Ayn Rand e (A revolta de Atlas)

Este artigo é uma compilação de dois artigos publicados anteriormente. Para tentar fazer unidade coerente de matérias escritas em diferentes momentos e com distintas finalidades, precisei revisar, adaptar e atualizar as matérias – que podem ser lidas em suas versões originais nas notas ao final de cada seção.

Introdução e tema geral

A “Bíblia” do pensamento liberal clássico na segunda metade do século XX não foi um livro de economia ou mesmo de filosofia política: foi um romance de mais de mil páginas: A revolta de Atlas. Para quem não tem muita familiaridade com o inglês, o título, no original, quer dizer “Atlas deu de ombros”, isto é, encolheu os ombros nos quais sustentava o mundo, deixando que o mundo se arrebentasse.

O livro foi escrito por Ayn Rand (1905-1981), romancista, filósofa e polemista russo-americana, nascida na Rússia com o nome de Alyssa Zinovievna Rosenbaum. Ela emigrou para os Estados Unidos em 1926, aos 21 anos de idade. O livro, seu magnum opus, foi publicado originalmente nos Estados Unidos em 1957 (vai fazer 60 anos em 2017, no ano que vem). Por admissão dos próprios, o livro influenciou Ronald Reagan e Margaret Thatcher e, através deles, a história do Ocidente. Alan Greenspan, o todo-poderoso chefe do Federal Reserve Bank americano de 1987 a 2006, se incluía entre os discípulos de Ayn Rand.

Essa clássica defesa da liberdade do indivíduo que, na esfera econômica, é conhecida como capitalismo, ganhou uma nova edição em português em 2010 com um novo título Revolta de Atlas, numa reedição da Editora Sextante, do Rio de Janeiro, com o apoio do Instituto Millenium. O novo título segue o título da edição espanhola, La Rebelión de Atlas. A edição brasileira anterior, publicada em 1987, e há muito esgotada, tinha o título de Quem é John Galt? O título anterior corresponde a uma frase frequentemente usada no texto. Mas, para os que não conhecem ainda a obra, é meio obscuro. A tradução usada na presente edição é a mesma, mas ela foi revisada, corrigida e melhorada pela Sextante.

Com 1.231 páginas na presente edição brasileira, o livro tem enredo extremamente complexo, bem elaborado e atraente – e surpreendentemente atual, especialmente quando se leva em conta o fato que foi publicado há quase 60 anos (sua preparação, pesquisa e redação tendo custado mais de dez anos da vida de Ayn Rand). É bom lembrar que em 1957, quando o livro foi publicado, estávamos, aqui no Brasil, no meio do governo Kubitscheck, na euforia da construção de Brasília e da aceleração do nosso desenvolvimento: cinquenta anos em cinco. Clima de “ninguém segura este país”, “este é um país do futuro”, etc.

Os principais personagens da história também são bem-definidos e muito interessantes. Eles são a vice-presidente operacional da principal companhia ferroviária dos Estados Unidos, a única que é verdadeiramente transcontinental, fazendo viagem de Nova York a São Francisco; o proprietário da maior siderúrgica americana, que inventa um metal mais resistente, leve e barato do que o aço; o proprietário e líder mundial da indústria de extração, industrialização e comercialização de cobre, argentino de nascimento; e um inventor misterioso, sobre o qual há suspense nos primeiros dois terços do livro, deixando todo mundo, dentro e fora do livro, curioso. Vem daí o Quem é John Galt? Vários personagens secundários, todos eles muitíssimo interessantes, completam o quadro. O meu favorito, dentre os secundários, é Hugh Akston, professor de filosofia, dono de uma lanchonete, e sócio de uma fábrica de cigarros (cuja marca é simplesmente $, o sinal do dólar).

