Um dos assuntos recorrentes na obra de Ayn Rand é a ideia de primazia da existência, isto é, o fato de que a existência é anterior e independente da consciência. A essência dessa ideia é o fato de que a realidade segue leis próprias, e não é afetada pelos desejos, sentimentos ou percepções da consciência. A alternativa a ela é a primazia da consciência: a crença de que a consciência- seja ela divina, social ou individual – é responsável por criar aquilo que percebemos. A situação atual da França, onde uma multidão de pessoas cobra mais intervenção estatal enquanto reclama de impostos elevados e da alienação da classe governante, é um exemplo concreto da natureza insana da primazia da consciência.
A primazia da existência teve sua origem, a passos de tartaruga, na Grécia Antiga. Ao afirmar que todos os existentes tinham sua origem na água, Thales de Mileto deu o primeiro passo na construção do conceito de “existência” como algo comum a tudo aquilo que existe[1]. Após séculos de desenvolvimento intelectual, a ideia teve seu ápice no trabalho de Aristóteles, que sistematizou o fato de que contradições não existem e, portanto, que a existência segue suas próprias leis, as quais podem ser descobertas pelo Homem através do uso da razão.
As ideias apresentadas pela tradição filosófica grega podem parecer óbvias hoje, mas, em seu devido contexto histórico, marcaram um avanço intelectual colossal. Em termos epistemológicos, ao reconhecer que a existência é anterior à consciência, a filosofia grega rejeitou o pensamento mágico dos povos primitivos. Em termos psicológicos, essa mudança é uma institucionalização do princípio da realidade, em detrimento do princípio do prazer[2] que rege a vida de crianças.
Em termos políticos, essa mudança primordial permitiu a criação de uma república regida por valores e baseada na capacidade racional do homem, em claro contraste com o modelo tribal baseado em crenças místicas da maioria dos povos até então. A ideia de que a realidade é absoluta e passível de ser descoberta é a raiz do conceito de que existem sistemas políticos absolutamente melhores que outros, cujos princípios podem ser descobertos através da atividade intelectual. Se isso não fosse possível, o ser humano estaria fadado a escolher o governante com maiores poderes mágicos e o sistema político que mais agradasse aos deuses.
Séculos atrás, a rejeição da primazia da existência levou o homem do auge civilizatório grego à Idade das Trevas. Hoje em dia, como demonstram as manifestações na França, ela transforma seres humanos racionais e produtivos em crianças sem noção de causalidade, destruindo a economia e a lei.
A Insanidade Medieval
A decadência grega teve seu início no Período Helenístico. As excursões militares de Alexandre não levaram apenas a cultura grega para novos territórios, mas também trouxeram de volta para a Grécia as doutrinas místicas dos povos orientais. A primazia da existência, hegemônica ao final do Período Clássico, passa a ser novamente questionada pela filosofia importada de civilizações como a Persa e a Indiana, dando início a mais de um milênio de declínio cultural e político.
Uma consequência inescapável da primazia da consciência é o declínio político em direção ao autoritarismo. Enquanto os agentes políticos buscam o bem-estar do indivíduo na Terra, utilizando a lógica como método de discussão e investigação, a liberdade pode florescer. Quando se toma a consciência divina como anterior à existência, o princípio que guia a ação política não é mais o bem-estar do indivíduo, mas a vontade divina[3]; o método de investigação não é mais a Lógica, mas a Revelação. A discussão necessariamente esbarra no critério de quem é mais mágico, divino ou santo.
A conquista da Grécia por Roma marca a mudança de um sistema político baseado na liberdade do cidadão para um baseado na conquista militar. A filosofia clássica, focada na natureza dos aspectos essenciais da existência e suas consequências na vida do Homem, é substituída por tratados de administração pública e o culto à tradição. O dracma, moeda grega de cunhagem difusa que manteve seu valor por séculos, dá lugar ao denário, às primeiras experiências ocidentais com a centralização de emissão e às primeiras crises inflacionárias[4].
