Em uma discussão na internet sobre a viabilidade e a desejabilidade da medicina socializada, selecionei dois comentários que valem a pena ser respondidos porque representam o pensamento convencional acerca desse tema e de temas econômicos mais gerais.
Não estou dizendo que um livre mercado para o sistema de saúde seja uma ideia ruim, mas se indivíduos têm direito à vida, e se eles tiverem uma doença que será fatal caso não seja tratada, e se eles não tiverem condições financeiras de bancar tal tratamento, o que os médicos devem fazer? Cruzar os braços e deixá-lo morrer? A resposta-padrão é que tal indivíduo deve recorrer à caridade, e eu realmente creio que tal caridade existiria até um certo ponto; mas a caridade não poderia atender a todas as pessoas. E não é crível imaginar que médicos não iriam rejeitar pessoas pobres — mesmo sabendo que poderiam salvar uma vida fazendo uma intervenção cirúrgica simples — caso o tratamento delas apresentassem um custo alto e nenhum retorno financeiro.
Este raciocínio parte de uma premissa falsa; na verdade, trata-se de uma confusão bastante corriqueira. Um indivíduo ter direito à vida não significa que ele tem o direito de ser mantido vivo por outras pessoas, contra a vontade delas. Se houvesse tal direito, então, por definição, você, eu e todas as pessoas que não são miseráveis teríamos de estar dedicando toda a nossa vida à inesgotável tarefa de manter vivas um incontável número de pessoas miseráveis ao redor do mundo. Porém, ao contrário, o direito à vida significa o direito de que ninguém tire a sua vida; significa também que o indivíduo tem o direito de empreender todo e qualquer tipo de ação, desde que pacífica e não coerciva, para sustentar e melhorar a sua vida. Essa compreensão do que realmente é o direito à vida é incompatível com a noção de pessoas terem o direito de serem mantidas vivas à custa de outras.
É claro que as pessoas podem fazer doações para a caridade, e elas farão isso até o ponto em que considerarem que tal atitude traz bem-estar às suas próprias vidas. Os fundos arrecadados por meio da caridade, em conjunto com o tempo que os médicos estarão dispostos a dedicar a pacientes de instituições de caridade, indubitavelmente ficarão concentrados naqueles casos em que as intervenções cirúrgicas necessárias para salvar uma vida, um órgão ou um membro são relativamente simples e pouco custosas. Mas isso, obviamente, está longe de ser uma solução para aqueles problemas médicos que requerem tratamentos mais complexos e custosos, e que, por isso mesmo, estão além dos recursos desses pacientes e além da disposição e mesmo da capacidade financeira das pessoas de fazer caridade.
A única solução para esses problemas médicos é o progresso econômico. É o enriquecimento da sociedade. Isso só pode ocorrer por meio da acumulação de capital, a qual só é possível por meio da poupança e do investimento, e a qual é obstruída por impostos, gastos e regulamentações governamentais. É o progresso econômico o que possibilita um contínuo aprimoramento do sistema de saúde e o que o torna cada vez menos custoso, ao mesmo tempo em que faz com que praticamente todos os outros bens e serviços da economia fiquem também melhores e menos caros, desta forma liberando mais renda para ser gasta em serviços médicos, caso necessário. A base do progresso econômico, obviamente, é a liberdade individual e o capitalismo de livre mercado.
No entanto, mesmo em um sistema de irrestrito capitalismo de livre mercado, sempre haverá algumas pessoas que morrerão porque precisavam de mais e melhores cuidados médicos, os quais poderiam ter-lhes sido ofertados, mas que estavam além de seus recursos financeiros. Simplesmente não há como evitar isso. Trata-se de um aspecto inerente ao fato de que o ser humano é mortal.
Tentar evitar essa triste realidade obrigando todos os indivíduos não miseráveis a dedicarem suas vidas à tarefa de manter outras pessoas vivas — de modo a ignorar por completo o valor subjetivo que tal atitude “benevolente” trará para a vida desses indivíduos coagidos — é uma medida que destrói os incentivos para produzir e prosperar, fazendo com que, em última instância, tal medida coercitiva não traga felicidade e bonança para ninguém.
