“Cântico” na realidade

Hoje seremos enforcados. E nos orgulhamos disso.

Nós, Ariano 1-5289, fizemos o trabalho que era necessário para salvar o Reich e manter a soberania do povo. Começamos pequenos, na escola, onde fomos ensinados que o trabalho liberta. Que trabalharíamos, todos nós, pelo nosso triunfo. E que nossa libertação seria através do digno trabalho de acabar com eles; com todos eles.

O nosso pelotão era formado por nós, Ariano 1-5289 e outros, da classe dos carpinteiros, professores, carteiros e vendedores, que não tínhamos formação como soldados – todos receberam, como nós, seis meses de treinamento especial para esta missão especial.

Pegamos nosso caminhão. Estávamos sentados atrás do volante, e todos os outros iam atrás. Nos preparamos para o início da tarefa. Outros caminhões nos seguiam, cheios deles e de suas ganâncias, seus comunismos e suas maldades.

Paramos na floresta. Mandamos que desembarcassem.

Pureza 7-2324 reconheceram em um deles o dono do cinema onde iam antes da Guerra. Costumavam se cumprimentar na máquina de pipoca, e agora Pureza 7-2324 teriam que apontar sua arma para o velho e disparar o gatilho, como todos nós.

Durante toda a tarde, eles cavaram uma imensa cova. Depois, nós mandamos que todos eles se enfileirassem em sua borda. Todos nós nos enfileiramos na extremidade oposta. E nós abrimos fogo.

Eles caíam, um por um, e nós continuávamos apertando o gatilho e derrubando-os na vala, empilhados. Trabalho 3-4464 mirava em mulheres que choravam e gritavam, e mandavam que segurassem seus bebês contra o peito, para economizarem nossas balas. Mais tarde, eles diriam para si mesmos que os bebês jamais sobreviveriam sem as mães. O que eles faziam, diziam com resignação, era misericordioso.

Quando 600 corpos se acumularam no chão fundo, falamos para os soldados que havíamos terminado o dia de trabalho. Agora, iríamos tomar Schnaps e nos divertir para esquecer o dia. Nós tomaríamos uma generosa dose de uísque, e dormiríamos ao lado de nossas mulheres, cansados e orgulhosos. A confraternização diária tinha sido ordem dos Comando Central do Reich. Nos primeiros dias de trabalho, alguns de nós tivemos dificuldades de lidar com o que havíamos feito: alguns choraram durante a noite, tendo pesadelos, muitos ficaram em estado de choque, alguns imploraram para mudar de tarefa (e foram enviados para a limpeza de latrinas) e, logo no primeiro dia, Germânico 4-6790 até mesmo vomitaram em suas botas, lá na floresta. Mas os Führer haviam pensado em tudo, e agora apagaríamos as lembranças de nosso difícil dever com diversão e conforto, uma vez que sofríamos muito mais do que qualquer um dos envolvidos nessa penosa situação.

E é por isso que hoje, quando o Tribunal de Nuremberg bateram o martelo e anunciaram que seríamos enforcados, nós sentimos orgulho.

Deixaríamos esta Terra tendo cumprido a missão atribuída ao coletivo, a missão do todo, da poderosa nação alemã – pois ainda que fracassada em seu plano original, devia ser defendida por nós, que éramos escolhidos para demonstrar sua grandeza. Não havíamos feito nada de errado; ao contrário, fizemos tudo certo. Seguimos as ordens, antagonizamos a raça inferior que nos ameaçava, junto com seus terríveis propósitos.

Obedecemos. Obedecemos porque sabíamos que nossos irmãos obedeceriam também, e sabíamos que todos nós éramos um só. Obedecemos com todo o coração, com todo o nosso potencial. E continuaríamos obedecendo, até que nossos pés flutuassem sobre o chão.

Referências:

RAND, Ayn. Cântico.

Documentário “Homens Comuns: Assassinos do Holocausto”, disponível na Netflix.

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