Imagine a seguinte situação: você acabou de ler a A Revolta de Atlas, tendo terminado A Nascente alguns meses antes. Um de seus melhores amigos, quem você não vê há anos, virá visitá-lo, e você está empolgado com a chance de apresentar a ele as poderosas ideias de Ayn Rand. Quando você pronuncia o nome dela, o rosto de seu amigo parece mudar. A inquietude toma conta de sua face. Ele fala em um tom preocupado, cauteloso: “egoísmo não é uma virtude, não se deixe convencer pelo culto objetivista. Como ser ganancioso e ferrar com os outros em prol de seu autointeresse egoísta ser algo bom?” Você, então, passa a explicar as ideias de Rand e qual o real significado de egoísmo racional. O rosto dele volta ao estado normal, calmo, mas dessa vez há um brilho em seus olhos, a felicidade de ter aprendido algo importante. “Desculpe por ter sido tão rápido em tirar conclusões, mas estou tão acostumado ao egoísmo ser condenado como comportamento impensado e arrogante que nunca tirei tempo para considerar que Ayn Rand poderia estar usando a palavra de forma diferente”, confessa seu amigo. Da próxima vez que você o ver, ambos terão lido os romances e a conversa tratará de qual deles é o melhor. Seu amigo conclui: “ambos são romances maravilhosos, é impossível escolher!”
Percebi que muitas pessoas são normalmente se afastam dos romances de Ayn Rand (em especial, A Revolta de Atlas), e de sua filosofia (Objetivismo), por duas razões: a condenação do altruísmo, que entendem como indisposição a ajudar o próximo; e o elogio ao egoísmo, que entendem como um apoio à ganância irracional e à arrogância. Embora suas percepções não correspondam às concepções da obra de Rand, é importante constatar tal fato quando da apresentação do Objetivismo a outras pessoas. Se quisermos que as ideias de Rand se espalhem pelo mundo, é obrigatório explicar qual o significado que Rand concedeu às palavras “egoísmo” e “altruísmo”. Rand usa a frase “egoísmo racional” e a palavra “egoísmo” de modo intercambiável de tal forma a serem sinônimos e, portanto, sujeitos à lei de Leibniz. Todavia, muitas pessoas acham que “egoísmo” é algo diferente de “autointeresse racional”. Em minha aula de economia, ainda no Ensino Médio, via que muitos de meus colegas apreciavam a ideia de Smith de “agir no interesse próprio”, mas suspeito que se meu professor tivesse usado o termo randiano “egoísmo”, a turma poderia ter sido menos receptiva à ideia.
Comprei um livro no último encontro do SFL, How Adam Smith Can Change your Life (tradução livre, Como Adam Smith pode mudar a sua vida), de Russ Roberts. Nele, Roberts escreve:
“Smith é normalmente caricaturado como um predecessor escocês de Ayn Rand, quem, além de A Revolta de Atlas, escreveu um livro chamado A Virtude do Egoísmo. Em A Teoria dos Sentimentos Morais, Smith gasta muito tempo de falando de várias virtudes: egoísmo não é uma delas. O que Smith sugere em seu famoso livro é que as pessoas são fundamentalmente autointeressadas, o que não é o mesmo que dizer que são egoístas.”[1]
Essa passagem fede à desonestidade intelectual. Contudo, o importante a notar é que a audiência desse livro tende a ser de pessoas que buscam pensadores que contribuam para o seu crescimento intelectual, e o autor acaba de dar uma informação incorreta, mesmo que, em geral, o livro seja pró-liberdade. Na verdade, suspeito que o próprio autor apreciaria os romances de Rand caso tirasse o tempo de lê-los. Mas o que fará ele (ou qualquer outra pessoa) ler e ser influenciado por um romance épico (de mais de 1000 páginas) como A Revolta de Atlas se ele honestamente não conhece o uso que Rand faz da palavra egoísmo é muito parecido com o uso de autointeresse por Adam Smith? Talvez Roberts seja culpado por não pesquisar. Independentemente disso, acho que o uso da palavra “egoísmo” por Rand prejudicou a divulgação de suas ideias.
No resto do artigo gostaria de discutir o porquê Rand usou a palavra egoísmo e como isso ajudou e prejudicou a divulgação do Objetivismo. Logo depois, discutirei a ideia de Wittgenstein de que “significado é uso” e como isso se aplica ao caso do “egoísmo” de Rand. Concluirei com um argumento de que o uso de “egoísmo” por Rand poderia ser desnecessariamente dissuadido novos leitores, dado que evoca um pathos chocante que pode ser de difícil aceitação até que a pessoa, de fato, se aprofunde nas ideias do Objetivismo.
Na introdução de A Virtude do Egoísmo, Rand escreve:
O título deste livro pode despertar o tipo de pergunta que ouço de vez em quando: “Por que você utiliza a palavra ‘egoísmo’ para denotar qualidades virtuosas de caráter quando esta palavra cria antagonismo entre tantas pessoas para quem ela não significa o mesmo que para você?”
Para aqueles que fazem esta pergunta, minha resposta é: “Pela razão que faz você ter medo dela.”[2]
Fica claro nessa afirmação que Rand usa a palavra egoísmo porque as pessoas têm medo dela, que pode ser rebelde e intrigante, mas também pode não ser a melhor estratégia para promover o Objetivismo e atrair novos leitores. Eu diria que, sim, é verdade que o seu uso de egoísmo pode ter sido controverso e, logo, chamado a atenção do público, levando leitores a acabar gostando do Objetivismo. Todavia, acho que Rand atrairia mais atenção caso tivesse utilizado sempre expressões como “autointeresse racional” ou “egoísmo racional”. Entendo que o título do livro não seria tão chamativo, mas ajudaria aqueles não familiarizados com Rand a se ambientar suas ideias racionais sem ter de questionar o sentido se ela quis dizer agir em benefício próprio de uma forma boa ou má.