Por causa dessa destruição de incentivos, tentativas de impor e fazer cumprir tais obrigações sempre estancam após algum tempo. Com efeito, é isso que está ocorrendo agora nos EUA, onde estão propondo a rejeição do tratamento médico aos mais velhos, com cortes no programa Medicare (programa governamental que reembolsa hospitais e médicos por tratamentos fornecidos a indivíduos acima de 65 anos de idade). É isso também que já aconteceu na Grã-Bretanha (onde bebês sofrem eutanásia compulsória), no Canadá, na Suécia e em todos os outros lugares onde o sistema de saúde já foi coletivizado há muito tempo.
O governo simplesmente não possui os recursos para prover todos os indivíduos com serviços de saúde ilimitados. Como o governo nada produz, ele apenas se limita a confiscar de uns para redistribuir para outros. E como os recursos não são infinitos, como vivemos em um mundo de escassez, e como os serviços governamentais se resumem a um consumo de bens escassos, sempre chegará um momento em que o governo terá de impor limites aos serviços que ele oferta. Porém, tais limites inevitavelmente acabam por privar de serviços médicos pessoas que poderiam bancá-los caso tivessem podido utilizar seus próprios recursos para esse propósito. Tais limites inevitavelmente impedem o desenvolvimento medicinal justamente porque o governo precisa manter baixo o custo de funcionamento de seu sistema coletivizado.
Há dois tipos de limitações ao sistema de saúde. Uma limitação é a realidade, a qual abrange o presente estado do conhecimento científico e tecnológico, o presente estado da acumulação de capital da economia, a consequente produtividade da mão-de-obra que tal acumulação permite aumentar, e o relativo desempenho de diferentes indivíduos cooperando conjuntamente em um arranjo de livre concorrência econômica e de busca pelo interesse próprio. Sob o capitalismo, como resultado da concorrência e da busca pelo interesse próprio, essa limitação é continuamente expandida e o nível de consideração e preocupação para com o próximo aumenta continuamente, pois a existência de terceiros representa a existência de consumidores.
O outro tipo de limitação ao sistema de saúde são os decretos arbitrários feitos pelo governo. Quando o governo assume o controle do sistema de saúde, ele passa a decidir quem pode receber cuidados médicos e até que ponto. Sob o controle estatal, a limitação ao sistema de saúde tende a ser fixa — declinante até. O desenvolvimento do sistema de saúde passa a ser em grande medida proibido, pois é visto como uma ameaça ao orçamento do governo; e esse declínio do sistema atrai médicos que se contentam em ser meros instrumentos das políticas do governo, pois veem no sistema oportunidades de politização e sindicalização. O declínio da saúde também se torna um mero reflexo do declínio econômico geral, resultante das políticas necessárias à manutenção de um grande sistema de saúde estatal, políticas essas (tributação e gastos crescentes) hostis à acumulação de capital e à eficiência econômica.
Outro internauta, mais à esquerda, apresentou a solução para tudo:
Altruísmo, empatia, afeto — essas são ideias essencialmente inerentes à sociedade, e não ao mercado. Um sistema público de saúde é parte da natureza altruística da sociedade, e surgiu não de necessidades puramente comerciais, mas sim porque a maioria das pessoas deste planeta tem empatia por aqueles que estão doentes, por aqueles que não têm saúde. Pessoas formam sociedades coletivas exatamente por esta razão: para dividir as dificuldades, aflições e infortúnios da vida, de maneira equânime e justa, entre aqueles que podem e aqueles que não podem arcar com tudo isso.
Apenas anarquistas insensíveis podem ser contra isso, pois têm a ideia doentia de que todas as pessoas são isentas da obrigação de ajudar qualquer outra pessoa, não importam as circunstâncias. Daí a ideia de que é desnecessário ter um governo para ofertar serviços para todos. Também devem crer que a educação deve ser relegada a um domínio puramente comercial…
Será que tais pessoas conhecem o conceito econômico de altruísmo ou isso é algo que está tão longe do âmbito moral delas, que nem sequer sabem que isso existe?