Como Rand aponta, uma contradição que é mantida tende a se expandir. O caráter irracional do período romano, manifesto na rejeição parcial da lógica e num culto religioso da tradição, aumentou gradualmente ao longo de séculos com a ascensão do cristianismo, culminando na Idade Média. O aspecto político da primazia da consciência atinge seu ápice na vida medieval: o sistema político é da forma que é porque essa é a vontade da consciência divina, e o questionamento dessa vontade pode levar a punições severas.[5]
O contraste com a sociedade grega se torna ainda mais claro no período medieval. Após séculos de negação da primazia da existência, o indivíduo europeu passa por um período de subnutrição crônica, progresso tecnológico virtualmente nulo e sob um sistema político onde uma aristocracia tribal autoritária compete com uma igreja centralizadora tão autoritária quanto. Não é possível dominar a natureza sem se submeter às suas regras. Não é possível promover paz e liberdade entre os homens ignorando a sua natureza.
Felizmente, após séculos de misticismo, a exaustão da hegemonia católica aliada ao comércio das cidades-estado italianas com o mundo árabe leva ao redescobrimento das obras gregas e à retomada do pensamento lógico e secular. A renascença italiana dá início a um novo processo gradual de desenvolvimento político, filosófico e econômico na Europa, que culmina no Iluminismo. Mas o que, exatamente, foi o Iluminismo?
A Insanidade Moderna
Comumente, o termo “Iluminismo” é utilizado para se referir a três movimentos filosóficos distintos. O primeiro é a Revolução Científica do século 17, que inclui o trabalho de pensadores como Galileu, Newton e Locke, e marca um retorno à filosofia aristotélica, à primazia da existência e à visão de que o mundo é algo que pode ser conhecido e dominado pelo Homem. O segundo é o Iluminismo americano dos séculos 17 e 18, no qual pensadores como John Adams, Thomas Jefferson e Benjamin Franklin aplicam o pensamento dos gregos e da revolução científica de forma prática, fundando os Estados Unidos da América.
O terceiro uso do termo se refere aos movimentos filosóficos europeus do século 18, de autores como Kant, Hume e Rousseau – movimentos diametralmente opostos aos outros dois. No contexto cristão, que enxerga a lógica como subsidiária à fé e à revelação divina, o Iluminismo Europeu nega, não a fé, mas a razão. Rousseau aponta a civilização como fonte da corrupção do estado de natureza, enquanto Hume afirma que não é possível derivar valores morais da observação da natureza. Kant vai além de ambos e, numa tentativa deliberada de blindar o que considera a moral cristã do progresso secular, estabelece que o ser humano é incapaz de perceber a realidade, baseando sua moral no sentimento subjetivo de dever.
Enquanto a Revolução Científica e o Iluminismo Americano progridem em direção à primazia da existência, o Iluminismo Europeu substitui a primazia da consciência sobrenatural do pensamento cristão por suas variantes social e pessoal. O pensamento de Rousseau, segundo o qual a realidade, tal como a percebemos, é essencialmente fruto da interação social, tem como consequência a ideia de que a verdade é aquilo que é definido pelo coletivo – ideia fundamental tanto no seu conceito de “autodeterminação dos povos” quanto nos trabalhos posteriores de autores como Marx e Hegel. A primazia da consciência é ainda mais presente na obra de Kant. Para ele, a realidade fenomenal é produto da consciência de cada indivíduo. Ambas formas de consideram o subjetivo como anterior aos fatos da realidade.
No início do século 20, enquanto os Estados Unidos travavam uma batalha entre a primazia da existência dos Pais Fundadores e o Pragmatismo[6] de origem kantiana (do qual tratamos mais a fundo neste texto), a Europa se tornou um campo de batalha ideológico entre ideologias subjetivistas, culminando na Segunda Guerra mundial. O Comunismo de Karl Marx, o Fascismo de George Sorel, o Nazismo de Kant[7] e a Social-Democracia de Karl Kautsky travaram uma batalha sangrenta pela hegemonia europeia, com a vitória da Social-Democracia. Todas essas ideologias porém, apesar de historicamente conflitantes, são variantes da mesma raiz subjetivista, e todas compartilham a doutrina da primazia da consciência.
