A relevância histórica de A Revolta de Atlas

Enquanto o capitalismo estava nos conduzindo a um futuro tecnológico que iria, entre outras coisas, duplicar a expectativa de vida do ser humano, os intelectuais estavam olhando para trás, para a Idade Média, e prevendo que toda essa nova ciência e tecnologia traria desastre. (E continuam fazendo isso, só que hoje o bicho-papão não é mais Frankenstein, mas o aquecimento global.

Algumas décadas depois, um intelectual alemão chamado Karl Marx apresentou uma das críticas mais influentes, porém totalmente incorreta, a esse novo sistema capitalista. Uma Revolução Industrial impulsionada por avanços científico-tecnológicos resultantes das mentes de alguns indivíduos extraordinários, ele descreveu como produto coletivo, anônimo, da força física bruta; um sistema econômico de liberdade, ele descreveu como um sistema de opressão; um sistema construído sob o direito de propriedade, ele descreveu como um sistema baseado na expropriação. Para finalizar, ele propôs, paradoxalmente, opressão e expropriação como solução.

Esse tem sido o padrão dos artistas e intelectuais ao lidar com o fenômeno mais significativo de nossa época. Enquanto o mundo era transformado ao seu redor, eles se recusavam a entender o real significado desses eventos, escolhendo ignorar ou denegrir as forças que estavam melhorando a vida humana.

Nesse contexto, podemos ver o significado mais amplo da realização literária e filosófica de Ayn Rand. Ela foi a primeira romancista e pensadora a compreender totalmente o significado do capitalismo e da Revolução Industrial, expressando-o tanto a literatura como na filosofia.

O aspecto mais radical de A Revolta de Atlas é que Ayn Rand encontrou suspense, heroísmo e profundo significado filosófico nas conquistas de empreendedores e industrialistas que estavam remodelando o mundo.

A Revolta de Atlas foi escrito em uma época de socialismo global crescente. Extrapolando as tendências de seu tempo, Ayn Rand previu um futuro em que a maioria dos países do mundo estaria afundada na pobreza e opressão das “repúblicas populares”, enquanto a própria nação americana sucumbiria sob o peso da intervenção governamental na economia.

Ela viu um potencial dramático em uma simples pergunta: o que aconteceria se empreendedores e negócios inovadores – após décadas de difamação e regulação – começassem a desaparecer? O desaparecimento dos gênios mais produtivos é o mistério central do romance, tanto factual como intelectualmente.

No aspecto factual, a história segue Dagny Taggart, uma mulher na posição então não convencional de vice-presidente de uma ferrovia transcontinental, e sua luta para manter sua rodovia operando apesar de regulações governamentais cada vez mais pesadas, enquanto tenta resolver uma série de mistérios: um jovem promissor recusa uma promoção e opta por um trabalho qualquer; um herdeiro espetacularmente talentoso de uma multinacional do cobre abandona seu trabalho para se tornar um playboy dos mais extravagantes; um gênio que inventa um novo motor revolucionário abandona sua criação nas ruínas de um fábrica abandonada.

A questão factual é: que fim levaram todas essas pessoas? Por que elas desistiram do seu trabalho? Existe alguém ou algum motivo que as está fazendo desaparecer?

Dentre as questões filosóficas levantadas pelo enredo, estão: qual é o papel de empreendedores e inovadores em uma sociedade? O que os motiva, quais são as condições necessária para desenvolver o seu trabalho? O que acontece com o mundo quando eles desaparecem? O mistério factual está integrado à questão filosófica mais profunda do romance: qual é o status moral do empresário e do industrialista?

O capitalismo produziu um conjunto extraordinário de inovações científico-tecnológicas através da liberação da criatividade humana – ainda assim, tal fato foi amplamente desconsiderado como fenômeno digno de significância moral ou intelectual. Ayn Rand foi a primeira a celebrar as realizações dos James Watts, Andrew Carnegies e Thomas Edisons do mundo, e a reconhecer em seus energias produtivas um exemplo de heroísmo moral.

