Às vezes, fãs de Ayn Rand falam, em resposta a algum argumento apresentado por mim ou outra pessoa, – “mas Ayn Rand disse…” – como se o fato de Rand ter comentado sobre um assunto fizesse dela a fonte de verdade sobre ele.
Tais alegações não são, para dizer o mínimo, argumentos.
Exemplos desse tipo de “argumento” incluem:
- Rand disse que homossexualidade é imoral, então, é imoral.
- Rand disse que a música do Beethoven é malevolente, então, é malevolente.
- Rand disse que o conceito de “dever” pode ser legitimamente usado com respeito às responsabilidades de alguém para com seus pais, então, pode.
- Rand disse que uma mulher que procurasse assumir a presidência seria, justamente por tal fato, psicologicamente indigna do cargo, então, isso é verdade.
É claro, poucas pessoas recorrem a tais apelos à autoridade de forma tão direta. Tais recursos normalmente são mesclados em um palavrório (veja abaixo). Seja aberto ou dissimulado, um apelo à autoridade é um apelo à autoridade.
Não tenho como saber se Rand teria mantido qualquer uma das posições supracitadas. O fato é que ela as fez, e alguns de seus fãs muitas vezes citam-nas no intuito de, ao citá-las, tornar a sua afirmação verdadeira.
Por exemplo, considere, o diálogo que ocorreu na página do Facebook do The Objective Standard alguns meses atrás.
Nós publicamos uma foto de Martin Luther King Jr., com a seguinte citação de seu discurso A proper sense of priorities:
O covarde pergunta: “é seguro?” O oportunista pergunta: “é viável politicamente?” O vaidoso pergunta: “é popular?” O consciente/moral, todavia, -pergunta: “é correto?” E chega um momento em que um homem deve tomar uma posição que não é nem segura, nem política, nem popular – mas que é preciso ser tomada porque é correta.
Em resposta a esse post, um leitor postou essa citação de Ayn Rand:
“É tarde demais para ter esperança em pequenos gestos fora de contexto. Pequenos atos de racionalidade podem ser importantes, talvez mais importantes do que nunca, mas apenas se forem parte da posição filosófica consistente de um homem. Atos aleatórios (mesmo que possam ser encontrados), não podem nos salvar nem nos inspirar.
“Não consigo mostrar o quanto gostaria que fosse possível publicar um “arquivo de realização” ou relatar eventos positivos com mais frequência. Mas “ainda há tempo”. Reproduzir citações “inspiradoras” de fontes aleatórias seria pior do que fútil: implicaria uma sanção que não podemos conceder a essas fontes.”[1]
E depois, deixou seu comentário pessoal:
Ayn Rand escreveu tal passagem no mesmo ano do discurso de Martin Luther King. Talvez tenhamos que ter isso em mente da próxima vez que tiverem vontade de compartilhar algo dito por alguém cuja filosofia básica é totalmente antitética ao Objetivismo, não é?
Ao longo da história, muitas pessoas disseram coisas como “faça o que é certo, em vez do que é popular” retirada de seu contexto, essa não é uma declaração original e, muito menos importante. Por que usar uma citação do Dr. King especificamente? Se um dia ele mencionasse que o céu era azul, o TOS também publicaria? Ele não era um filósofo com moral individualista. Ele fez discursos falando em “vencer o egocentrismo” e “amar os seus inimigos”. Qual é o propósito de compartilhar isso publicamente?
Embora nesse caso – depois do apelo à autoridade – o leitor tenha oferecido algo parecido com um argumento, a essência de sua afirmação é: “Rand discordaria do que você fez aqui, então, envergonhe-se!
Eu, Craig Biddle, respondi da forma mais educada possível:
[Fulano], o The Objective Standard não concorda com tudo que foi dito ou escrito por Ayn Rand. Por sua lógica, por exemplo, não devemos nos inspirar ou postar citações de Thomas Jefferson, afinal, ele tinha escravos e, portanto, não tinha uma posição filosófica consistente na defesa dos direitos individuais.
O propósito de compartilhar essa citação de Martin Luther King é que é uma declaração excelente de um homem que, embora imperfeito, tinha alguns traços e virtudes muito admiráveis.
Se você estiver interessado em avaliações do M.L.K. por alguns dos nossos escritores, você os encontrará nos links abaixo.
- “I Have a Dream”: Martin Luther King Urges Consistency to Founding Principles.
- Martin Luther King Jr. and the Fundamental Principle of America
- Dr. King Ended the Terror of Living in the South
Recentemente, li uma grande quantidade de tais “argumentos” após meu apoio a Ted Cruz para presidência dos Estados Unidos.
Entre os muitos comentários em desaprovação estavam: “Mas Ayn Rand discordaria de você!”, acompanhado de uma citação de Rand ou de um apelo à autoridade. Num desses casos, alguém postou um vídeo em que Rand explicou que ela se opunha a Ronald Reagan devido às suas opiniões religiosas e à sua posição com respeito ao aborto, junto com o seguinte comentário: “Ayn Rand rejeitou Ronald Reagan, e, portanto, ela NUNCA apoiaria Ted Cruz” – como se isso mostrasse que meu apoio a Cruz estava equivocado.