Nesta seção darei apenas uma breve descrição do tema escolhido por Rand para seu magnum opus, para que o leitor possa ter uma ideia da dimensão da obra. Publicada em 1957, a história se passa nos Estados Unidos, numa época futura em que o país, seguindo o exemplo de países europeus e latino-americanos, caminha para o socialismo não-revolucionário, aquele socialismo supostamente democrático que transforma a sociedade através da legislação e da demagogia. Os países vão se transformando, um a um, especialmente na Europa, que lidera o processo, em “Repúblicas Populares”, que, gradualmente, têm sua economia totalmente regulada, manietada mesmo, e, assim, controlada e socializada. Os Estados Unidos parecem ainda ser capazes de resistir, mas, aparentemente, não por muito tempo. O clima é de guerra contra os empresários, em especial, os industrialistas.

O livro descreve o que acontece quando aqueles que (como Atlas) sustentam o mundo nas costas resolvem fazer greve, assim sacudindo o mundo dos ombros e deixando que ele literalmente “vá para o brejo”. Na verdade, a guerra é contra todos os que têm habilidade e competência e valorizam no limite a sua independência, a sua autonomia, a sua liberdade — em relação ao governo e à sociedade.

Pela primeira vez na história, as pessoas de habilidade e competência resolvem fazer greve. O título original do livro era The Strike. Em Francês, continua a ser La Grève. “Vamos ver o que acontece ao mundo quando quem faz greve contra quem” é frase (retirada do livro) que resume o tema da obra.

Entrando em greve, empresários e empreendedores americanos começam a desaparecer, abandonando suas empresas nas mãos de reguladores e controladores estatais. Grandes filósofos, cientistas e artistas também desaparecem, abandonando seus empreendimentos. O lado otimista da história é que o estado pode confiscar os produtos e as produções de empresas e outros empreendimentos, pode até se apropriar das próprias organizações, mas não consegue obrigar empresários e outros empreendedores a lhe arrendar suas mentes, sua inteligência, sua criatividade, sua habilidade, sua competência, seu trabalho… O estado, portanto, que fique com as empresas e os diversos empreendimentos, decidem seus proprietários na história. Mas eles não colocam mais suas mentes a serviço da sustentação de um mundo onde esse tipo de confisco pode acontecer. Na realidade, aquilo que eles deixam para o estado espoliador não passa da carcaça – a imagem é usada no livro – de empresas e empreendimentos cuja alma eles levaram consigo.

A história narra nos mínimos detalhes o caos que resulta dessa inusitada greve em que aqueles que normalmente são vítimas das greves, os empresários e empreendedores, retiram do mercado sua mente e seu trabalho, e, no processo, deixam o mundo sem bens, sem serviços e sem empregos.

Quando Atlas faz greve, o mundo literalmente para e, a seguir, desmorona (mais ou menos como aconteceu com o mundo comunista em 1989-1991, mais de trinta anos depois do livro – com uma pequena colaboração de Reagan e Thatcher, fãs do livro e de sua autora).

O livro coloca o foco na tentativa heroica da principal personagem, a vice-presidente da Taggart Transcontinental, de resistir à greve – mas, no final, ela consegue e (no bom sentido) sucumbe (adere à greve).

Ao final da história, quando as luzes do velho mundo se apagam, simbolizando a derrocada que lhe sobrevém quando Atlas deixa de sustentá-lo, a porta está aberta para a construção de um mundo novo: a greve termina e Atlas está pronto para reassumir seu lugar – agora com um exército consciente e bem preparado de aliados pronto para ajudá-lo.

60 Anos de A revolta de Atlas

A revolta de Atlas, publicado quase 60 anos atrás, continua a ser o mais profundo romance de análise política do século XX. Um romance engajado de uma escritora radicalmente liberal. Surpreendentemente, é também o mais popular.

Os críticos literários não gostaram — o que não é novidade. A esquerda — em especial, a esquerda marxista — detestou. A esquerda mais light, socialdemocrata, também não gostou, mas controlou um pouco o seu ódio.

