AYN RAND E ALTRUÍSMO (PARTE 3)

Smith explora a alegação de Ayn Rand de que o altruísmo tem um papel indispensável na justificação do coletivismo político.

No prefácio de The Moral Basis of Individualism – um livro que Ayn Rand começou a escrever para Bobbs-Merril em 1943, mas nunca o terminou – encontramos essa análise sobre o altruísmo:

“Os maiores horrores da história foram perpetrados—não pela razão, e em nome daquilo que os homens têm como mal, ou seja, o egoísmo -mas por meio, para, e em nome de um propósito altruísta. A Santa Inquisição. As guerras religiosas. As guerras civis. A Revolução Francesa. A Revolução Alemã. A Revolução Russa. Nenhum ato de egoísmo jamais se igualou às carnificinas perpetuadas pelos discípulos do altruísmo. Nem jamais um egotista incitou massas de seguidores fanáticos a lutar em prol de seu ganho pessoal. Todos os tiranos uniram homens usando slogans com propósitos altruístas, através do apelo ao autossacrifício para um objetivo altruísta maior: a salvação das almas dos outros, a propagação do iluminismo, o bem comum de seu estado.”

Aqui vemos um foco nas consequências políticas do altruísmo, fato enfatizado por Rand durante toda sua carreira. O altruísmo, para Rand, é e sempre foi a fundação moral do coletivismo. Antes que você possa persuadir as massas a sacrificarem seus próprios interesses para o “bem comum” (ou algum outro ideal altruísta similar supostamente nobre), é preciso primeiro convencê-las de que o autossacrifício é um dever moral.

Como observado em meu segundo ensaio, a ênfase de Rand no altruísmo como dever moral (uma opinião que compartilhou com Auguste Comte) foi o que a levou a insistir que altruísmo é incompatível com benevolência. Examinarei essa alegação em maior detalhe em uma edição futura. Neste ensaio discutirei algumas das observações de Rand sobre a relação entre altruísmo e coletivismo—e sobre poder político, em geral.

Uma análise fascinante da relação entre altruísmo e poder aparece em A nascente (1943). Próximo ao fim do romance, o arquivilão Ellsworth Toohey conta a um atordoado Peter Keating o verdadeiro significado do altruísmo, uma doutrina moral que Keating “tinha tentado não entender”. De acordo com Toohey, o altruísmo serve de justificativa ideológica para obter e manter poder político sobre os outros.

“Todos os sistemas de ética que pregaram o sacrifício transformaram-se em potências mundiais e dominaram milhões de homens” […] “Pregue o altruísmo. Diga ao homem que ele deve viver para os outros. Diga aos homens que o altruísmo é o ideal. Nem um único deles jamais o alcançou e nem um único jamais o alcançará. Cada um de seus instintos vivos grita contra ele. Mas você não vê o que realiza? O homem percebe que é incapaz de atingir o que aceitou ser a virtude mais nobre, e isso lhe dá um senso de culpa, de pecado, de sua fundamental falta de valor. Uma vez que o ideal supremo está além do seu alcance, ele acaba abrindo mão de todos os ideais, de todas as aspirações, de todo o senso de seu valor pessoal.Ele se sente forçado a pregar o que não pode fazer. No entanto, uma pessoa não pode ser boa pela metade ou aproximadamente honesta. Preservar a própria integridade é uma batalha dura. Por que preservar aquilo que a pessoa já sabe que está corrompido? Sua alma abre mão do respeito próprio. Você o tem. Ele obedecerá. Ficará contente em obedecer, porque não pode confiar em si mesmo, sente-se inseguro, sente-se impuro.”

O dever do autossacrifício não pode ser praticado de forma consistente, logo, o altruísmo falha como um ideal moral em bases puramente lógicas. “Nenhum ser humano pode aceitar o altruísmo completa e conscientemente – ou seja, aceitar o papel de animal de sacrifício”, como Rand afirma posteriormente em The Ayn Rand Letter (6 de novembro de 1972). Mas essa mesma falha é a fonte da força do altruísmo como base moral do coletivismo. Nas palavras de Toohey, “Não se incomode em analisar uma idiotice, pergunte-se apenas que consequências ela causa.”

A incoerência final do altruísmo – sua idiotice – provou-se útil para os que buscam o poder ao lhes permitir empregar chavões vazios para inspirar e motivar as massas. “Você não precisa ser muito claro a respeito disso, tampouco”, observa Toohey. “Use palavras impactantes, mas vagas”, que sugerem um tipo de felicidade misteriosa, atingível apenas através do autossacrifício—expressões que não podem ser definidas precisamente, nem nunca tiveram a intenção de ser. “A farsa prossegue há séculos e os homens ainda caem nela”. Toohey continua:

Apenas escute qualquer profeta e, se o ouvir falar de sacrifício, saia correndo. Corra mais rápido do que se estivesse fugindo de uma peste. Se usarmos a razão, fica claro que, onde há sacrifício, há alguém coletando as oferendas sacrificiais. Onde há serviço, há alguém sendo servido. O homem que lhe fala de sacrifício fala de escravos e donos. E tem a intenção de ser o dono.”