Espero sinceramente que tais pessoas comecem a olhar para os pobres, para os desempregados, e para aqueles que nasceram com deficiências naturais, como baixa inteligência ou inaptidões físicas e mentais, e tentem se colocar no lugar deles. Provavelmente será muito difícil fazê-lo, mas, se conseguirem, tenho a esperança de que sentirão remorso por essa horrenda e egoísta postura em relação à saúde pública.
Este internauta aponta o altruísmo como solução para as privações humanas. Se fosse verdade, a escassez no mundo poderia ser abolida por decreto. O fato é que o altruísmo como política pública é a filosofia da angústia, do sofrimento, da pobreza e do ódio de um ser humano por outro. É a filosofia que pautou a Era das Trevas e fundamentou criações como a tortura, a Iron Maiden (Donzela de Ferro), e a queima de pessoas vivas em estacas.
A civilização foi construída sobre a filosofia do egoísmo e do reconhecimento de que o indivíduo tem o direito de buscar egoisticamente sua própria felicidade. Isso levou ao consequente reconhecimento de que a maneira de se realizar tal objetivo é através da cooperação social voluntária e pacífica sob um arranjo de divisão do trabalho. Os ganhos obtidos com a divisão do trabalho fazem com que cada indivíduo tenha um interesse racional e egoísta na existência e no bem-estar de outras pessoas, bem como na liberdade individual delas e no seu direito de buscar a própria felicidade. Esse é o arranjo que progressivamente aumenta a oferta de bens e serviços em uma economia, aumentando assim a qualidade de vida de todos.
Sob esse arranjo, cada indivíduo está apto a utilizar sua mente da maneira que mais lhe aprouver; para analisar o mundo em busca das oportunidades que este lhe oferece para a melhoria de sua vida, e para escolher a melhor das oportunidades que se abrirem para ele. Seus esforços são quase sempre enormemente auxiliados pela cooperação com outros indivíduos, que são os ofertantes de tudo que ele compra, os consumidores dos bens que ele vende ou os empregadores da sua mão-de-obra. Sob o capitalismo de livre mercado, cada indivíduo obtém a cooperação de outros por meio de um processo de trocas voluntárias, no qual ambos os lados ganham.
Nesse arranjo, o indivíduo passa a considerar as outras pessoas com benevolência, pois a existência delas torna melhor e mais fácil a sua própria existência. Sob essas condições, as pessoas estão preparadas, dentro de certos limites, a ajudar outras pessoas que estejam sofrendo em decorrência de fatores externos ao controle delas. Assim, elas ajudam vítimas de terremotos, enchentes, queimadas e todos os outros desastres naturais. Elas ajudam pessoas que incapazes de se ajudar a si próprias, incluindo-se nesse grupo aquelas que estão na miséria. Porém, tais ações não são seu objetivo principal — ou, via de regra, seu objetivo supremo. Trata-se de algo secundário, e que vai depender de como elas almejam buscar a própria felicidade; de como a sua felicidade é influenciada pelo fato de saber que estão ajudando ao próximo. A ajuda caritativa é em si um ato de egoísmo e interesse próprio, pois, ao ajudarem o próximo e se sentirem bem com isso, tais pessoas estão simplesmente buscando o próprio bem-estar.
Por outro lado, em uma sociedade gerida pelo altruísmo, cada indivíduo inevitavelmente considera todos os outros indivíduos como fonte de tormento e miséria. A existência de outras pessoas representa uma constante reivindicação sobre sua riqueza e sobre seu tempo — e, assim, sobre sua capacidade de desfrutar sua vida. Em tais circunstâncias, o indivíduo facilmente chega à conclusão de que estaria melhor caso essas outras pessoas não existissem. Nesse caso, ele estaria livre de todo o fardo que elas lhe impõem.
O altruísmo implica o uso da coerção — e, após certo ponto, ele irá depender totalmente dela. Isso porque a maioria das pessoas não irá se sacrificar voluntariamente em prol de desconhecidos; certamente não a uma intensidade que seja suficiente para satisfazer as demandas dos partidários do altruísmo.