O público leitor, entretanto, amou…

Um pouco antes da última virada do século a Random House, editora americana, resolveu elaborar duas listas dos 100 melhores livros de ficção do século XX. Para a primeira, solicitou a opinião dos seus editores e críticos literários; para a outra, a opinião do público leitor. Não há surpresa no fato de que as duas listas quase não têm sobreposições. A revolta de Atlas ficou no primeiro lugar na lista dos leitores, seguido de A nascente, também de Ayn Rand (publicado em 1943). As duas listas completas estão disponíveis no site da Random House, nesse endereço. (A propósito, a lista dos editores e críticos tem Ulisses, de James Joyce, em primeiro lugar, e The Great Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, em segundo.)

O fato de A revolta de Atlas ter ficado em primeiro lugar na lista dos leitores é surpreendente por várias razões. Uma delas é que o livro tem, em sua edição de capa dura, quase 1.200 páginas. Outra, que essas páginas contêm discussões filosóficas bastante densas acerca da natureza humana, do trabalho, do dinheiro, do sexo, da felicidade; da lógica, do conhecimento e da verdade; da ética e dos valores; da liberdade e dos direitos individuais; da política, do estado e do governo; da economia, da livre iniciativa, da propriedade privada. O livro é uma defesa intransigente do liberalismo, sem adjetivos, e do capitalismo, que é sua expressão na área econômica. A defesa do capitalismo tem como base não só o fato de que ele é o único sistema econômico capaz de realmente produzir riqueza e desenvolvimento (econômico, social e humano), mas também o único sistema econômico compatível com um regime político livre e, portanto, justificável moralmente. A defesa do capitalismo é, portanto, não só utilitária, mas também moral, no sentido mais objetivo do termo.

A natureza filosófica de A revolta de Atlas pode ser percebida na simples leitura do título de suas três partes:

  • “Não-Contradição”
  • “Ou Um Ou Outro”
  • “A é A”

Esses três títulos se referem aos três princípios básicos da Lógica, a saber: o princípio da Não-Contradição (nenhum enunciado pode ser verdadeiro e falso), o princípio do Terceiro Excluído (um enunciado tem de ser ou verdadeiro ou falso, não há uma terceira possibilidade), e o princípio da identidade (se um enunciado é verdadeiro, então ele é sempre verdadeiro; se ele é falso, então ele é sempre falso).

É um tributo à habilidade linguística de Ayn Rand, para quem o inglês não era a língua mãe (ela nasceu na Rússia em 1902 e só veio para os Estados Unidos já adulta, em 1926), ter conseguido tal domínio dessa língua a tal ponto de sua obra ser considerada um clássico da literatura americana. Nas livrarias, é encontrado sempre entre os clássicos da literatura americana.

É um tributo à habilidade literária de Ayn Rand — que inclui as habilidades de construir um enredo fascinante, definir personagens marcantes, gerar e manter suspense, levar o curso dos eventos a um clímax — que A revolta de Atlas, apesar do tamanho e da complexidade da trama, tenha vendido vários milhões de cópias em suas várias edições (no original – não incluindo as traduções).

A história, narrada na terceira pessoa, se passa nos Estados Unidos (como se observou na seção anterior), em algum momento depois da guinada daquele país para a esquerda, algo que aconteceu durante o New Deal (década de 1930, começo da década de 1940). Provavelmente a data melhor para situar os eventos seja por volta do final dos anos finais do Século 20. Na história, os vários países europeus já se tornaram “Repúblicas Populares”, isto é, já se tornaram socialistas, e os Estados Unidos caminham rapidamente na mesma direção. O governo americano, “em nome do povo”, interfere aberta a decididamente na economia, com leis e decretos (“diretivos”) que buscam “equalizar as oportunidades empresariais”, mas que tornam cada vez mais difícil para os empreendedores realmente competentes produzirem livremente, isto é, sem involuntariamente descumprirem ou intencionalmente burlarem alguma determinação governamental. A tentativa de “igualizar as oportunidades empresariais” é feita em nome do princípio marxiano de que os que têm habilidade e competência devem obrigatoriamente ajudar os que precisam: “de cada um conforme a sua habilidade, a cada um conforme a sua necessidade”.

