A morte do “eu” em favor do “nós” e a anulação da individualidade na cultura do cancelamento.
Alexandre Sorensen é formado em Ciências Contábeis pela Universidade de São Paulo, atua como Head de Finanças e Operações e como consultor para finanças corporativas. Alexandre é associado ao IFL-SP.
No começo da terceira década do século XXI, é evidente o efeito das redes sociais frente à popularização da internet. As piadas entre amigos deram lugar a memes, os clubes de verão, aos grupos on-line, as ‘peladas’, às partidas de FIFA, as reuniões de trabalho, às ‘calls’, e os apertos de mãos e abraços, às interações via ZOOM ou similares. Ironicamente, as ferramentas tecnológicas que permitem a comunicação entre pessoas a qualquer hora e lugar do mundo são as mesmas que tornaram as relações mais frias, menos racionais e menos empáticas. Ou será coincidência que justamente essa época tão tecnológica e fria seja também àquela em que as pessoas estão se sentindo mais solitárias do nunca[1]?
Essa solidão epidêmica, que gera a necessidade de pertencimento, faz com que, como poucas vezes na história, boa parte das pessoas precise se definir como membro de algum grupo identitário, suplantando, assim, suas crenças individuais. Assim, um rótulo autoatribuído para pertencerem a um grupo passa a defini-las mais do que a sua própria individualidade, vazia e solitária. O que vemos, então, contrário ao que se imaginava no início da internet, não são debates ricos entre diferentes perspectivas, mas sim a potencialização das hostilidades e a construção de barreiras cada vez maiores entre as diversas bolhas de pensamento, situação potencializada pelos algoritmos das maiores redes sociais que busca manter essas bolhas intactas através do direcionamento de conteúdo baseado nas interações anteriores.
“Ambicionamos ser como nossos irmãos, pois todos os homens devem ser iguais. Na parte superior dos portais do Palácio do Conselho Municipal, algumas palavras estão gravadas no mármore, que repetimos para nós mesmos sempre que nos encontramos tentados: ‘Somos um por todos e todos por um. Não há homens exceto o grandioso NÓS, Uno, indivisível e eterno’”[2]
Nos últimos tempos, ficou famosa a chamada “cultura do cancelamento”, porém esse fenômeno, que ganhou força na era da internet, não é recente. Descrito com preocupante precisão em diversas distopias do século XX[3], ele ganhou força no mundo real e mata na raiz a possibilidade de discussões racionais e produtivas no século XXI. Como essa prática funciona? Consiste em neutralizar e condenar ao ostracismo todos aqueles com opiniões consideradas “extremistas”, “subversivas” ou “prejudiciais” pelo grupo que cancela. Como os próprios grupos definem o que significa cada um destes adjetivos, e essas definições mudam de acordo com o momento político e social, na prática, qualquer pensamento divergente dos compartilhados pelo coletivo é passível de cancelamento.
Além da evidente destruição do diálogo e do contraditório entre grupos distintos, há também a uniformização do pensamento dentro do próprio grupo: qualquer variante de pensamento, ainda que proveniente de um membro do grupo, também é rechaçada. Dessa forma, o receio de ser o próximo cancelado inibe a externalização de qualquer pensamento distinto, ainda que pudesse contribuir para a reflexão coletiva. Com isso, enquanto o indivíduo se neutraliza frente a seus pares por medo de ser cancelado, o grupo se blinda da autocrítica e revisão de seus valores, pois, frente à inibição dos indivíduos dentro do grupo, qualquer mudança precisaria ser uma inferência coletiva simultânea, algo impossível de ocorrer. Se o grupo estiver errado, todos estarão errados, por muito tempo. Nele não existe “eu”, apenas “nós”.
É essa homogeneidade obrigatória que preocupa, pois nela não há liberdade, nem inovação e, muito menos, progresso.
“(…) Aquilo que não é inferido por todos os homens não pode ser verdade.
(…) O que não é inferido coletivamente não pode ser bom.
(…) Muitos homens do Lar dos Eruditos tiveram ideias novas e estranhas no passado, mas quando a maioria dos seus irmãos Eruditos votou contra elas, abandonaram tais ideias, como devem fazer todos os homens.”[4]
A história já nos mostrou que foi das grandes uniformidades de pensamento que nasceram as maiores atrocidades que a humanidade protagonizou no último século, como o fascismo ide Mussolini e o nazismo de Hitler, o comunismo de Lênin e Stálin, o comunismo de Pol Pot, a Revolução Chinesa de Mao, a Revolução Cubana de Castro etc. que somadas aniquilaram centenas de milhões de pessoas. Eventos históricos como estes nos mostram que a realização das distopias da literatura pode estar a um pensamento homogêneo de distância. Em sua obra Cântico, por exemplo, Ayn Rand retrata uma sociedade resultante de uma batalha em que muitos homens lutaram de um lado, e apenas alguns poucos de outro. Esses poucos, que foram conquistados, foram chamados de “malignos”, tiveram suas obras queimadas, suas construções largadas à ruína e seus tempos tratados como “não-mencionáveis”, em uma exaltação doentia de uma suposta conquista coletiva sobre a minoria destruída.
Atualmente, os ambientes digitais servem como ferramentas para potencializar o perfil coletivista, já que os eventuais desalinhamentos ao pensamento do grupo podem ser denunciados por qualquer um dos milhões de vigilantes, atentos 24 horas por dia e 7 dias por semana, prontos para iniciar o linchamento virtual que determina a condenação dos dissidentes ao ostracismo, a neutralização de seus legados e o silenciamento de suas opiniões divergentes do resto do grupo. O membro “cancelado” pode passar, de repente, do status de aliado de primeira ordem a ser abjeto e abominável, tudo por causa de um pequeno desvio da cartilha progressista.
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Revisado por Roberta Contin e Matheus Pacini.
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[1] Em 2021 o Japão criou o chamado “Ministério da Solidão” para lidar com o problema no país. Antes mesmo da pandemia de Covid-19, um estudo feito por uma seguradora nos EUA já apontava níveis epidêmicos de solidão na chamada ‘geração Z’. Links em https://www.dw.com/en/japan-minister-of-loneliness-tackles-mental-health-crisis/a-57311880 e https://www.cnbc.com/2018/05/02/cigna-study-loneliness-is-an-epidemic-gen-z-is-the-worst-off.html
[2] O tema é abordado em diversas obras como “1984”, de George Orwell, “Cântico”, de Ayn Rand, “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, “Nós”, de Yevgeny Zamyatin, etc.
[3] Trechos do livro “Cântico”, de Ayn Rand, Vide Editorial, 2ª Edição brasileira, junho de 2019, pág.43 [3] e pág. 95 [4].
[4] Trechos do livro “Cântico”, de Ayn Rand, Vide Editorial, 2ª Edição brasileira, junho de 2019, pág.43 [3] e pág. 95 [4].
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