Com a exceção de Kant, todos os autores citados partem do pressuposto de que a interação social define a realidade, seja na forma da dialética histórica de Marx e Kautsky, ou dos mitos úteis de Sorel. Não é por acaso que a ideologia Kantiana, onde a primazia da consciência é ainda mais intensa, adquirindo um caráter pessoal, deu origem ao regime mais perverso dentre os regimes perversos europeus. Na mente do nazista, uma vontade forte o suficiente pode moldar o mundo, independente dos fatos da realidade – logo, não é uma contradição construir uma sociedade ideal por meio da morte e destruição.
Com a vitória dos aliados e a posterior queda da União Soviética, a social-democracia se tornou hegemônica em detrimento das outras ideologias. Ao invés de contrastar a ideologia subjetivista do Iluminismo europeu com suas alternativas aristotélicas ou platônicas, todavia, os filósofos franceses se encarregaram de dar vida nova às ideologias que deram origem primeiramente ao caos europeu.
A Insanidade Francesa
Com a queda da Alemanha e do Comunismo Russo, era de se esperar que as ideologias marxistas e kantianas diminuíssem a sua influência sobre o mundo ocidental. Filósofos como Jean-Paul Sartre, Michel Foucault e Jacques Derrida, porém, tinham um plano diferente. Marxistas de formação, e infinitamente mais focados na filosofia pós-kantiana dos últimos séculos em detrimento dos clássicos gregos, os filósofos profissionais franceses – subsidiados com os impostos dos cidadãos – escolheram usar Marx para blindar a filosofia Kantiana, e vice versa.
Sejam nas microestruturas de dominação de Foucault, na autonomia da vontade de Sartre, ou nos escritos políticos de Derrida, a alternância e complementariedade entre as primazias da consciência pessoal e social é omnipresente. Se uma mudança social estrutural, como a adoção do Comunismo, não produziu o resultado desejado, isso se deve à falha dos indivíduos em adotar plenamente os valores sociais corretos. Se uma mudança cultural intensa, como a hegemonia kantiana, é incapaz de mudar o mundo para melhor, a culpa é das estruturas sociais que impedem o indivíduo de manifestar sua consciência plenamente. Em ambos os casos, a realidade e suas regras são irrelevantes; o fator essencial é a consciência e seu funcionamento.
Este movimento neomarxista, de inspiração na epistemologia Kantiana, hoje se tornou hegemônico nas faculdades ao redor do mundo. É fácil, para o leitor que tenha alguma experiência com o ensino de Filosofia ou Ciências Sociais, perceber a importância dada aos autores citados – sem nenhuma menção aos resultados históricos da adoção de suas filosofias – ao passo que autores como Ayn Rand, Franz Brentano e até Aristóteles e Isaac Newton sejam ignorados. O epicentro da filosofia francesa, e o lugar onde ela exerce mais influência é, naturalmente, a França – e os resultados práticos dessa filosofia se tornam evidentes ao observarmos as manifestações atuais no país.
O ato de abrir mão de dias de produção para ir às ruas cobrar o respeito por seus direitos é um ato nobre. Fazê-lo, porém, para cobrar mais gastos públicos ao mesmo tempo em que exige uma redução nos impostos, é um sinal de que o país sofre de um problema sistemático com a capacidade lógica de integrar fatos. Após séculos de ataque constante à primazia da consciência, essa contradição já não é problemática na cabeça do Francês comum – a qualidade de vida não é percebida como dependente da produção de bens, mas do esforço, sua contraparte psicológica.
A motivação dos protestos Franceses, equivalentes à cobrança de mais chuvas e menos pessoas molhadas, não é o tamanho do Estado, inchado até para os padrões Europeus: os franceses querem mais Estado. A motivação também não é a cobrança por salários mais justos, visto que a intenção dos que protestam não é aumentar a produção ou a liberdade de transacionar, mas o salário mínimo – o limite legal de produtividade acima do qual uma pessoa pode trabalhar legalmente. A motivação dos que protestam é um descontentamento e uma sensação de injustiça: aspectos emocionais que, aliados a um íngreme declínio filosófico, são considerados suficientes para a mobilização política.