Noutro, um leitor tentou postar o seguinte na seção de comentários do blog do The Objective Standard:
Ayn Rand se opôs à candidatura de Ronald Reagan em 1976, pois ele se opunha ao direito ao aborto. Ted Cruz também se opõe ao direito ao aborto, como Biddle reconhece e condena de maneira apropriada. No entanto, Biddle considera tais fatos como desprezíveis frente aos méritos de sua candidatura. Ted Cruz se opõe ao direito ao aborto até mesmo para vítimas de estupro e incesto. Ele também rotula formas de contracepção, como a pílula do dia seguinte, como “abortivas”, e tem se referido repetidamente à contracepção como “drogas indutoras de aborto”. Então, eu não acho que Rand teria apoiado Ted Cruz para presidente.
Então, segue o “argumento”, Rand se recusou a apoiar Reagan, alegando que ele se opunha ao direito ao aborto, logo, Rand (provavelmente) não apoiaria Cruz; Biddle está violando a posição (provável) de Rand sobre este assunto; portanto, Biddle está (provavelmente) errado em apoiar Cruz.
Em relação a todos os “argumentos” supracitados, e a inúmeros exemplos como esses, aqui segue um princípio que alguns leitores não entendem: a verdade não é o reconhecimento das palavras de Ayn Rand; a verdade é o reconhecimento da realidade.
Reconhecer a realidade é muitas vezes mais difícil do que citar um livro ou postar um vídeo sobre determinado assunto. Por um lado, reconhecer a realidade exige reconhecer o contexto relevante em torno do assunto em questão. Esse contexto é parte da realidade – e é parte do que se deve considerar se o objetivo é conhecer a verdade.
Em meu apoio a Cruz, especifiquei o contexto relevante e forneci inúmeras razões calcadas numa grande quantidade de evidências em apoio à conclusão de que, em todos os aspectos, Cruz é o melhor candidato pró-direitos, pró-liberdade, pró-constituição e pró-EUA da corrida presidencial. Mas para quem trata as palavras de Ayn Rand como a autoridade final em questões políticas, nada disso importa.
Se Rand estivesse viva hoje, ela apoiaria Cruz? Ninguém sabe. Além disso, nada depende dessa resposta.
Mas se eu fosse arriscar um palpite, diria que ela provavelmente apoiaria. E suspeito que o raciocínio dela seria semelhante ao meu. Se, no entanto, Rand não apoiasse Cruz, eu compartilharia meu argumento com ela sobre o porquê creio que ela deveria. Se ela expressasse discordância com minha posição, eu a ouviria atentamente, analisando o seu argumento. Depois disso, verificaria de forma racional e conclusiva se o argumento dela contradizia minha argumentação. Se isso acontecesse, eu mudaria de ideia; se não, não.
Isso deveria ser óbvio. Por que não o é para algumas pessoas? Eu creio que parte da explicação seja que, por Rand estar muito certa em tantas questões complexas – em especial, com respeito a fundamentos filosóficos – muitos de seus fãs se acostumaram com ela estar certa, recorrendo a ela, e não à realidade, em busca de respostas a perguntas importantes. Isso é um hábito muito negativo.
As pessoas que tratam Rand como se ela fosse a autoridade final em questões de ética, política, estética – ou qualquer outra coisa (com exceção do que se qualifica como parte de sua filosofia) – geralmente não compreendem o Objetivismo. Elas também exibem um perigoso grau de “segunda mão” e uma mentalidade de culto.
Não há, é claro, nada de errado em citar Rand ou qualquer outra pessoa numa discussão – se a citação se relacionar e fortalecer o próprio argumento ou posição baseada em evidências. Assim como podemos citar legitimamente Charles Darwin quando falamos da teoria da evolução, ou Ludwig von Mises quando falamos da praticidade do livre mercado, também podemos citar legitimamente Ayn Rand ao defender uma posição em que suas ideias se apliquem.
Mas citar ou mencionar Rand como se ela fosse a autoridade final em algum assunto é engajar-se na falácia do apelo à autoridade. E utilizar tal apelo com a intenção de envergonhar as pessoas que apoiam o contrário do que ela disse é se envolver na falácia do argumento da intimidação – que, ironicamente, foi identificada pela própria Rand.
Se uma pessoa não pode dar suporte ao seu argumento com evidências e lógica, então, ela não tem argumentos – e não deve fingir que tem. Se ela citar uma suposta autoridade final como se isso resolvesse o problema, ela estará se envolvendo em falácias lógicas e esse comportamento não é nada recomendado.
Argumentar sobre ética, política e outras questões complexas requer primeiramente esforço mental, um compromisso com a verificação do contexto relevante, e um compromisso de ir atrás de evidências e lógica – onde quer que elas possam levar. É isso que mantém o pensamento ligado à realidade. É isso que mantém as escolhas e ações de uma pessoa a serviço da vida. E isso, não por coincidência, é como Ayn ??Rand desenvolveu o Objetivismo.
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Publicado originalmente em The Objective Standard.
Traduzido por Josiberto Benigno
Revisado por Matheus Pacini.
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[1] The Objectivist, março de 1967, pagina 238 da antologia.