Como podemos ser quem podemos ser? Resenha sobre o romance “A nascente”

O livro A Nascente foi a obra que a levou ao sucesso aescritora, dramaturga e filósofa russa, naturalizada americana, Ayn Rand. Rand é conhecida mundialmente por desenvolver um pensamento filosófico conhecido como Objetivismo, cujo ideal está em enaltecer a realidade independente da consciência, e que o objetivo moral da vida humana é atingir a própria felicidade ou interesse racional através de um único sistema social que possibilite isso: aquele que respeite os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à busca a felicidade. Apesar de ser um romance filosófico, e não uma literatura técnica, a autora materializa os pensamentos objetivistas através dos comportamentos e falas de seus personagens. A obra é dividida em quatro partes que levam exatamente o nome das quatro grandes pessoas notáveis desse romance: Peter Keating, Ellsworth Toohey, Gail Wynand e Howard Roark.

Para início de análise, aproveito-me um trecho da obra em que o Sr. Toohey dialoga com a Srª Dominique Francon, mulher que vivencia um romance escondido com o Sr. Roark. Nesse trecho do livro, Rand consegue demonstrar exatamente a forma com que a obra foi escrita, através do contraste. Dessa forma, ela exalta os pontos altos de seus pensamentos, e o contraste fica límpido quando comparamos os personagens Roark e Keating. Tomemos duas linhas paralelas: Roark morava na pensão da mãe de Keating, ambos cursaram a mesma universidade de arquitetura, ao passo que Roark foi expulso e Keating formou-se com todas as honras e méritos de melhor aluno da turma. Ambos trabalharam para o grande empresário e arquiteto Francon, com quem Peter cresceu na carreira e alcançou o auge do sucesso, e Roark fora demitido obrigado a retornar a ser um simples operário. Contudo, o que faz esse paralelo existir é exatamente a forma como ambos encaram a realidade.

Peter Keating é um homem exatamente oposto ao Roark, egoísta e sem princípios, com vaidade e cobiça tremenda que o levou a sacrificar tudo em prol de uma grande carreira. Um belo exemplo de que um homem sem seu “eu” não pode ser ético, um homem que jamais poderia ser como um homem deve ser, e ele não se dava conta disso. Para conseguir seus objetivos, Keating utilizava-se da interação social, do dom de agradar as pessoas, e fazer e falar o que elas exatamente queriam.

Em contraponto, o outro personagem reflete os deleites do Objetivismo. Roark, um homem de alma nobre, como um homem realmente deveria ser, autoconfiante e autossuficiente, cuja inflexibilidade sobre o que ele realmente quer e acredita sobressai como característica predominante em sua forma de pensar. Tal fato incomoda a todos que o conhecem. Como pode alguém ser tão cético a ponto de abrir mão de dezenas de projetos arquitetônicos por não aceitar executar algo que ele não acreditar ser o melhor? Abrindo mão de muitos dólares, fama e ego, Roark passa pela humilhação social de ser considerado um lunático e fora do seu tempo. Contudo, é exatamente essa personalidade que faz de Roark um herói, um homem de valores sólidos cuja individualidade é perene aos seus atos, suas ideias e os seus sonhos, os quais não estão sujeitos à coerção para realizar nada além daquilo que acredita que deva ser.

Ademais, o Sr. Toohey também exerce o efeito de contraste aos princípios de Roark, o tipo de homem que enaltece o humanitarismo e o altruísmo, pois sabe e reconhece que sabe, que é a única forma de se colocar em destaque diante da massa, e que seria impossível por mérito próprio realizar tal fato. Toohey é inimigo número um de tudo que há de heroico e, durante a narrativa, utiliza-se de seu “poder” de manipulação das massas para obter prestígio e, ao mesmo tempo, prejudicar aqueles que enxergava ser um possível herói, assim como fez com Roark.

Embora a história transcorra no início do século XX nos EUA, ao ler a obra, temos a sensação de que ela é tão presente nos tempos atuais, assim como no período da escrita. Os comportamentos de seus “atores” representam os comportamentos atuais em uma sociedade que se divide entre os liberais e aqueles que pensam sempre no bem-estar coletivo. De forma a exemplificar, analisemos a crise atual em que vivemos, em que o surgimento da Covid-19 traz uma reflexão pautada diariamente na guerra de narrativas entre a liberdade e a imposição do isolamento social. Há aqueles que pregam que o bem estar de todos e as vidas devam ser salvas a qualquer custo, assim como Toohey preconizava em seus discursos. E há aqueles que compreendem que, com liberdade de escolha e a responsabilidade individual, o objetivo de salvar vidas não a qualquer custo, também é factível, assim como pensaria Roark.

Diante disso, cabe uma reflexão em tudo que Rand traz intrínseco a essa brilhante obra: como podemos ser realmente quem somos, se não encaramos a realidade daquilo que faz sentido para nós? Queremos ser manipuladores obstinados e sem princípios como Keating ou Toohey, ou queremos ser o que realmente um homem deve ser, íntegro em suas escolhas, livre em pensamento e com ética nos seus atos, assim como Roark? Separando a dramaturgia da obra, e considerando apenas os conceitos, poder fazer escolhas pautadas em valores como a liberdade e a individualidade nos levam a ter uma sociedade mais franca, menos passiva e mais progressista, assim como Roark fez em sua trajetória.

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