A Nascente, de Ayn Rand: vislumbrando um novo ideal moral

Todo indivíduo confronta – e, de uma forma ou outra, deve responder – duas questões essenciais para formar uma visão moral sobre a vida: “que tipo de pessoa eu gostaria de ser?” e “que tipo de vida eu gostaria de levar?” Como a conduta e o caráter moral de um indivíduo não são nem predeterminados nem automáticos, questões sobre quem ser e como viver são aspectos perenes e inescapáveis da vida humana.

Mas onde se deve buscar respostas para tais questões? Como formar uma ideia de caráter que vale a pena construir e uma vida que vale a pena viver?

O ambiente imediato de um indivíduo normalmente apresenta uma mistura de admirável e condenável, de inspirador e desanimador, de racional e irracional, dificultando a formação de uma concepção de um caráter e de um tipo de vida que é ideal, que poderia servir de modelo a ser conquistado. Na visão de Rand, é aqui que a arte – particularmente, o que ela chamou de arte “romântica” – poderia e deveria ter um papel crucial. [1]

A principal fonte e representação disponível de valores morais para uma criança é a arte “romântica” (em particular, a literatura romântica). A arte romântica não lhe oferece regras morais ou uma mensagem explicitamente didática, mas sim o retrato de um indivíduo moral – isto é, a abstração concretizada de um ideal moral. A arte romântica oferece uma resposta concreta e diretamente perceptível à própria questão abstrata que está na mente da criança, mas que ela ainda não consegue conceptualizar: que tipo de pessoa é moral e que tipo de vida ela leva?[2]

O que uma criança extrai da arte romântica, argumenta Rand, não é um conjunto de princípios morais, mas “a precondição e o incentivo para a compreensão posterior de tais princípios: a experiência emocional de admiração pelo potencial mais elevado do homem, e a experiência de se inspirar num herói.”[3]

Mas o que é heroico? E o que constitui o potencial mais elevado do homem? Qual é o ideal moral que alguém deveria admirar, inspirar-se e buscar emular?

Se alguém recorre à moralidade convencional (seja secular ou religiosa) em busca de respostas, ele encontra um ideal que normalmente consiste em uma vida de serviço sacrificial aos outros – a Deus, à sociedade ou aos necessitados – e de um caráter moral disposto a preencher tal papel. É um ideal que coloca a moralidade contra o autointeresse do indivíduo. E vista dessa perspectiva, os dois extremos na vida parecem ser: leva uma vida totalmente moral e sacrifique totalmente os seus interesses ou perseguir totalmente os seus interesses e prescindir da moralidade por completo.

Não achando nenhum dos extremos interessante, muitas pessoas optam por não perseguir nenhum. Em vez disso, tentam encontrar um meio-termo, sacrificando um pouco seus interesses, tentando manter um pouco de senso de caráter moral e perseguindo um pouco de seus interesses, de modo a manter algum tipo de sentido de vida.

E o que dizer do indivíduo que não considera sua vida e seus interesses como dispensáveis, ou seu caráter moral como algo que está disposto a comprometer – um indivíduo que sente que deve ser possível perseguir seus interesses e ser totalmente moral? Tal indivíduo fica sem um modelo ou ideal para guia-lo, sem qualquer concepção de como seria uma vida moral dedicada ao seu autointeresse.

Quer dizer, até Ayn Rand.

Os romances de Rand – em particular, A nascente (1943) e A revolta de Atlas (1957) – oferecem uma concepção original do que seria uma vida moral exigente e convicta, mas que rejeita totalmente o ideal de autossacrifício. Em resumo, Rand oferece um novo ideal, baseado em uma nova concepção do que é nobre e de uma nova teoria da natureza do autointeresse.

Como esse ano marca o 75º aniversário da publicação de A nascente, vale a pena refletir sobre o primeiro retrato completo desse ideal moral, o herói do romance: Howard Roark.

Seria impossível discutir detidamente aqui o que é apresentado em rico detalhe no romance. Mas considere alguns dos aspectos centrais de Roark que Rand considera como elementos daquele ideal.

Na visão de Rand, tudo que torna um homem bom e nobre advém de um compromisso individual primário com a verdade e com a valorização de sua própria vida e felicidade. O homem ideal é o homem que pensa, valoriza e vive em primeira mão – e isso é o que Howard Roark representa.

A característica essencial de Roark é sua independência. Ele é independente em todos os sentidos: em seu pensamento, em sua motivação, em sua escolha de valores e em seu trabalho.

Seus pensamentos são suas próprias conclusões e ele reconhece nenhuma autoridade acima de seu próprio julgamento independente. Como tal, ele não espera que os outros lhe digam o que pensar, nem renuncia às suas convicções quando os outros discordam dele ou exigem que ele feche seus olhos e tenha fé.

Ele aprende com os outros, mas sabe que o aprendizado requer um processo independente de pensamento e avaliação, e que o padrão pelo qual ele aceita algo como verdadeiro não pode ser outro além de sua própria análise dos fatos.