Considere essa passagem em que o magnata do aço Hank Rearden reflete sobre o processo que deu origem a sua revolucionária liga de metal, o metal Rearden.

Não pensava nos 10 anos. O que deles restava hoje era apenas um sentimento que não sabia nomear. Sabia apenas que era tranquilo e solene. Era o sentimento de alguma conclusão, de alguma soma, e ele não precisava contar novamente as partes de que esta operação se compunha. Mas as partes, ainda que não invocadas, ali estavam, no interior do sentimento. Eram as noites passadas ante cada abrasadora fornada nos laboratórios de pesquisa da sua indústria, as noites na oficina de sua casa, debruçado sobre folhas e folhas de papel, que ele enchia de fórmulas e depois rasgava com o desespero do fracasso. Eram os dias nos quais os jovens cientistas do pequeno grupo que ele escolhera aguardavam suas instruções, como soldados prontos para uma batalha perdida, tendo já esgotado sua criatividade, ainda a postos, mas silenciosos, com a frase não pronunciada pairando no ar: “Sr. Rearden, é impossível…” Eram as refeições interrompidas ou abandonadas por causa do súbito aparecimento de uma ideia nova, de uma ideia que deveria ser testada imediatamente, ser tentada, ser investigada durante meses, e que, mais tarde, seria descartada como novo fracasso. Eram os momentos roubados de reuniões, contratos, do dever de administrar a melhor siderúrgica do país, momentos roubados com sentimento de culpa, como os que se roubam para amores secretos. Era o pensamento fixo que, durante um período de 10 anos, se manteve subjacente a tudo o que ele fazia, a tudo o que via. O pensamento que ele mantinha enquanto olhava para os edifícios de uma cidade, os trilhos de uma ferrovia, a luz da janela de uma casa de campo vista a distância, a faca na mão de uma bela mulher cortando uma fruta num banquete. A ideia de uma liga de metal que pudesse fazer mais do que o aço jamais fizera, um metal que viesse a ser para o aço o que o aço fora para o ferro. Eram os sentimentos torturantes que experimentava ao descartar uma esperança ou uma amostra, sem se permitir reconhecer que estava cansado, sem se dar tempo para sentimentos, circulando sempre na tortura do “não está suficientemente bom”, do “ainda não vai ser desta vez”, e o espírito de continuar em frente sem qualquer ajuda que não a da convicção de que aquilo podia ser feito. Até o dia em que foi realmente concluído e seu nome era metal Rearden. Era isso que havia se transformado e fundido dentro de si, e a liga que agora se formava entre essa realidade e ele mesmo gerava um sentimento tranquilo e estranho, que o fazia sorrir no escuro, no meio do campo, e se perguntar por que a felicidade podia doer às vezes.[1]

Essa é uma visão do empreendedor inovador como um tipo de cruzado, movido por profundo compromisso pessoal com a excelência moral.

O tema filosófico central de A Revolta de Atlas é a destruição da dicotomia intelectual popular entre as ocupações mais elevadas do intelecto e o mundo supostamente sujo e anti-intelectual dos negócios. A resposta de Ayn Rand é oferecida logo no início do romance por Francisco D´Anconia. Um flashback nos mostra Francisco e Dagny Taggart como jovens avaliando o maquinário de um ferro-velho, para a desaprovação de um conhecido da família:

Uma vez, um velho professor de literatura, amigo da Sra. Taggart, viu-os no alto de uma pilha de destroços num ferro-velho, desmontando a carcaça de um automóvel. Ele parou, sacudiu a cabeça e disse a Francisco:

– Um jovem na sua posição devia passar o tempo nas bibliotecas, absorvendo a cultura do mundo.

