O significado de verdade “necessária” versus verdade “contingente”

Existe uma tendência histórica na Filosofia a distinguir entre verdades que são necessárias e verdades que são contingentes.

Uma verdade necessária é uma proposição verdadeira cuja negação implica contradição, sendo portanto impossível.

Logo, se “um mais um é igual a dois” é uma verdade necessária, então, a proposição “um mais um não é igual a dois” será contraditória. Considerando os significados de “um” e “dois”, podemos imediatamente concluir que a adição de dois “uns” (unidades) sempre resultará em dois; ainda assim, a proposição “um mais um não é igual a dois” contradiz isso. É inconcebível que um mais um resulte em qualquer coisa que não dois, então “um mais um é igual a dois” costuma ser considera uma verdade necessária, impossível de negar.

Uma verdade contingente é uma proposição verdadeira cuja negação não implica contradição, sendo portanto possível.

Logo, se “João casou com Jéssica no domingo passado” é uma verdade contingente, então, a proposição “João não casou com Jéssica no domingo passado” poderia ser verdadeira, sem gerar contradição. Como João poderia ter escolhido não casar com Jéssica, ou se casar com ela em outro dia qualquer, podemos ver que essa é, de fato, uma verdade contingente.

A visão objetivista sobre a distinção necessária/contingente

A causalidade (a lei de causa e efeito) é a lei da identidade aplicada à ação. Isso significa que uma entidade age de acordo com sua natureza, ou seja, que a natureza da entidade (seus atributos, propriedades, etc.) causa a ação que ela irá tomar em qualquer situação específica. Em qualquer contexto, há tão só uma ação possível para ela: a que está de acordo com sua natureza. Por definição, qualquer outra ação contradiria a sua natureza.

Para um objeto inanimado, significa que existe apenas um curso específico de ação em resposta a uma situação específica. Qualquer outra ação contradiria a sua natureza.[1]

Por outro lado, os seres humanos têm um atributo único: uma consciência dotada com um tipo específico de livre-arbítrio, a escolha contínua entre pensar ou não pensar. Durante o funcionamento normal da consciência, os seres humanos, por sua natureza, devem escolher focar sua mente no processo de pensar, ou abrir mão disso, permitindo que sua mente fique à deriva. Essa escolha é inescapável e inerente à natureza humana, mas a escolha entre essas duas alternativas não é determinada por fatores anteriores. (Se quiser saber mais, leia The Formal Refutation of Determinism and The Validation of Free Will (Libertarian Volition))

Dado que as ações de um indivíduo diferirão dependendo de sua escolha de pensar ou não em diversos contextos, suas ações específicas em um determinado contexto não seguem inexoravelmente de sua natureza: ela só impõe limites ao que ele pode fazer.

Portanto, o Objetivismo distingue entre dois tipos de fatos: os que procedem e os que não procedem da escolha humana. Ayn Rand se referia aos fatos que procedem como “produzidos pelo homem”, e aos que não procedem como “metafisicamente dados”. (Observe que os fatos “metafisicamente dados” incluem os resultados das relações naturais de causa/efeito entre objetos inanimados, sem o envolvimento humano).

Como os fatos relativos às interações físicas de entidades no universo – fora do controle humano – seguem inexoravelmente de suas respectivas naturezas, e como qualquer alternativa imaginada a essas interações tais como aconteceram implicaria que algo, de alguma forma, não é o que é, o Objetivismo entende todos esses fatos como necessários. Qualquer alternativa proposta ao jeito como as coisas são, fora do controle humano, implica uma contradição em alguma parte da realidade e, portanto, viola a lei da identidade. No contexto dos fatos metafisicamente dados, é literalmente impossível que as coisas pudessem ter sido de qualquer forma que não como são.

Mas como essas alternativas envolvem uma contradição? Para que qualquer fato tivesse sido diferente, algo na história do universo teria de ter agido de forma diferente. Sem a intervenção humana (ou a intervenção de uma entidade volicional), agir de forma diferente significaria dizer que a entidade violou sua natureza.

A contradição é a seguinte: você tem uma entidade específica, com uma natureza específica (você está dizendo que ela é, de fato, essa entidade). Ainda assim, ela age de forma diferente do que sua natureza permitiria nessa situação – logo, ela não é realmente a entidade que você presumia que fosse. Você está dizendo que essa entidade é, ao mesmo tempo, A e não-A.

No caso de fatos “produzidos pelo homem”, ou seja, sob o controle das escolhas do homem, através de suas ações – podemos propor alternativas sem entrar em contradição. Como as pessoas podem escolher entre diversas alternativas diferentes sem contradizer a natureza humana, podemos dizer legitimamente que os fatos produzidos pela escolha humana poderiam ter sido diferentes. Dessa forma, o Objetivismo considera todos os fatos produzidos pelo homem como contingentes.

Logo, o Objetivismo defende que a distinção necessário/contingente corresponde à distinção metafisicamente dado/produzido pelo homem. Por exemplo, o fato de a maioria dos tigres ter listras é necessário. Se, algum dia, os seres humanos puderem manipular geneticamente os tigres para que não tenham listras, o fato de alguns tigres terem listras poderá então se tornar contingente. No entanto, o fato de a maioria dos tigres terem listras em maio de 2015 continuará necessário, independentemente das escolhas humanas.