Gregory Salmieri escreve em A Companion to Ayn Rand:
O uso conflitante de Rand da palavra egoísmo foi uma forma de desafiar as premissas e as atitudes que fundamentam o uso convencional dela, tanto denotativa como conotativamente. Longe de ser uma “mera atitude semântica ou uma questão de escolha arbitrária”, ela pensou que o uso convencional estava ‘errado’ e representava um erro “responsável, mais que qualquer outro fator, pelo atraso do desenvolvimento moral da humanidade.[3]
O segredo aqui é prestar atenção ao fato de Rand pensar que o uso convencional estava errado. Mas Rand pode ditar o significado das palavras? Rand tem algo a aprender com outro filósofo famoso, Ludwig Wittgenstein. Embora Rand critique a analise linguística em Introduction to Objectivist Epistemology, concluo que algumas ideias de Wittgenstein foram interessantes para a minha própria vida intelectual.
Na obra Philosophical Investigations, Wittgeinsten escreve:
“Filósofos normalmente falam em investigar e analisar o significado das palavras. Mas não esqueçamos que uma palavra não tem um significado dado a ela como que por um poder independente de nós, de modo que pudesse haver um tipo de investigação científica do que aquela palavra realmente significa. Uma palavra tem o significado que alguém dá a ela.”[4]
Ayn Rand é a autora de A Revolta de Atlas, e não do dicionário. Dicionários apontam na direção correta na maioria das vezes, em direção ao significado geral/popular de uma palavra. Contudo, cada uso de palavra deve ser examinado caso por caso. Por exemplo, se alguém acha que egoísmo significa tirar vantagem de outras pessoas em benefício próprio pode ser porque essa forma pela qual a palavra tem sido interpretada por tal indivíduo lhe deu a noção de que essa era a definição correta de egoísmo.
Em A Companion to Ayn Rand, Gregory Salmieri trata da percepção de Rand com respeito à definição de egoísmo no dicionário:
“Falando em suas próprias palavras, Rand escreve que “o significado exato e a definição do dicionário para a entrada egoísmo é preocupar-se com seus próprios interesses, adicionando que “o conceito não inclui uma avaliação moral). Presumivelmente, quando Rand fala da “definição do dicionário”, ela argumenta como os dicionários deveriam definir o termo. Alguns dicionários apresentam uma definição, mais ou menos, parecida com a de Rand, mas outros incluem o conteúdo avaliativo ou outros elementos relacionados ao uso popular ao qual Rand se opõe.”[5]
A coisa lógica a fazer quando alguém vê um título de livro como A Virtude do Egoísmo, ou ouve sobre a defesa de Rand do egoísmo seria pesquisar no Google “Ayn Rand egoísmo”, entendendo o que ela realmente disse. Todavia, é ingênuo esperar que todas as pessoas que não têm familiaridade com a conotação de Rand percebam automaticamente que Rand significa algo totalmente antitético ao significado convencional da palavra egoísmo.
O problema de Rand não está em sua argumentação racional (logos), mas no fato de despertar emoções em sua audiência (pathos). Ela define egoísmo com excelência não só em A Virtude do Egoísmo, mas em toda a sua obra de ficção e não ficção. O problema é que ela desperta algumas emoções negativas em audiências potenciais antes de elas descobrirem sua verdadeira definição de egoísmo, isto é, a vida do homem como um fim em si mesma.
A ideia de Rand de usar egoísmo “pela razão que faz você ter medo dela” não necessariamente se assemelha a ecoar os sentimentos e as emoções das pessoas. Tudo bem. É o estilo dela, e você não pode esperar que ela seja perfeita. Todavia, como pessoas que desejam espalhar as ideias de Rand, precisamos focar em explicar aos novos leitores três conceitos principais: (i) o significado que ela concedeu à palavra egoísmo é o oposto de uso convencional do termo. (ii) as pessoas com quem interagirmos continuarão a usar egoísmo como uma conotação negativa, e isso não as torna pessoas más, só significa que precisam ser introduzidas ao Objetivismo! (iii) a terceira, mas não menos importante, é assegurar que estamos ecoando os sentimentos e as opiniões das pessoas, de modo que nós possamos mais facilmente leva-las a ler os romances épicos de Ayn Rand que mudaram esse planeta, aquele que Atlas está carregando nas costas.
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Revisado por Matheus Pacini
Publicado originalmente em James Biller Blog
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[1] ROBERTS, Russ. How Adam Smith Can Change Your Life: An Unexpected Guide to Human Nature and Happiness. New York: Deckle Edge, 2015. p. 20
[2] RAND, Ayn. A Virtude do Egoísmo. Trad. de On Line-Assessoria em Idiomas. Porto Alegre: Ed. Ortiz/IEE, 1991. p. 14
[3] SALMIERI, Greg. A Companion to Ayn Rand. New York: Wiley Blackwell, 2016. p.16
[4] WITTGENSTEIN, Ludwig. Major Works: Selected Philosophical Writings. Boston: Harper Perennial. p. 119
[5] SALMIERI, Greg. A Companion to Ayn Rand. New York: Wiley Blackwell, 2016. p.32