Pensamento ético que busca ser público e impessoal, e pensamento ético que surge da essência e particularidade da vida real de um indivíduo, não são a mesma coisa.”[1]

É verdade que a maioria dos cursos de ética não lida com a “essência e particularidade da vida real de indivíduo”. Mas o único motivo disso é a obsessão dos filosófos com políticas públicas? Ou há outro motivo?

Outro exemplo adorado pelos acadêmicos, que Sigrist não menciona, sugere uma explicação diferente. Eticistas gastam galões de tinta debatendo sobre o “dilema do bonde”: se você estivesse num bonde desgovernado, prestes a atropelar um grupo de pessoas, você deveria mudar de faixa, se tivesse a chance de atropelar apenas uma? Esse cenário e inúmeras variações dele são um tema popular na ética acadêmica, jocosamente chamado de “bondeologia”. (Em inglês: trolleyology.)[2]. Mas esse é um cenário que dificilmente uma pessoa enfrentará em sua vida – a não ser que faça parte de um sitcom de fantasia.[3]

O que realmente está por trás do conjunto peculiar de casos tão estudados pelos eticistas acadêmicos?

O vazio de tentar resolver dilemas sobre conflitos

Todos os casos presentes nos manuais acadêmicos envolvem situações em que existe conflito entre as partes envolvidas. Essa é uma pista de o porquê os eticistas insistem nesses casos: pensam que, em cada caso, o ganho de alguém deve vir à custa do sacrifício de outrem.

Considere a ideia de que a caridade seja o foco principal da moralidade. Você deve gastar seu dinheiro consigo mesmo ou doá-lo para mitigar a miséria? No suposto conflito entre manter seus luxos e atender as necessidades dos outros, eticistas acadêmicos como Peter Singer argumentam que você tem a obrigação de abrir mão de suas comodidades de classe média para ajudar pessoas famintas em todo o mundo.[4]

Considere o aborto. Um feto indesejado é um fardo para a mãe, mas os oponentes do aborto pregam que ela deve se sacrificar por ele. Os defensores do aborto, em vez disso, argumentam que, mesmo que o feto tenha interesses e direitos, os interesses e direitos da mãe superam os dele e, portanto, justifica-se que o bebê seja sacrificado.[5]

O dilema do bonde é especialmente elucidativo. É expressamente um “experimento mental” para testar como nossas “intuições” éticas respondem quando alguns de nossos valores mais queridos são artificialmente colocados em conflito entre si. O que valoramos mais? A vida de um ente querido preso em um trilho, ou a vida de vários inocentes desconhecidos? A vida de vários desconhecidos ou a integridade de não ser a pessoa que decide quem morrerá? Eticistas presumem que a ética diz respeito à formulação de princípios para selecionar o objeto de sacrifício, e sua pergunta é: Quem deve ser sacrificado por quem?

Quando a ética se concentra em casos como esses, eticistas se veem como árbitros cujo trabalho é julgar quando “jogadores” da partida moral entram em conflito. Esses julgamentos, então, exigem que um ou outro jogador sacrifique algo, por razões que nada têm a ver com os interesses pessoais do jogador.

Logo, não surpreende que uma ética focada na resolução de conflitos de interesse tenha poucos conselhos a dar às pessoas que não precisam tomar decisões de soma zero. Eticistas como Singer, que nos conclamam a abrir mão dos confortos materiais pelo bem dos necessitados, não fornecem orientação positiva sobre como escolher uma carreira, que relações sociais cultivar, etc. O único conselho é sacrificar os frutos dessas atividades em prol daqueles que têm menos. Eticistas com o mesmo foco que defendem o direito ao aborto geralmente têm pouco a dizer sobre quais são as melhores ou piores razões para abortar, ter filhos, fazer sexo, relacionar-se com outras pessoas e assim por diante.

Enquanto isso, eticistas que estudam a “bondeologia” precisam justificar sua investigação, e sugerem que ela pode oferecer conselhos aos programadores de carros autônomos.[6] Outros até sugerem que, no mundo pós-coronavírus, enfrentamos um dilema semelhante na decisão de manter os lockdowns ou abrir a economia.[7] Mas existem muitas diferenças entre esses problemas da vida real e o experimento mental acadêmico.[8] Eticistas que pensam sobre bondes nem buscam fornecer orientação sobre como resolver dilemas semelhantes da vida real, caso surjam. Sua preocupação é se as “intuições” relativas ao experimento mental podem apoiar princípios éticos – e há pouco acordo sobre se apoiam.