Para mais informações sobre a metafísica objetivista, recomendo Objectivism: The Philosophy of Ayn Rand, de Leonard Peikoff.

A visão mainstream sobre a distinção necessário/contingente

É muito comum hoje e historicamente que a distinção dos filósofos entre verdade contingente e verdade necessária não corresponda à distinção objetivista entre metafisicamente dado e produzido pelo homem. Muitos filósofos argumentam que coisas que o Objetivismo chama de “metafisicamente dadas” são contingentes. Por exemplo, muitos diriam que a veracidade da proposição “o planeta Júpiter existe” é uma verdade contingente. Diriam que as coisas “poderiam ter sido diferentes”, de tal sorte que Júpiter não se desenvolvesse como planeta – ou, no jargão filosófico moderno, que “existem outros universos possíveis” que não incluem Júpiter como planeta.

O Objetivismo afirma que essa visão – que alguns fatos fora do controle humano podem ser contingentes – é errada. Especificamente, essa visão implica uma visão metafísica que o Objetivismo chama de “primazia da consciência”.

A primazia da consciência é a crença de que uma consciência (ou mais de uma), por meio de seus processos internos, é ativa na criação da realidade conforme a percebemos. Essa consciência poderia ser atribuída a Deus, à sociedade, ao indivíduo ou a um grupo específico. (As formas mais óbvias e explícitas da primazia da consciência são as várias formas de idealismo filosófico. No entanto, existem formas mais sutis pelas quais essa visão se manifesta, e a perspectiva comum sobre a distinção necessário/contingente é uma delas.)

A ideia da primazia da consciência contrasta com a ideia da primazia da existência. Essa é a visão de que a função de toda e qualquer consciência, como tal, é perceber a realidade, e não criá-la. A consciência pode afetar a realidade de certas formas delimitadas, através de seu controle sobre o corpo, mas não é projetada externamente no objeto de seu foco (realidade extramental), nem cria uma realidade interna como seu objeto primário. Segundo a primazia da existência, os fatos da realidade são o que são, independente de quaisquer processos da consciência, sejam eles desejos, esperanças, fantasias, emoções, classificações ou convenções linguísticas. O Objetivismo adota firmemente a primazia da existência como sua visão metafísica.

No caso da distinção necessário/contingente, a primazia da consciência está na base da visão mainstream. Isso porque a ideia de que um estado de coisas “poderia ter sido diferente” assume implicitamente que alguma escolha participou de sua criação. Todavia, a escolha é uma atributo da consciência – especificamente, da consciência humana – e não de objetos inanimados reagindo da única forma que podem às suas circunstâncias.

Dessa forma, quando alguém considera um fato da realidade (não produzido pela ação humana) como contingente, está assumindo que alguma consciência controla a natureza da realidade. Novamente, essa consciência poderia ser Deus, a sociedade, o indivíduo ou um grupo específico.

O impulso intuitivo de chamar verdades “empíricas” / “sintéticas” de contingentes deriva do fato de que uma pessoa pode, pelos menos de forma superficial, imaginar uma alternativa a elas[2]. E a sensação é de que, se a consciência de um indivíduo pode imaginar certas coisas acontecendo de forma diferente, então, a consciência que deu forma à realidade também poderia tê-la moldado de forma diferente. Se a alternativa imaginada a um fato exibe uma contradição óbvia, a ponto de confundir a imaginação e/ou a razão, então, a sensação é de que nenhuma consciência poderia ter criado a realidade dessa forma, impossibilitando a alternativa.

Conclusão

O Objetivismo restringe a ideia de fatos contingentes àqueles fatos que resultam das escolhas humanas, através das ações humanas. Esses são os únicos fatos que legitimamente poderiam ter sido diferentes. A alteração de quaisquer fatos fora daqueles que resultam das escolhas humanas (os metafisicamente dados) geraria uma contradição na realidade, mesmo que não seja imediatamente óbvia para a imaginação. Esses fatos metafisicamente dados incluem muitos fatos que a maioria dos filósofos chamariam de “empíricos” ou “sintéticos”. Esses fatos não poderiam ter sido de qualquer forma do que são.

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Publicado originalmente em Objectivism in Depth.

Traduzido por Bill Pedroso.

Revisado por Matheus Pacini.

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[1] Algumas interpretações acerca da mecânica quântica afirmam que a aleatoriedade das nossas observações sobre as partículas são fundamentais e metafísicas – isto é, consideram que certas propriedades de uma partícula não tem um valor definido até que a partícula seja observada. Portanto, essas interpretações afirmam que as interações entre entidades inanimadas não são determinísticas, podendo assim ser consideradas contingentes. O Objetivismo, por outro lado, rejeita essas interpretações com base no axioma da Lei da Identidade: as partículas devem ter uma natureza específica, incluindo uma serie definida de propriedades, antes de serem observadas. Qualquer aleatoriedade no mundo é epistêmica: representa nossa falta de conhecimento sobre os fatores determinantes no contexto em questão.

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