Ellsworth Toohey é um dos personagens mais complexos já desenvolvidos por Rand. O esboço inicial dele, escrito em 1937, é muito maior e mais detalhado do que o dos outros personagens em A nascente. Toohey, Rand escreveu, é dominado por um “desejo de poder”, embora possua a “astuta percepção de que apenas o controle mental sobre os outros é a fonte do controle verdadeiro, que se ele puder controlá-los mentalmente, ele será, de fato, o dono deles.”

A mera força física, Toohey explica a Keating em A nascente, não é nada comparada ao poder sobre as mentes dos homens que só o altruísmo propicia. Convença as pessoas de que elas não têm o direito de viver para seus próprios interesses, que elas têm um dever moral de sacrificar seus interesses aos dos outros, que a felicidade pessoal deve sempre ser subordinada às necessidades dos outros, e você será recompensado com a “alavanca” essencial para a aquisição e manutenção do poder. Nada se compara a esse tipo de poder ideológico – nem “chicotes ou espadas ou fogo ou armas”, ou o poder exercitado pelos “Césares, Atilas, [e] Napoleões” – simples “tolos” cujo poder “não durou” porque ficaram muito dependentes da força bruta.

O personagem de Ellsworth Toohey (como observei em meu último ensaio) foi concebido por Rand para representar uma variante do conceito tradicional de egoísmo. De fato, dado o desejo dominante de Toohey de ter poder sobre os outros, e dado seu entendimento de que o altruísmo é “uma grande ajuda” na conquista desse objetivo, por que ele poderia ser chamado de “altruísta”?

Em seu esboço do personagem de 1937, Rand se refere à “monstruosidade” do egoísmo “altruísta” de Toohey, e nos diz que “a cruzada de Toohey é completamente egoísta no [sentido do] egoísmo altruísta pervertido do ‘aproveitador’”. Embora muitos críticos de Rand possam descartar essas declarações aparentemente paradoxais, fazê-lo seria injusto para com Rand, que desenvolveu sua noção de egoísmo racional com um grande detalhamento tanto em seus escritos de ficção, quanto de não ficção. Embora críticas à Rand possam ser tecidas nesse como em outros, críticas baseadas na ignorância sobre sua teoria do egoísmo não vão lograr nada e desmerecem o debate intelectual.

Infelizmente, uma discussão acerca das nuances psicológicas dos conceitos tradicionais de egoísmo, como exemplificado (em uma de suas variantes) pelo personagem de Ellsworth Toohey, seria bastante complicada, e está fora do escopo dessa série. Eu não poderia fazer justiça a tal análise no espaço que tenho disponível. Mas posso responder uma questão mais geral de forma mais precisa: até que ponto, de acordo com Rand, essas pessoas que buscam o poder invocando o altruísmo para justificar suas ações realmente acreditam no que pregam? Dado que a doutrina do altruísmo é uma ferramenta indispensável para que elas adquiram poder sobre os outros, elas, em geral, acreditam em sua própria propaganda?

Em The Moral Basis of Individualism, Rand escreveu que muitos “egoístas hipócritas” têm invocado o altruísmo “para iludir seus seguidores e atingir fins pessoais… Mas nunca causaram tragédias como os mais puros ‘idealistas’. Os piores assassinos foram os mais sinceros”.

Anos depois, em To Dream the Non-Commercial Dream (The Ayn Rand Letter, 1º de Janeiro de 1973), Rand discutiu a mesma questão em detalhe. Os “defensores apaixonados dos ideais altruístas…não são hipócritas”. A maioria deles é sincera, de certo modo, porque não tem outra escolha realista.

“Eles precisam acreditar que seu trabalho serve aos outros, os outros gostando ou não, e que o bem dos outros é sua única motivação; eles acreditam nisso – apaixonada, feroz e militantemente – na forma pela qual uma crença é distinguível de uma convicção: sob a forma de uma emoção imune à realidade.”

Na verdade, a fé no altruísmo necessária aos líderes políticos é mais profunda do que “a fé que eles exigem de suas vítimas” – e, nesse sentido, aqueles que invocam o altruísmo para justificar seu próprio poder “acreditam no que pregam”. É esse tipo de fé autoilusória que permite que eles “mintam, trapaceiem, roubem, matem” com uma consciência limpa, “desde que mantenham, como absoluto inviolável, a crença de que eles são portadores e executores de uma verdade maior que justifica, de alguma forma, qualquer ação que possam cometer”.

Assim o altruísmo emerge como um tema dominante nos escritos de Rand. É uma doutrina que introduz um profundo amoralismo na sociedade, uma doutrina que supera os direitos individuais e a liberdade com um vago apelo à suposta virtude do autossacrifício. Tudo isso serve para fazer do altruísmo uma ideologia política para todas ocasiões, um disfarce para que quaisquer grupos de interesse possam pleitear com sucesso suas necessidades particulares, enquanto exigem que os outros sejam compelidos, em nome da justiça social, a satisfazer essas necessidades. Como Rand coloca:

“Nenhum homem pode enfrentar seus pares e declarar que tem a intenção de forçá-los a apoiá-lo sem nenhuma razão, apenas porque ele quer, para seu próprio interesse “egoísta”. Ele precisa justificar sua intenção, não simplesmente aos olhos dos outros, mas, acima de tudo, aos seus próprios. Existe apenas uma doutrina que pode servir de justificativa: o altruísmo.”

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Publicado originalmente em Cato Institute.

Traduzido por Felipe André.

Revisado por Matheus Pacini.

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