Até que eles possam concordar sobre como apoiar os princípios éticos para navegar em uma vida comum, é improvável que possam responder a perguntas sobre casos de emergência extraordinários.

É verdade que princípios éticos às vezes são úteis para resolver conflitos entre as pessoas. Notavelmente, o conceito de direitos nos ajuda a negociar limites entre os indivíduos a fim de evitar conflitos. Embora essa seja uma questão importante na ética social, o tema da ética é muito mais amplo.

A ética guia as escolhas sobre caráter

Como os eticistas podem rever o tema de sua área? Considere o exemplo de uma ilha deserta em que não há possibilidade real de conflito social. Um náufrago como Robinson Crusoé deve tomar muitas decisões, e não apenas sobre questões práticas como comida e abrigo. Enfrentará ele o fato de que está preso, aprendendo o que é necessário para sobreviver, ou irá mentir para si mesmo, fingindo que logo será resgatado? Se ele falhar em algumas tarefas, tentará aprender com seus erros e melhorar suas táticas, ou se resignará a pensar que é incompetente para sobreviver? Irá efetivamente valorizar sua vida e assumir a responsabilidade de vivê-la, ou desistirá dela, deixando a natureza seguir seu curso? Essas escolhas dizem respeito ao tipo de caráter que Crusoé acaba desenvolvendo. São escolhas de valores morais básicos.

As escolhas de valores que enfrentamos se tornam mais complexas numa sociedade baseada em divisão do trabalho, mas sua preocupação central ainda é nossa relação com a realidade, não apenas nossa relação com terceiros. Escolheremos uma carreira segundo nossos próprios interesses e talentos, ou, acriticamente, segundo padrões e expectativas da família ou de figuras de autoridade? Escolheremos prazeres que nos desafiem a extrair cada porção de alegria da vida, ou aqueles que suprimem a dor e o vazio de uma vida passiva? Escolheremos relacionamentos com pessoas que nos inspiram a buscar a excelência em nossa vida, ou com aquelas que nos ajudam a fingir que a mediocridade é aceitável? Mesmo essa última questão, que só diz respeito ao relacionamento com os outros, depende de fazer uma escolha sobre o valor de sua própria vida.

A ética diz respeito às nossas escolhas de ação mais importantes no mundo, envolvendo ou não relacionamentos com outras pessoas (para não mencionar relacionamentos conflitantes). E a ética nem mesmo trata primariamente da escolha de ações certas ou erradas. Trata da escolha entre o tipo de vida certo e errado, sobre que tipo de caráter você quer desenvolver, que tipo de pessoa você quer ser. Uma ética que se concentra apenas nas escolhas que fazemos sobre aspectos menos relevantes da vida (como nossos relacionamentos conflituosos com terceiros) não nos ajuda a tecer o resto de seu tecido.

Fora dos construtos artificiais com bondes (e das ditaduras da vida real que, de fato, impõem dilemas impossíveis do estilo Escolha de Sofia), não temos que escolher entre sacrificar os interesses dos outros aos nossos e sacrificar nossos próprios interesses aos deles. É possível ter uma existência independente, guiada por valores que buscam o desenvolvimento de um caráter saudável.

Reconhecer que uma vida de conflito com os outros não é inevitável ataca frontalmente a suposição de que o único código ético viável é aquele que nos conclama a sacrificar nossos próprios interesses em prol dos supostos interesses de terceiros. Como Ayn ​​Rand argumentou, é a popularidade da teoria altruísta da moralidade (a teoria que iguala o tema da moralidade às escolhas de sacrifício) que devemos considerar responsável ​​pela visão generalizada de que a moralidade não tem relevância para a vida cotidiana:

“O altruísmo declara que qualquer ação praticada em benefício dos outros é boa, e qualquer ação praticada em nosso próprio benefício é má. Assim, o beneficiário de uma ação é o único critério de valor moral (…).