A estratégia do governo regulamentador, como cinicamente revelada pelo Dr. Floyd Ferris, um dos diretores do Instituto Nacional de Ciência (expressão que contém uma contradição de termos, segundo Rand), não é que todos os empresários cumpram essa miríade de normas e regulamentos. A intenção é que todos os empresários se tornem, inevitavelmente, criminosos, por ser impossível produzir sem quebrar alguma norma ou regulamento governamental. Como o poder governamental é, acima de tudo, o poder de punir os criminosos, o governo, assim, adquire um enorme poder de barganha, vendendo favores através de esquemas cada vez mais corruptos. (Apesar da distância no tempo e no espaço, qualquer semelhança com o Brasil de hoje é pura coincidência…).

O governo não tem nenhum poder de barganha com o inocente: sua força advém do fato de que ele pode punir — aqueles que quebram suas leis. Se as leis forem mínimas e racionais, pouca gente as descumprirão. Se os impostos forem baixos, poucas pessoas deixarão de pagá-los. Se existirem, porém, leis e impostos em grande quantidade, formando um emaranhado indecifrável de normas e regulamentos de interpretação sempre obscura e questionável, todas as pessoas se tornarão criminosas e, portanto, passíveis de punição por parte do governo. Como é virtualmente impossível punir todo mundo, o governo seleciona aqueles que ele, sob a ameaça de punição, quer “enquadrar”. “Faz chantagem” é a expressão correta.

Nesse quadro, começa a ocorre algo curioso, que fornece o elemento central do enredo do romance. Quando a pressão se torna perto de insuportável para um grande industrial, ele simplesmente desaparece sem deixar vestígio – tira o time de campo. Às vezes, ele deliberadamente destrói sua indústria antes de partir, como o fez Ellis Wyatt, o magnata do petróleo. Outras vezes ele a deixa virtualmente intacta (como o faz Hank Rearden, o dono da siderúrgica), na certeza de que, sem ele, ela não vai durar muito. Gradativamente vai se mostrando que esses desaparecimentos não são atos de covardia individuais, sem coordenação, mas, sim, parte de uma greve muito organizada dos empresários realmente competentes e produtivos, dos quais depende a economia nacional — greve inicialmente pequena, mas que ganha momento e começa a preocupar não só os empresários que ainda não aderiram, mas o próprio governo que, pouco a pouco, percebe que a economia está entrando em colapso.

O objetivo da greve é mostrar ao mundo quem sai realmente perdendo quando quem entra em greve… As greves tradicionais, feitas pelos trabalhadores contra os empresários (especialmente do setor industrial), tentam mostrar que os trabalhadores são os reais produtores, a fonte real da riqueza dos empresários industriais, que os exploram, retendo para si grande parte do preço de venda dos produtos (a “mais valia”). A greve dos empresários industriais procura mostrar que eles são os reais geradores de riquezas, fazendo dinheiro com sua capacidade criativa (suas ideias inovadoras) e produtiva (sua habilidade de transformar essas ideias em realidade, isto é, em produtos e serviços). Sem eles a maior parte dos trabalhadores não teria trabalho e literalmente morreria de fome (como frequentemente acontecia antes da era liberal-capitalista e aconteceu nos regimes comunistas). Os empresários industriais e demais empreendedores são, portanto, o Atlas que segura o mundo nos ombros. Ao entrar em greve, eles estão sacudindo os ombros e deixando o mundo literalmente ir para o brejo.

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Publicado originalmente em Ayn Rand Space.

Revisado por Matheus Pacini.

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