Por exemplo, em uma sociedade livre, em que não haja interferências governamentais, um indivíduo pode estar entusiasticamente disposto a contribuir voluntariamente com, digamos, 5% de sua renda para fins caritativos. Sob um contínuo e crescente bombardeio de propagandas que o acusam de ser mau e insensível por estar contribuindo com tão pouco, ele pode relutantemente se dispor a acrescentar mais 5%, apenas para silenciar seus críticos e talvez para amenizar a culpa que ele foi levado a sentir. Porém, dificilmente alguém estará disposto a voluntariamente contribuir com um quarto ou com metade da sua renda. É por isso que o imposto de renda, inspirado no altruísmo, depende da ameaça de cadeia para todos aqueles que se recusarem a pagá-lo.
As pessoas voluntariamente e entusiasticamente fazem coisas que consideram ser benéficas para elas próprias. Apenas sob coerção é que elas relutantemente farão coisas que consideram ser prejudiciais a elas próprias. O altruísmo como um modo de vida é apenas dor, sofrimento e agonia. Poucos irão tolerar esse arranjo — exceto se houver coerção.
Um grande exemplo de uma sociedade formada sobre os fundamentos do altruísmo foi a União Soviética, a qual se tornou conhecida pelo tratamento bárbaro e odioso dispensado aos seres humanos que ali habitavam. O resultado da prevalência do altruísmo foi bem exemplificado por uma história que era amplamente contada na União Soviética. É a história do russo para quem Deus concedeu o privilégio de poder pedir algo que ele gostaria que Deus fizesse por ele, sob a concordância de que, o que quer que Deus fizesse por ele, Ele faria em dobro para seu vizinho. Após ouvir essa oferta, o russo sem pestanejar pediu a Deus que arrancasse um de seus olhos, para que seu vizinho consequentemente perdesse os dois. (Essa história foi relatada por Hedrick Smith, em seu livro The New Russians, New York: Random House, 1990, p. 204).
Resultados maravilhosos do altruísmo.
Por outro lado, naquele sistema que é considerado a antítese do altruísmo, as pessoas se beneficiam quando outras pessoas vão atrás de seus desejos próprios. Os maiores e mais abrangentes ganhos mútuos sob o capitalismo ocorrem como resultado de pessoas que constroem grandes fortunas. Sob o capitalismo, fortunas são construídas pela criação de novos produtos e pela introdução de métodos de produção mais aprimorados, os quais são a fonte de maiores taxas de lucros. O empreendedor irá poupar e reinvestir a maior fatia desses seus altos lucros. A riqueza física que sua crescente fortuna representa — as fábricas, os maquinários e os equipamentos, os estoques de materiais, componentes, suprimentos etc. — é utilizada para produzir bens que o público em geral irá consumir.
Ao mesmo tempo, essa sua riqueza é a base para a sua crescente demanda pela mão-de-obra que as outras pessoas vendem. O público em geral, formado por pessoas que são vendedoras de mão-de-obra e compradoras de bens de consumo, é na realidade o maior beneficiário da riqueza construída sob o capitalismo de livre mercado. (Apenas pense em quantos imóveis, automóveis, aparelhos de televisão e outros bens de consumo pertencem a todos os trabalhadores comuns de um país razoavelmente desenvolvido e compare esse número ao número desses mesmos bens que pertencem a todos os magnatas desse país). Além do mais, as altas taxas de lucro obtidas com a introdução de aprimoramentos rapidamente atraem a concorrência de outros empreendedores, o que reduz as taxas de lucro a um nível mais modesto. Caso queira continuar obtendo uma alta taxa de lucro, o empreendedor terá de continuamente introduzir novos aprimoramentos. O resultado líquido desse processo é um progressivo aumento no padrão de vida de todos.
Abandonar esse fabulosamente próspero sistema de cooperação mútua e de busca pelo interesse próprio e substituí-lo por um outro sistema cuja característica essencial é a do governo apontando uma arma para a cabeça das pessoas exatamente com o intuito de proibi-las de buscar seus próprios interesses e obrigá-las a agir contra seus próprios interesses é um ato de inacreditável autodestruição. Se é isso o que as pessoas de um país qualquer querem escolher, que seja. Mas que elas saibam enfrentar as consequências.
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Publicado originalmente em Instituto Mises Brasil.
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