Observe o que este critério moral, que considera apenas o beneficiário, faz à vida de um homem. A primeira coisa que ele aprende é que a moralidade é sua inimiga: não ganha nada com ela, apenas perde; tudo o que ele pode esperar são perdas auto-impostas, dores auto-impostas e o manto cinzento e deprimente de uma obrigação incompreensível. (…) Exceto nos momentos em que conseguir realizar algum ato de auto sacrifício, ele carecerá, como pessoa, de qualquer significado moral: a moralidade não toma conhecimento dele e não tem nada a dizer-lhe como orientação nas questões cruciais de sua vida; esta é somente sua vida pessoal, privada, “egoísta” e, como tal, é considerada, ou maléfica ou, na melhor das hipóteses, “amoral”.[9]

A ideia de que a ética é um código de valores de que precisamos para guiar nossa vida como um todo informa a própria visão de Rand sobre a virtude moral, que ela desenvolve longamente em seu ensaio “A ética objetivista” (disponível no livro A virtude do egoísmo). Ela também não foi a primeira a ver as coisas dessa forma. Toda a ética grega antiga, de Sócrates, passando por Aristóteles e os estóicos, tinha uma visão semelhante, embora todas diferissem em aspectos importantes, por exemplo, em que consiste uma vida moralmente virtuosa.

Se eticistas atuais desejam fornecer orientação real para a vida, devem rever sua suposição de que a ética trata apenas de resolver conflitos, e de que eles mandam nela. A vida não é um jogo de soma zero, e a ética não deveria ser sobre a solução de quebra-dilemas inventados como parte de tal jogo.

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Publicado originalmente em New Ideal.

Tradução por Ramiro Kord.

Revisado por Matheus Pacini.

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[1] Sigrist acredita que pensar sobre questões de interesse público requer a busca de princípios universais abstratos aplicáveis ​​em diversos casos, enquanto que pensar sobre preocupações pessoais significa “pensar com sentimentos, desejos, motivações e valores”. O diagnóstico de Sigrist sobre o problema aponta para algo importante, mas não por alguma dicotomia entre princípios abstratos e sentimento sobre casos particulares. Um dos autores da pesquisa original sobre as falhas éticas dos eticistas prontamente respondeu a Sigrist e observou que ele falsamente presume que os filósofos nunca aplicam seus princípios às suas próprias decisões pessoais e que as pessoas comuns nunca confiam em princípios para pensar em suas próprias tomadas de decisão. Acho que isso é basicamente correto: é um erro pensar que podemos dividir tão nitidamente o pensamento abstrato de nossas emoções: nossas emoções são simplesmente reações automatizadas à luz de nosso pensamento abstrato passado. O verdadeiro problema está no tipo de abstrações que os filósofos privilegiam em seus estudos.

[2] Um resumo útil sobre o debate pode ser encontrado no artigo da Wikipédia sobre o dilema do bonde. Ver também David Edmonds, Would You Kill the Fat Man?: The Trolley Problem and What Your Answer Tells Us about Right and Wrong (Princeton, NJ: Princeton University Press, 2015).

[3] Ver “The Good Place – O Dilema do Bonde”. Dublado ou Áudio Original (Sem Legendas). Postado no YouTube pela conta oficial do seriado, 19 de outubro de 2017.

[4] Peter Singer, Famine, Affluence, and Morality (Oxford: Oxford University Press, 2016). Para mais sobre o que penso que há de errado com a abordagem inteira de Singer, veja meu artigo “The Man Biting the Hands of Creators Who Feed the World,” New Ideal, 1º de agosto de 2018.

[5] Judith Jarvis Thomson, “A Defense of Abortion”, Philosophy and Public Affairs 1 (Winter 1973): 47–66. Para mais sobre por que penso que é inadequado pensar no embrião ou feto como tendo interesses ou direitos, veja meu artigo “Science without Philosophy Can’t Resolve Abortion Debate”, New Ideal, 27 de agosto de 2018.

[6] Jack Denton, “Is the Trolley Problem Derailing the Ethics of Self-Driving Cars?,” PSMag.com, 29 de novembro de 2018.

[7] Gian Volpicelli, “Boris Johnson Is about to Face His Coronavirus Trolley Problem,” Wired, 8 de maio de 2020.

[8] Em ambos os casos, há pouca certeza sobre como medir e comparar os resultados das escolhas. Especialmente na pandemia, as pessoas cujas vidas ficam sob ameaça frente ao fim dos lockdowns não são peões inanimados como as vítimas do dilema do bonde: elas sabem que os lockdowns estão sendo desfeitos e têm liberdade para tomar medidas para se protegerem, permanecendo em casa tanto quanto queiram. Ver Robin Koerner, A Covid-19 e o Dilema do Bonde: estamos nos trilhos e o governo está na direção, Gazeta do Povo, 27 de março de 2020.

[9] [9] Ayn Rand, “Introdução”, A Virtude do Egoísmo. Porto Alegre: Editora Ortiz S/A. 1991.

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