Roark é motivado não por expectativas sociais ou sentimentos inconscientes, mas sim por seus próprios valores escolhidos. Quando questionado por que decidiu se tornar um arquiteto, ele responde claramente: “por que eu amo essa Terra. É tudo que eu amo. Eu não gosto da forma das coisas na Terra. Eu quero muda-las.”[4] E ele o faz ao desenhar prédios/construções que são belas, lógicas e surpreendentemente originais.

Explicando sua abordagem de trabalho criativo ao reitor da faculdade de arquitetura da qual Roark tinha sido expulso, ele diz:

– Mas veja – disse Roark calmamente –, eu tenho, talvez, mais sessenta anos de vida. Vou passar a maior parte desse tempo trabalhando. Eu escolhi o trabalho que quero fazer. Se ele não me der nenhuma alegria, estarei me condenando a sessenta anos de tortura. E eu só posso encontrar alegria em meu trabalho se o fizer da melhor forma possível. Mas o melhor é uma questão de padrões, e eu estabeleço meus próprios padrões.[5]

Outro ponto é a integridade de Roark. Roark não compromete seus valores e convicções, tampouco permite qualquer contradição entre os padrões e convicções que ele defende e as ações que ele toma.

Em uma cena-chave do romance, Roark é premiado por uma importante comissão de arquitetura numa época onde mais precisa, mas sob a condição de que ele adicione um fachada clássica convencional ao seu design totalmente original. Quando Roark se recusa – para preservar a integridade da construção que ele desenhou e de sua ientidade como criador – ele é dito:

Você precisa do trabalho. Você tem que ser assim tão fanático e abnegado?

– O quê? – perguntou Roark, incrédulo.

– Fanático e abnegado.

Roark sorriu. Olhou para seus desenhos. Mexeu um pouco o cotovelo, apertando as plantas de encontro ao corpo. Disse:

– Essa foi a coisa mais egoísta que você já viu um homem fazer.[6]

O trabalho e as convicções de Roark são pessoalmente muito importantes para ele e, portanto, jamais as trairá. De que serve uma obra importante se for obtida à custa da felicidade que encontra em seu trabalho, ou de suas convicções artísticas sobre o que é belo e o que vale ser construído – à custa de sua integridade?

Assim como as convicções e os padrões artísticos de Roark são o resultado de seu pensamento original, também o é a sua autoestima elevada. Ele não se julga com base nas opiniões ou pela comparação com outras pessoas, mas com base em seu próprio histórico de conquistas/realizações e pelo caráter moral que trabalhou para construir e manter. E, com base nisso, Roark possuiu uma autoestima profunda e duradoura.

Em todos os aspectos mencionados acima, Roark é fundamentalmente autointeressado. Ele tem amigos – incluindo alguns que ele ama profundamente – mas ele não vive por eles. Ele não subordina sua vida, sua felicidade, seus objetivos, seus valores ou suas convicções a algo ou alguém; tampouco sacrifica os outros por seus próprios fins. Ele não vive para ou através dos outros, mas para e através dele próprio, isto é, por meio de sua própria mente e esforço a serviço de sua própria felicidade.

Nesse sentido, Howard Roark representa uma concepção nova e moralmente idealista, e uma representação convincente de um caráter que alguém pode formar, bem como um modo de vida que alguém pode seguir.[7]

Seja qual for seu futuro, no início de suas vidas, os homens buscam uma visão nobre da natureza e do potencial do homem”, e A Nascente é uma das poucas obras de arte que dá forma, substância e combustível àquela visão, “proclamando a glória do homem, mostrando quanto é possível.”[8]

“The Ayn Rand Institute has granted permission to Objetivismo Brasil to translate this article to Portuguese from its original English version, but does not directly endorse the translation nor guarantees its accuracy, completeness or reliability.

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Publicado originalmente em The New Ideal.

Traduzido por Matheus Pacini.

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[1] RAND, Ayn. “Introduction to the Twenty-Fifth Anniversary Edition,” in The Fountainhead. New York: Signet, 1993 Centennial edition.

[2] RAND, Ayn. “Art and Moral Treason,” in The Romantic Manifesto. New York: Signet, 1971 Centennial edition.

[3] RAND, “Art and Moral Treason.”

[4] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 53.

[5] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 27.

[6] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 214-215.

[7] Para saber mais sobre o tema “idealismo moral” em A nascente e na vida e filosofia de Ayn Rand, leia MAYHEW, Robert. Essays on Ayn Rand’s “The Fountainhead,” em espcial, o capítulo 1: “The Fountainhead from Notebook to Novel: The Composition of Ayn Rand’s First Ideal Man” por Shoshana Milgram; capítulo 8: “Three Inspirations for the Ideal Man: Cyrus Paltons, Enjolras, and Cyrano de Bergerac” por Shoshana Milgram; e capítulo 11: “The Fountainhead and the Spirit of Youth” por Benjamin Bayer.

[8] RAND, Ayn. “Introduction to the Twenty-Fifth Anniversary Edition,” in The Fountainhead. New York: Signet, 1993 Centennial edition.

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