Woodstock e o “conflito fundamental de nossa era”

Há pouco celebramos o 50º aniversário do lançamento da Apollo 11 à Lua, e logo teremos outro aniversário importante: o de Woodstock, também ocorrido em 1969. “Por meio século”, como diz um analista, “Woodstock tem sido considerada a apoteose da contracultura, a bela celebração do amor livre que alcançou seu auge na Era de Aquário”.

Ao longo dos anos, amantes da cultura foram lapidando a lenda de Woodstock. Para certo autor, Woodstock “representa um momento mágico – quase mítico – da história, quando o rock apresentado num cenário bucólico era capaz de unir pessoas em paz, amor e liberdade”. Como alguns dizem, Woodstock foi “uma demonstração impressionante do verdadeiro poder da comunidade” e “uma referência para uma geração que acreditava que as coisas poderiam mudar para melhor”. Outro autor diz: “Woodstock adquiriu seu status lendário por ter sido o último grande evento da década de 60”. Um colunista do New York Times se referiu a Woodstock como sendo “a concretização de uma lenda: um só espírito, uma só nação, um único ideal – amorfo mas vívido – registrado em um documentário vencedor do Oscar (“Woodstock, de 1970”), o que prova que não foi apenas alucinação”.

Para muitos, o espírito do festival é devidamente representado pela canção “Woodstock“, de Joni Mitchell, onde uma “criatura de Deus” que se dirige ao festival diz: “Estou indo acampar lá fora na terra / Estou indo tentar libertar minha alma“. Num sonho, aviões bombardeiros nos céus “se tornavam borboletas sobre nossa nação”. E finalizando, o refrão melódico diz que: “Somos poeira de estrela / Somos de ouro / E devemos nos levar / e volta ao jardim”.

Se você não viveu nessa época e não conhece nada além das notícias e músicas idílicas, será perdoado por acreditar que o apogeu da “nação Woodstock” justifica o estilo de vida “paz e amor” dos hippies como opção prática e desejável[1]. Mas caso pesquise mais sobre o evento, como fez Rand logo após o festival, verá que o festival foi, na verdade, muito assustador.

O interesse de Rand em analisar Woodstock não era meramente jornalístico. Como filósofa, defendia fortemente a razão e seu valor prático como guia para vida. Ao analisar o festival de Woodstock, percebeu que poderia ajudar seu público a “entender o poder da filosofia, e aprender a identificar as formas específicas pelas surgem abstrações filosóficas em nossas vidas”. Em uma palestra de novembro de 1969 chamada “Apolo e Dionísio“, Rand falou sobre o que se pode aprender ao estudar as diferenças entre as multidões que estiveram presentes no Festival Woodstock de Música e Arte, de 15 a 18 de agosto, e as que presenciaram o lançamento da Apollo 11[2], em 16 de julho.

Rand preparou sua palestra com base em reportagens publicadas pelas revistas Newsweek e Time e pelo jornal The New York Times. Estimativas apontam que mais de 300 mil pessoas estiveram presentes em Woodstock. Essas reportagens relataram também as dificuldades de jovens que não planejavam se alimentar por três dias, nem mesmo obter água potável, abrigo ou assistência médica[3]. Segundo a revista Life, “a liberdade de ficar chapado era tudo que desejavam”, e quando chegaram as chuvas torrenciais, xingaram os céus. Rand observa que o público de Woodstock parecia contente em viver num “estado de passividade, conformidade e estagnação: se ninguém aparecesse para ajudá-los, ficariam ali mesmo, sentados na lama. Se uma caixa de cereais aparecesse, comeriam; se um resto de melancia aparecesse, comeriam; se um cigarro de maconha estivesse parado em sua boca, fumariam. Se não, não fariam nada. Como poderiam agir, quando o dia ou a hora seguinte parecia, em suas mentes, buracos negros impenetráveis?”