– E o que o senhor pensa que estou fazendo? – perguntou Francisco.[2]

Posteriormente, a observação de Dagny sobre os motores de uma locomotiva oferece um exemplo mais profundo dessa visão dos produtos do capitalismo industrial como testemunho do poder da mente humana.

Eles estão mesmo vivos, pensou, porque são a forma física da ação de um poder vivo – da mente que foi capaz de apreender a totalidade daquela complexidade, determinar seu propósito, lhe dar forma. Por um instante, lhe pareceu que os motores eram transparentes e que ela estava vendo a rede de seu sistema nervoso. Era uma rede de conexões, mais complexa, mais crucial do que todos os fios e circuitos: as conexões racionais feitas pela mente humana que havia concebido pela primeira vez qualquer das partes daqueles motores.[3]

É uma medida de sucesso de A Revolta de Atlas que essa mensagem pode não parecer tão radical hoje como o foi 50 anos atrás. Com o descrédito do marxismo e o surgimento da “era da informação”, é hoje normal reconhecer que o conhecimento é a força motriz da inovação – que ideias, mais que força bruta ou matéria-prima, é a principal fonte de riqueza. Não obstante, Ayn Rand defendeu essa ideia durante a última era industrial, quando o poder da força bruta dos sindicalizados ainda era considerada a fonte do poderio industrial dos Estados Unidos.

É fácil reconhecer o papel central da mente quando se analisa os avanços tecnológicos recentes. Mas Ayn Rand entendeu o papel da mente em todos os aspectos dos negócios. No final do romance, Dagny Taggart observa o reinado de um tipo de czar das ferrovias, empoderado como regulador-chefe da indústria e analisa o caos causado por seus decretos arbitrários sobre o planejamento racional de negócios privados. Que o “planejamento” central do governo gera disrupção do planejamento racional de milhões de indivíduos privados é um ponto que já tinha sido feito por economistas como Ludwig von Mises, porém Ayn Rand foi além, afirmando que esses princípios econômicos não eram abstrações acadêmicas frias, mas dramas que se desenrolavam no mundo real – que as leis econômicas são, sim, uma questão de vida ou morte, de triunfo ou tragédia. Segue uma passagem da tragédia que ocorre nas últimas páginas do romance:

Pensou no trem no 193. Seis semanas atrás, ele fora enviado com um carregamento de aço − não a Faulkton, Nebraska, onde a Companhia de Máquinas-Ferramentas Spencer, a melhor das que ainda funcionavam, estava sem operar havia duas semanas, esperando o carregamento −, mas para Sand Creek, Illinois, onde a Máquinas Confederadas afundava em dívidas havia mais de um ano, produzindo artigos de baixa qualidade de modo espasmódico. O aço fora entregue a ela por um decreto que explicava que a Spencer era uma empresa rica, e portanto podia esperar, enquanto a Confederadas estava falida e era importante impedir que ela fechasse, tendo em vista que era a única fonte de empregos para a população de Sand Creek. A Companhia de Máquinas-Ferramentas Spencer fechara havia um mês. A Máquinas Confederadas encerrara as atividades duas semanas depois.

A população de Sand Creek estava recebendo auxílio do governo federal, mas, como não havia comida para ela nos celeiros vazios da nação naquele momento, as sementes dos fazendeiros de Nebraska haviam sido confiscadas por ordem do Conselho de Unificação − e o trem no 194 levara a colheita jamais plantada, o futuro da população de Nebraska, para ser comida pelo povo de Illinois. “Vivemos numa época progressista”, afirmara Eugene Lawson numa transmissão radiofônica, “em que por fim todos compreendemos que é de cada um de nós que depende a sobrevivência de nossos irmãos.”[4]

Essa passagem também aborda um segundo tema filosófico que continua sendo a ideia mais revolucionaria do romance.