É importante que a crise atual Francesa, um reflexo do que vem acontecendo na Europa como um todo, seja propriamente entendida por todo o mundo ocidental. Ela não é fruto de problemas conjunturais, mas um reflexo de séculos de rejeição aos princípios responsáveis por elevar a Europa de uma justaposição de tribos primitivas em guerra à potência cultural, política e econômica do século passado. É importante perceber que o mesmo processo que teve início na França – e antes disso na Alemanha, em Roma e na Grécia helênica – acontece, em maior ou menor escala, em todo o mundo ocidental, e quais são as suas consequências práticas. Apenas assim teremos a chance de reverter este processo antes que a destruição de valores, instituições e capital atinja níveis catastróficos, e passe a ser quantificando em termos de destruição de vidas.
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Revisado por Matheus Pacini.
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[1] As menções de Aristóteles ao trabalho de Thales em Metafísica deixam clara a importância do filósofo. O homem primitivo, refém do pensamento mágico, observa cada existente como algo à parte, com raras abstrações mais amplas representadas por mitos e divindades. Thales foi o primeiro homem a perceber e explicitar o fato de que todas as coisas que existem, compartilham de uma qualidade comum, ainda que – talvez por limitações linguísticas – tenha representado isso por meio da ideia de que “tudo é água”. Essa ideia foi essencial para o posterior desenvolvimento da lógica por Sócrates, Platão e Aristoteles.
[2] Em Psicanálise, o princípio do prazer (Lustprinzip) é o princípio que guia o comportamento no nível instintual. Sendo associado com a ação passional e o pensamento mágico, ele consiste na busca por prazer e na repulsa à dor. Ele é contrastado com o princípio da realidade (Realitatsprinzip) que emerge em um estado posterior do desenvolvimento do Ego, com a capacidade do indivíduo de deferir prazer imediato de acordo com as circunstâncias.
[3] Grande parte da filosofia religiosa equipara a felicidade do ser humano ao cumprimento da vontade de Deus. Com base nisso, é possível argumentar que a primazia da existência de caráter sobrenatural, em contraste às suas variantes seculares, não exclui o bem-estar do indivíduo como objetivo político. Esse argumento, porém, está errado. Parte essencial da discussão política guiada pela primazia da existência é a definição do que constitui bem-estar, através da investigação da natureza humana. A primazia da consciência sobrenatural substitui essa investigação pela investigação da natureza divina, a partir da qual se deriva a natureza humana.
[4] Em Política Monetária, José Julio Senna introduz o leitor de forma simples e competente à história de diferentes regimes monetários antigos, da Grécia antiga ao Brasil contemporâneo.
[5] Aparentemente há uma tendência nos conservadores católicos contemporâneos de atenuar a desumanidade da Igreja e suas inquisições, comparando o número de mortos na época com o número de mortos em regimes totalitários seculares, como o nazismo e o comunismo. Um assassino que mata 20 não torna um assassino que matou 2 mais honesto, e a comparação desconsidera o nível tecnológico das sociedades envolvidas. Os ideólogos comunistas basearam-se, em grande parte, nas estratégias de dominação da Igreja Católica na formulação de sua estratégia de ação política. Há uma continuidade, não um contraste, entre os dois.
[6] Tanto em The DIM Hipothesis quanto em Ominous Parallels, Leonard Peikoff discorre sobre a história da disputa entre os modos aristotélico e kantiano de pensar, suas diferentes manifestações políticas e culturais, e suas consequências práticas na vida do indivíduo americano.
[7] O Nazismo é frequentemente associado ao Fascismo, ao Comunismo ou, erroneamente, aos movimentos cristãos de direita. Apesar de suas semelhanças com o Fascismo e o Comunismo, de natureza hegeliana, o Nazismo tinha uma natureza estritamente kantiana. Ao passo que as duas primeiras ideologias compartilham a ideia de dialética histórica de Hegel, o Nazismo adota a vontade do povo alemão como causa primordial da evolução da sociedade. As semelhanças entre as três doutrinas são reflexos da das semelhanças entre a obra de Kant, a de Hegel e, consequentemente, às obras de Marx e Sorel.