Dessa forma — segundo Rand — as multidões de Woodstock fizeram vítimas aqueles que agiram com responsabilidade, começando pelos donos de propriedades vizinhas ao local do evento que sofreram transgressões absurdas e tiveram suas propriedades destruídas quando participantes do festival invadiram suas fazendas particulares para fazê-las de acampamento ou sanitário, queimando cercas, roubando colheitas e pegando qualquer coisa de valor que encontrassem no caminho. Como Rand explica:

“Os hippies são o exemplo vivo do que significa abrir mão da razão e confiar nos seus “instintos”, “impulsos”, e “intuições” primitivas — além de seus caprichos. Agindo assim, tornam-se incapazes de compreender o que é necessário para realizar seus desejos — por exemplo, o de realizar um festival. O que seria deles sem a caridade das praças locais que os alimentavam? Ou sem os cinquenta médicos que foram enviados de Nova York para salvar suas vidas? Ou sem os automóveis que os levaram ao festival? Ou sem o refrigerante e a cerveja que beberam em vez de água? Ou sem o helicóptero que trouxe os artistas? Ou sem todas as conquistas da civilização moderna que tanto criticam? Por conta própria, literalmente não sabiam nem mesmo como lidar com a chuva”.

Em resumo, Rand sustenta a ideia de que o comportamento das multidões de Woodstock exemplifica a emoção irracional — ou melhor, a emoção vivida por “quem não se importa em saber o que está sentindo e que tenta subordinar a razão à emoção” — representado perfeitamente pelo mítico Dionísio.

Na verdade, o festival Woodstock não tinha muito em comum com a missão lunar de julho de 1969. Mas Rand viu uma forte ligação entre os dois eventos em sua capacidade de exemplificar “o conflito fundamental de nossa era”: razão versus emoção (irracional).

Tendo presenciado como convidada da NASA o lançamento de 16 de julho em Cape Kennedy, Rand teve contato direto com as multidões que vieram assisti-lo[4]. Conscientes disso ou não — destaca Rand em sua palestra — os quase um milhão de espectadores que se dirigiram à costa da Flórida estavam “ansiosos para ver uma conquista, para ver o homem-herói” e esperavam testemunhar “a concretização de uma única faculdade humana: a racionalidade”.

Essas pessoas não eram um rebanho marcado nem uma multidão manipulada; não destruíram as comunidades da Flórida, não devastaram o campo e não imploraram pela misericórdia de suas vítimas como bandidos chorões. Eram indivíduos responsáveis, capazes de planejar dois ou três dias à frente e de suprir suas próprias necessidades.

Em seus objetivos e comportamento — afirma Rand — as multidões que testemunharam o lançamento do foguete demonstraram uma reverência apolínea pelas conquistas racionais — ao contrário das multidões desleixadas da “contracultura” que se espalharam densamente sobre um pasto de vacas no interior de Nova York[5].

A análise de Rand sobre esses dois eventos marcantes de 1969 nos mostra de maneira atemporal o poder da filosofia para mudar o rumo dos eventos humanos. Ouça aqui toda a palestra na íntegra, incluindo uma sessão de de perguntas e respostas.

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Publicado originalmente em The New Ideal.

Traduzido por Gabriel Poersch.

Revisado por Matheus Pacini.

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[1] De acordo com a Wikipédia, “os traços característicos dos membros da ‘Nação Woodstock’ incluem (mas não se resumem a esses): preocupação com o meio ambiente, simpatia com causas políticas de esquerda e questões ligadas a um forte ativismo político, relações entre os gêneros, vegetarianismo e gosto pelas músicas dessa época”.

[2] Um ensaio baseado na palestra está disponível em Ayn Rand, Return of the Primitive: The Anti-Industrial Revolution. As citações encontradas nesse artigo foram retiradas deste ensaio. Rand não expressa sua opinião quanto às apresentações musicais de Woodstock.

[3] Os detalhes “sombrios” de Woodstock têm sido muito discutidos desde 1969. Por exemplo, um relato recente mostra que se esperava que o público ficasse sentado em um grande pasto de vacas. “Quando as chuvas chegaram” — diz um participante — “o resultado foi um lamaçal que ‘sugava seus sapatos’. Era uma mistura de lama com estrume de vaca que parecia xarope de chocolate de tão escuro. Então, tentávamos não caminhar muito.”

[4] Em um ensaio chamado “Apollo 11“, publicado pouco depois do lançamento, Rand chamou a missão lunar de uma “demonstração do homem em seu melhor” que mostrava que “nada no mundo era impossível para o poder da razão do homem”.

[5] Como fez por muitas vezes nos anos 1960 e 1970, Rand ressaltou — com muitos exemplos — que a tal cultura anti-establishment era totalmente contraditória: “Não há um único princípio do establishment que não compartilhem — não há uma crença sequer que não tenham aceito”.

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