Ao longo da história da humanidade, moralistas têm nos advertido que indivíduos movidos pela “ganância” e livres para perseguir seu autointeresse, afundariam a sociedade em guerras apocalípticas de todos contra todos, um sistema de brutalidade, roubo e exploração – precisamente as qualidades que Marx projetava no novo sistema capitalista. Em vez disso, o capitalismo produziu um sistema de liberdade, independência, prosperidade e energia criativa superabundante – enquanto as sociedades mais dedicadas ao sacrífico do indivíduo ao coletivo, os regimes comunistas do século XX, foram culpadas pelas maiores atrocidades já cometidos contra a humanidade.

As lições dessa história não foram negligenciadas por Ayn Rand, que tinha fugido da União Soviética para os Estados Unidos na década de 1920, experimentando, num breve espaço de tempo, o contraste entre sistemas sociais opostos. Como sua própria resposta ao altruísmo, Ayn Rand ofereceu uma moralidade do autointeresse em que o objetivo moral central do indivíduo é a busca de sua própria felicidade:

“Durante séculos, a luta da moralidade foi travada entre aqueles que afirmavam que a sua vida pertence a Deus e aqueles que afirmavam que ela pertence ao próximo. Entre aqueles que pregavam que o bem é se sacrificar em nome de fantasmas no céu e aqueles que pregavam que o bem é se sacrificar em nome dos incompetentes na Terra. E ninguém veio para lhes dizer que a sua vida pertence a vocês e que o bem consiste em vivê-la.[5]

Ainda assim, o radical dessa ideia não é apenas a defesa do auotinteresse, mas a redefinição do significado moral de egoísmo.

A maioria dos intelectuais tem aceitado a antiga caricatura altruísta do autointeresse como criminalidade bruta, como se a única escolha com que deparamos é entre formas de sacrifício: sacrifício em prol dos outros ou sacrifício desses em nosso nome. Ainda assim, essa caricatura é totalmente refutada pela história do capitalismo. A filosofia do altruísmo nos dá uma escolha entre dois modelos morais: Madre Teresa e Al Capone. Ainda assim, existe lugar nessa filosofia para um Bill Gates, um Thomas Edison ou qualquer um dos milhares de indivíduos que povoam a história do capitalismo, construindo suas próprias fortunas através da criação de novas ideias e produtos?

Pela primeira vez, Ayn Rand reconheceu a realidade e o significado desses homens e nos brindou com uma lição moral profunda: que o autointeresse genuíno significa não a conivência míope dos brutos, mas o pensamento criativo e o esforço produtivo dos empreendedores.

Embora os detratores de Ayn Rand considerem seus romances “irrealistas”, são os intelectuais populares que vivem em uma bolha de irrealidade, deixando passar lições monumentais de dois séculos de história.

A era de socialismo sufocante deu espaço para a era de capitalismo global, que está começando a transformar as vidas de bilhões de pessoas ao redor do mundo, da Europa à Índia, passando pela China. Mas, infelizmente, não há ninguém para ajudá-los a entender o que é o capitalismo, o seu significado mais profundo em suas vidas e valores, e por que ele é bom.

Ninguém, é claro, exceto Ayn Rand. É por isso que A Revolta de Atlas é mais relevante e necessário hoje que quando foi publicado, muitos anos atrás.

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Publicado originalmente em The Tracinski Letter.

Traduzido por Matheus Pacini.

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[1] RAND, Ayn. A Revolta de Atlas. Trad. de Paulo Henriques Britto. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. V I, p. 38.

[2] RAND, Ayn. A Revolta de Atlas. Trad. de Paulo Henriques Britto. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. V I, p. 38.

[3] RAND, Ayn. A Revolta de Atlas. Trad. de Paulo Henriques Britto. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. V I, p. 259.

[4] RAND, Ayn. A Revolta de Atlas. Trad. de Paulo Henriques Britto. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. V III, p. 227.

[5] RAND, Ayn. A Revolta de Atlas. Trad. de Paulo Henriques Britto. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. V III, p. 334-335.

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