Não nosso de cada dia nos dai hoje

Feche os olhos e por um segundo imagine: o silêncio da noite se preenche apenas por soluços abafados de choro e trepidações involuntárias nos corpos de seus “irmãos”. Eles te cercam e dormem ao seu lado pois compartilham do seu quarto da mesma maneira que compartilham tudo que lhe pertence. Entrecorta um grito audível, claro, inquestionável e doloroso que suplica:

“Nos salve! Nos salve!”

Um mundo no qual a perspectiva da completa frustração do único sonho, única vontade por ti já possuída, a visão que te mantém acordado à noite por expectativa, lhe dá uma incrível sensação de orgulho, de certeza. Afinal, você é amaldiçoado pelo grande crime da preferência. Você merece sofrer.

Você sofre profundamente e, em seu único momento de solidão, no maior ato de solidão imaginável: escrever seus pensamentos para que somente você os escute,  os veja e se enxergue talvez pela primeira vez em sua vida. À esse alívio, você atribui palavras doídas:

“É um pecado escrever isso.”

Este é o mundo onde felicidade é uma ordem, uma regra explícita. Afinal, sua vida está dedicada aos seus irmãos. Não ser feliz é o maior dos delitos. Porém, também não se pode ser muito feliz. Não se pode demonstrar felicidade, não se pode rir à toa, cantar à toa, dançar à toa, a não ser nos momentos corretos de se rir, cantar e dançar; e a casa de correção te espera, caso o faça. Ser muito feliz é se importar demais consigo, ser infeliz é demonstrar relutância em servir. Esse é o dilema. Esse é o mundo do “Cântico”.

Falar, dizer, comunicar: esta é a maior perda. Se ser feliz é proibido e infeliz também, o que não se pode ser é honesto. O que não se pode buscar é transmitir do que existe de mais particular, mais você, seus pensamentos.Tentar procurar palavras também é delito; precisa-se repeti-las. Outrossim, não se sabe o que o outro diz: ele também hesita. A solução é se manter calado, em silêncio.

Essa é a busca real: quando o princípio seguido é o princípio de que se deve desejar apenas o outro, para o outro e pelo outro, o que se deseja verdadeiramente é o silêncio. O verdadeiro propósito desse ideal não é nem a felicidade, nem o seu contrário, e sim sua negação. Não se pode ser infeliz, frustrado ou sentir desespero. Afinal, estes podem ser utilizados como passos à felicidade. Permitido é apenas o suicidio, mas não o suicidar-se. Precisamos que você esteja

vivo para servir. Logo é permitido somente um vivo suicidio; viver o suicidio diariamente.

A reza não é pelo pão, mas pelo nada. Não nosso de cada dia nos dai hoje…

O brilhante cata o lixo, o ignorante cria a ciência e o crucial é o político. Sua suntuosa casa é enorme, a maior de todas da metrópole. Como diz Ayn Rand ela tem três andares. Usa-se o nome de belo para o horrendo; de inovação para o antigo; e a grandeza deve ser representada por um pequeno anãozinho.

Em um mundo desse é correto sofrer. É uma necessidade. Mas até o sofrimento não pode ser permitido. Gritar, reclamar, se revoltar é colocar o mundo em ordem. O homem que deveria sentir mais dor, o homem queimado vivo, o santo da pira, é calmo. Ali, cercado das chamas, o mundo se encaixa. Serenidade em meio ao sofrimento se torna legado e produz nos outros completa e total estranheza. A estranheza de colocar em oposição:

Ou aquele homem está certo ou o mundo.

Para um pensante, curiosidade diante de um paradoxo é um imperativo. Entender ou até reconhecer o próprio estado de infelicidade é o primeiro passo para buscar autorrealização. Portanto, para aqueles dela oponentes, o ato mais preciso é confundir os dois: não permitir nada.

Esse é o papel do certo e do errado. É a nossa maneira de nomear os bois, separar o joio do trigo, a esperança do desespero. A estratégia correta para destruí-los, portanto, não é tentar provar que ambos não existem, é invertê-los, e o próprio homem fará de tudo para os negar.

Ele escolherá o errado porque sabe que é certo e se odiará por isso ou evitará o certo pois sabe que é errado e se odiará por isso. No final, a única solução é aceitar a indiferença enquanto condição. A única saída é transformar olhos em botões gélidos.

Isso não é aceitável. Não a cegueira, mas a escolha de não ver. É justo se indignar diante disso, o que até em meio a ruínas traz significado à batalha de um homem. O nome dessa batalha, o nome da ciência que nos permite colocar o mundo no seu lugar, mesmo no pior deles, é moralidade.

Esta não é nada mais que a nossa forma de dizer felicidade; de gritar e ser ouvido quando se trata da própria felicidade. Um dialeto louco e erudito que conecta as almas: uma linguagem. A linguagem. Por isso que, pelos destruidores, ela tem que ser destruída. Por isso a palavra “Eu” deve ser apagada.

Não por um relâmpago ou uma fogueira. A inquisição queima livros, não sentimentos e ideais. A morte de uma palavra tem que ser como um assassinato por veneno; meticulosamente programada, lenta, imperceptível.

Quando o sapo do pensamento que por ela é expressa perceber que está sendo fervido já será tarde demais. Mata-se não a palavra, mas aquilo que a permite, o contexto na qual ela surge, os homens que dela precisam. Quando eles nascerem, por aquilo que se nomeia acaso ou milagre, o trabalho é o de Sherlock Holmes deduzir a cena, a arma, a oportunidade e a motivação de seu futuro perecer. Apaga-se primeiro sua vontade de viver como se apaga uma vela; a vela que é muito mais importante que a lâmpada cuja qual ele era capaz de descobrir.

Essa é a tragédia, não o universo malevolente da completa destruição, e sim a sabedoria de que ele não é assim, mas de que foi feito assim por pessoas que escolheram negá-lo em nome do direito de nele não viver. O benevolente universo existe, e é o mesmo que se dá aí.

A floresta não explorada está ao alcance de sua visão, e o que lhe impede de lá habitar são tão somente os pálidos rumores de que de lá ninguém volta. Só existe uma forma de vencê-los, os rumores e esse homúnculo de um universo manco. A pseudovida só é derrotada quando um homem decide viver, e é nesse ato que ele descobre o que ele é: um homem. É quando ele redescobre as palavras mais importantes que eles nunca o deixaram nem sentir. Quando os sentimentos, pensamentos e conceitos precisam de algo perene, segurável, pronunciável.

Quando um som encontra um símbolo que encontra uma observação:

temos uma palavra. A perdida palavra.

Feche os olhos e imagine por um segundo: em meio a uma floresta que você mapeou, numa casa que você descobriu, com a mulher que você ama, você encontra uma junção de letras nunca antes vista. Esta junção de letras resume tudo, tudo aquilo que você sentiu, viveu e que você morreria para proteger. Encontrando essa palavra, encontrando essa linguagem, você é finalmente capaz de dizer:

“Eu vivo.”

É isso que é buscar pelo princípio oposto do representado pelo mundo do cântico. É isso que significa encontrar palavras capazes de defender e expressar tudo aquilo que você precisava, que você implorava em poder falar para os outros, e mais importante, para si. É isso que é encontrar uma moralidade, uma moralidade que representa a vida.

Utilizando uma ode ao ego, dedico essa ode a todos os moralistas, os completamente errados e aqueles que andaram passos na direção correta. É com vocês que se vence o solipsismo em todas suas faces, incluindo aquelas que se escondem no príncipio do amor incondicional ao próximo. É através da arte da moral que se é possível falar a palavra vida.

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