Disney e a coletivização do entretenimento

Recentemente, Bob Iger disse em uma entrevista que a Disney sempre irá priorizar qualidade, não volume — uma declaração curiosa de se fazer quando a empresa anuncia DEZ novas séries Star Wars, DEZ novas séries Marvel, dúzias de remakes, reboots, filmes com títulos medonhos do tipo “Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania”, dois spin-offs de The Mandalorian – o qual já é um spin-off de Star Wars – sem falar nos diversos projetos que parecem só existir sob argumentos naturalistas, levantando a bandeira da diversidade (teremos uma animação sobre a princesa Tiana, uma outra que se baseia na Colômbia, e outra ainda sobre a cultura africana etc.). Talvez por “qualidade” Iger tenha querido dizer qualidade de imagem, de som, de renderização…

É interessante notar os diversos níveis de parasitismo ocorrendo aqui. Em um vídeo recente, falei sobre como essa avalanche de serviços de streaming estão impedindo o consumidor de pagar por filmes individuais, por filmes que ele de fato valoriza: ou seja, obrigando-o a pagar pelo pacote inteiro, pois alguns filmes só ficam disponíveis por assinatura. Falei como isso promove não só a pirataria, mas também a total coletivização do entretenimento. Pense em quem ganha, e quem perde, com isso. Cineastas bem-sucedidos como Christopher Nolan ou Denis Villeneuve estão furiosos com a decisão da Warner de lançar todos os filmes de 2021 direto no Disney+. Claro, como eles sabem que seus trabalhos têm poder de atrair público e gerar lucros enormes, para eles não é um bom negócio entrar no “pacotão”. Não só seus filmes serão prejudicados em termos de exibição, como provavelmente renderão menos dinheiro para seus produtores. Agora pense em quem se beneficia neste esquema. Será que a Disney seria capaz de produzir tantos projetos com demanda duvidosa (como os que anunciaram) se cada um deles tivesse a responsabilidade de se pagar e dar lucros? Ou será que muita coisa que sai no streaming só consegue ser financiada justamente por fazer parte do pacote, e por estar lucrando em cima dos títulos mais atraentes do catálogo?

No momento, ainda temos esses filmes grandes criados originalmente para o cinema, que foram feitos com uma mentalidade independente, de fazer sucesso com base nos próprios méritos, e que só agora, depois de já produzidos, foram forçados a ir direto para o streaming. Mas, e se a tendência continuar e, no futuro, todos os filmes passarem a ser produzidos direto para o streaming — abandonando a mentalidade de que o sucesso ou o fracasso comercial de cada produção cinematográfica depende apenas da própria qualidade ou atratividade? Que o que importa no fundo é a atratividade da plataforma, não a de filmes específicos? Isso não será um incentivo para filmes cada vez menos ambiciosos, tanto em conteúdo quanto em padrões técnicos?

No caso da Disney, um outro nível de parasitismo e de “redistribuição de riqueza” ocorre no nível da marca. Se, como dito antes, produções de segunda categoria estão sendo beneficiadas dentro da plataforma de streaming pela existência de títulos grandes no catálogo, a plataforma como um todo (inclusive os filmes grandes), de certa forma já parasita a marca Disney (ou Star Wars) e o prestígio construído no passado com base em obras de real imaginação e qualidade. Os novos Star Wars e os novos live-actions da Disney não seriam nada se não fosse a memória afetiva do público e os méritos dos criadores originais. Os cineastas por trás da maioria desses novos filmes não têm uma capacidade real para criar grandes sucessos de bilheteria, de gerar entretenimento original que encanta as massas. São apenas imitadores competentes nos melhores casos (a diretora do novo Mulan, por exemplo, veio de filmes mais realistas e independentes como Encantadora de baleiasTerra Fria, nunca teve uma verdadeira “veia” para o cinema comercial). No final das contas, o que torna esses filmes grandes sucessos é a associação à marca, a memória afetiva do público e o compromisso que temos com certos personagens. 

A visão de criadores do passado (como Walt Disney ou George Lucas) é a “luz” da qual o entretenimento de hoje continua dependendo pra sobreviver. Hoje, quase não se vê mais imaginação e talento nessa indústria. Os produtores são como zumbis, sanguessugas, não geram novo valor, não conseguem criar novas fontes de “luz” — estão apenas criando um jogo elaborado de espelhos: tentando refletir, modificar e dividir essa luz do passado em milhares de novos feixes, matando-a completamente no processo.

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Originalmente publicado em Profissão Cinéfilo

Revisado por Matheus Pacini.

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